Por Sobrevivente da Psiquiatria
Eu escrevo sem parar, todos os dias, desde que fui alfabetizada. Há duas semanas, recebi o convite de colocar algum dos meus textos aqui, fiquei tão feliz e agradecida por saber que teria um espaço novo para contar os absurdos que vi e vivi dentro das instituições ditas de “saúde mental” que comecei a escrever num ritmo frenético, o que me fez entrar em contato com memórias desconfortáveis de carregar. A minha memória foi devastada por tratamentos hiper excessivos da psiquiatria, mas, cada vez que tenho que mexer nessa história os fragmentos dela parecem cacos de vidro chacoalhando no meu cérebro. Dói mesmo.
Apesar de não ter sido surpresa que a psiquiatria “fosse com a minha cara”, pois eu já era bem esquisitinha desde pequenininha, a violência com que isso aconteceu foi estarrecedora mesmo.
Fui mãe aos vinte anos de idade e, como muitas, sem estar preparada para isso. Então fui mãe novamente aos vinte e dois, e continuava não preparada para isso. Com vinte e cinco anos, solteira, dois filhos pequenos, achei que não seria possível eu virar gente grande de verdade; o mundo me tratava como gente grande, mas eu não me via como tal. Coisas como conta de luz ou choro de criança fora de hora me levavam a um desespero sem nome. O antídoto para isso era colocar movimento na vida, movimento sem parar pra não ter tempo de questionar se eu era ou não capaz. Beber muito, rir muito, ter muitos amigos, muito trabalho, almoços festivos para família, tudo o que pudesse me provar que eu era gente grande e fazia coisas de gente grande.
Mas nada funcionava direito. Eu não conseguia me organizar para manter trabalho, rotina e cuidado com a casa e os filhos. E o questionamento da minha capacidade vinha o tempo todo e me derrubava. Cada conta que eu não conseguia pagar me deixava de cama. E foi isso. Não consigo saber como, mas, aos vinte e seis anos, eu era uma paciente psiquiátrica considerada “caso grave”, que precisava de internação, faixas de contenção e quilos de remédio. É difícil contar sobre os anos que seguiram de uma maneira organizada, pois a memória é muito confusa.
Foram mais ou menos dez anos. Da primeira internação eu não tenho nenhuma memória sobre, nenhuma mesmo, mas minha irmã garante que houve. A segunda, foi em uma clínica particular muito chique e bem recomendada em São Paulo, e eu me lembro apenas de poder ouvir música, lembro-me da bicicleta ergométrica, que devia ficar na academia, mas eu só me lembro da bicicleta. Lembro-me também de uma porta de vidro, porta essa que eu ataquei para não ser medicada e acabei me machucando gravemente. Mas eu não me lembro onde essa porta estava, só me lembro da porta flutuante em um espaço branco. E a pergunta que fica: “que porcaria que tava fazendo uma porta de vidro no meio de uma clínica psiquiátrica?” Ahhh lembrei, é para os familiares não perceberem que condenaram os seus à prisão…. Foram cinco meses nesse lugar, que levou minha família à falência e a ter que recorrer ao sistema público de saúde para lidar com aquele caso tão complicado que era eu.
Quando saí, não tinha mais casa e meus filhos não moravam comigo mais. Não tinha mais trabalho nem amigos e não sabia muito bem como minha ausência tinha sido justificada. Também não sabia o quanto das tais crises graves, que me levaram a ser internada, havia sido exposto. E eu tinha um cheiro que saía de mim, cheiro de internação, cheiro de louco, cheiro de exclusão, cheiro de medo. Será que as pessoas sabiam que eu era louca, daquele tipo que enfermeiro tem que agarrar e amarrar para medicar? Louca de hospício? Será que eles sabiam?
Em menos de um mês eu fui internada novamente. Um hospital gigantesco, com “alas”, onde SUS e convênio e muita igreja católica serviam a medicina psiquiátrica com muita devoção. Ali eu entendi que tinha deixado de ser um ser humano, agora eu era um ser humano com etiqueta de identificação costurada nas roupas. Agora eu era um ser humano tão incapaz que não tinha o direito de ir e vir. A perda da liberdade é o maior trauma. Foi ali que eu recebi as primeiras aplicações de eletroconvulsoterapia (ECT) ou, na minha língua, tomei choque.
E ali, entre freiras e enfermeiros truculentos; choques e drogas pesadas, muito pesadas; intimidade exposta e sem direito à liberdade, me tornei algo que não sei nomear, sei apenas que não era mais gente, pessoa comum. De tempos em tempos me davam alta, e quando eu chegava na casa da minha mãe e a vida exigia ser vivida, inevitavelmente, eu tinha outra crise e voltava para aquele hospital com cheiro de cânfora e cheio de freiras sorridentes e ameaçadoras. Acho que por dois anos eu não fiquei mais do que quinze dias nessas altas malucas. Era sair e voltar. Quase uma visita, passeio, folga, saidinha.
A minha família pagava um bom psiquiatra particular para “coordenar” meu tratamento. Esse médico me manteve viva e, muitas vezes, disse para minha família que era a única coisa a se fazer. Um belo dia, ele chama a minha família para uma consulta coletiva e declara que “não conhece outros recursos para o meu tratamento. Que tudo o que ele conhecia dentro da psiquiatria ele já tinha usado e tudo falhara. Mas… que existia um tratamento experimental no HC e nós podíamos tentar uma vaga.
Viva! Conseguimos! Agora eu seria assistida por um pessoal porreta, o melhor que a psiquiatria pode oferecer em São Paulo. As internações não seriam mais necessárias. Graças a Deus! O tratamento experimental era a utilização de um único medicamento (na época, eu tomava em média vinte comprimidos de quatro ou cinco remédios diferentes por dia), associado ao ECT três vezes por semana, inicialmente.
Acho sempre necessário uma pausa dramática nesse momento.
É exatamente o que a gente vê em filme. Só que mais limpo, mais branco e mais calmo. Mãos e pernas amarrados, protetor de dentes, pessoas olhando pra sua cara de medo deitada e amarrada. E choque. Choque mesmo pra ver se o cérebro funciona direito. Mas esse tratamento é bem humano, já que eles dão anestesia antes do choque e você não sente e nem vê nada, nos filmes as pessoas estão acordadas. Mudou muito. Me perdoem a ironia, é tão difícil achar um tom adequado para falar sobre isso… é tudo tão absurdo. Isso, eletroconvulsoterapia, é considerado cuidado, tratamento. Até hoje, vale lembrar.
Às vezes, essas memórias vêm melancólicas, outras raivosas, medrosas, magoadas e confusas. Participei desse estudo-tratamento-tortura por um ano e meio, até alguém questionar se aquilo estava realmente funcionando. Claro que não tenho memória daquele tempo. O ECT destrói a memória. Eu era algo como uma gelatina que andava com a ajuda de uma acompanhante que estava comigo o tempo inteiro, não para me proteger de mim mesma e dos meus comportamentos destrutivos, como antes, mas porque meu corpo “desligava” sem aviso prévio. E eu desmontava. Nesse tempo, morávamos num bom apartamento eu, meus dois filhos, minha mãe e minha irmã mais nova. Três vezes por semana eu era levada ao HC e passava por isso. Saía de lá e voltava para casa para ter convívio familiar. Como explicar para duas crianças que a mamãe estava daquele jeito pelo cuidado médico? Enfim… que raiva que eu sinto ainda hoje.
Não sei quem me salvou daquilo, só sei que cheguei no meu primeiro CAPS. Eles suspenderam o tratamento com ECT de cara. Mas eram muito medicamentosos, ligados à uma faculdade que também tinha enfermaria psiquiátrica e eu ficava uns meses internada e uns meses batendo cartão diariamente no CAPS. Isso se alternou por uns dois ou três anos. Tenho muito mais memórias dessa época sem choque, mas ainda são bem confusas. Eles medicavam muito e os residentes mudavam muito, parece que precisavam experimentar muitos remédios e eu continuava me sentindo mais um objeto de estudo do que uma pessoa. As internações que aconteciam de tempos em tempos, e que duravam em média noventa dias eram, de fato, assustadoras. Porém, aos poucos eu fui me acostumando com aquilo. Era uma enfermaria bem pequena, mista, sem janelas. Eu conhecia todos os enfermeiros. Eu me acostumei. Faz poucos anos que me permito olhar para os absurdos vividos ali.
Mas foi lá, naquele CAPS, que eu soube que existia Movimento Antimanicomial, por exemplo. Tenho certeza de que a diversidade de pessoas e cores que eu via ali me estimularam os sentidos e eu ganhei força pra buscar vida. Essa força me levou a um psicanalista maravilhoso, que me levou aos projetos de Economia Solidária e Saúde Mental, e o “pessoal do Movimento Antimanicomial” que ali se encontrava me levou a acreditar que eu tinha direito de viver.
E aqui estou, com quase cinquenta anos, tentando entender quais são esses direitos e como viver.
Hoje, sou acompanhada em um CAPS, sou casada com uma louca, trabalho em casa. A gente se relaciona mais com bichos do que com gentes. Ainda estou aprendendo a comer, dormir e tomar banho sem ser obrigada por enfermeiros e sim porque eu quero. Também preciso de muita liberdade e, apesar de morar em uma cidade como São Paulo eu prefiro deixar as portas da minha casa destrancadas. Mas continuo com medo de ser julgada e condenada e levada de volta aos manicômios e por isso prefiro não sair muito de casa nem me expor muito.
Gosto de contar minha história porque preciso acreditar que um dia o cuidado será o cuidado em liberdade e será direito de todos.
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