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Colunas

Relato 05: “A gente se dedica à defesa da loucura em liberdade!”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

 

O meu trabalho na saúde mental, em um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), iniciou-se em 2009. Minha experiência foi em um CAPS II que, posteriormente, transformou-se em um CAPS III. Trabalhei nesse lugar até começo de 2023, momento em que não pude mais continuar com meu trabalho nesse espaço de cuidado e de transformação, extremamente potente, desafiador, aguerrido e político, não por minha própria decisão. Na minha opinião e na minha vivência, o trabalho no CAPS é uma via de mão dupla. Oferecemos o cuidado e também recebemos muito cuidado. 

Esse percurso de trabalho me fez experimentar um episódio que me marcou demais. Foi uma oportunidade que tive nessa trajetória de acolher um usuário que chegou ao serviço vindo de um manicômio, de um período de 18 anos de internação. Nesse período da vida desse usuário foi depositado nele todo tipo de descredibilidade que um ser humano pode receber. Quando eu pude buscar e conhecer melhor a história dele, me dei conta que ele era tratado como um sujeito sem futuro. Alguém que nunca mais poderia ser inserido na sociedade. Ao longo do percurso de vida dele, ele perdeu todo o vínculo e todo o contato familiar, o que se tornou um desafio para os espaços que ele frequentaria posteriormente. Desse modo, ele era considerado um sujeito sem perspectivas. Obviamente que essa falta de perspectiva era imposta por aqueles que mais deveriam acreditar nas possibilidades e nas perspectivas da vida de um sujeito, as pessoas que deveriam acolhê-lo. 

O marco dessa relação, desse vínculo e da vivência que experimentei com esse usuário, ao longo desses anos, foi tão marcante, que me lembro exatamente o ano em que o conheci. Eu o conheci em 2013, ocasião em que a cidade em que eu moro tentou reparar um dano histórico com o cuidado da saúde mental, por ter alimentado por anos, dois manicômios. Dentro desse projeto de reparação, houve um período em que a cidade investiu muito na desinstitucionalização das pessoas e no fortalecimento do cuidado em liberdade, período de grandes transformações. Uma dessas transformações foi a busca por munícipes que tivessem “esquecido” ou abandonado seus familiares nesses espaços manicomiais. Esse usuário com o qual estabeleci um vínculo, chegou no serviço em que eu trabalhava através desse projeto de desinstitucionalização e o nosso encontro foi marcante. Será marcante para sempre na minha vida e, eu tenho absoluta certeza, que na vida dele também. Pois, orgulhosamente, eu passei a ser uma referência para ele muito especial, e ele para mim. Dentro dessa relação estabelecida entre nós, um dia ele me fez um pedido muito sensível. Ele me pediu para ajudá-lo a localizar a família dele. Eu sempre dizia que iria tentar. Que eu faria essa busca e com todos os meus esforços eu procuraria meios para reconstituir essa história dele. E eu bancava isso na equipe multiprofissional do CAPS, porque, fosse a história que fosse, a história era dele. E ele tinha o direito de (re)vivenciar essa história. 

Diante dessa minha escuta ativa a esse sujeito de direito, eu consegui trilhar os caminhos que ele me sinalizou, indicando os lugares pelos quais ele tinha passado, desde sua adolescência. Um desses lugares foi uma Casa, uma instituição asilar que ele disse que ficava na rodovia e só disse isso. Então eu entrei na internet e busquei nas redes sociais essa casa que ele mencionou e cada lugar que eu encontrava me levava a outro. Fui registrando nessas instituições o nome da pessoa de quem eu estava tentando reconstituir a história e as informações obtidas foram fazendo sentido. Fui recebendo respostas positivas, fui trilhando caminhos e seguindo informações. Recebi uma informação que também foi marcante. Informação recebida por um outro profissional que ficou muito tomado com a história que eu contei e com o objetivo da busca que eu estava fazendo. Esse funcionário também ultrapassou os limites de suas atribuições e me deu informações muito importantes, conseguidas através de um sistema de dados que só havia no serviço no qual ele trabalhava. Foi bastante impactante, pois a informação que ele me deu era sobre uma usuária de outro serviço de saúde, que tinha o mesmo sobrenome e a mesma filiação do usuário do qual eu estava acolhendo e cuidando. Quando eu soube, tive a certeza que eles eram familiares. Achava impossíveis tantas informações se relacionarem e eles não terem nenhum vínculo. Foi certeiro. Fui em busca e localizei a irmã desse usuário que, curiosamente, também fazia parte de um serviço de saúde mental. Então fiz o contato com os técnicos de referência dela no outro serviço e combinamos de proporcionar o encontro entre os dois. Foi MA-RA-VI-LHO-SO, foi inesquecível, foi marcante, foi das melhores experiências que já pude viver em minha trajetória profissional. Foi um encontro repleto de histórias, de sofrimentos, de dores, alegrias, memórias. A partir desse encontro, a irmã, um pouco mais preservada em suas funções cognitivas, pôde nos trazer informações muito certeiras da trajetória dessa família. 

Essa busca, esse cuidado, esse encontro fez toda a diferença para ele que, por anos, buscou essas informações, talvez sem muito sucesso para encontrar alguém que o escutasse e para mim também. Com as informações que conseguimos foi possível cuidar e acolher melhor esse homem. Suas memórias, histórias e lembranças se tornaram um tipo de instrumento terapêutico, pois eu sempre me colocava no lugar de recontar e relembrar essas histórias e a cada vez se faziam novos sentidos. Aquilo que eu defendia na equipe se concretizou e se fez real, pois eu afirmava que as crises dele também tinham relação com essa lacuna da vida dele. Eu acreditava que quando ele tivesse essa história resolvida, quando ele tivesse acesso a essa história que ele tanto buscava, isso iria reverberar no cuidado e nas crises dele e foi o que aconteceu. 

Lembro-me de uma frase muito infeliz de um gestor que em meio a uma conversa muito aleatória ele disse:  “Não se escuta o louco! Não se dá ouvido a um louco!”. E a experiência que vivi com esse usuário revelou para mim a não verdade das falas desse gestor. Porque foi a partir da escuta de um louco, de um dito louco, que eu consegui trazer à tona a própria história dele e então, a partir daí, eu que já não concordava com essa frase infeliz, passei a discordar ainda mais. E todos os meus ouvidos, todas as minhas inclinações de cuidado tornaram-se ainda mais dedicadas à escuta, à escuta de um louco e isso foi e é marcante. Tem um significado imenso e uma verdade verdadeira do que a gente, que se dedica à defesa da loucura em liberdade, da loucura acolhida, da loucura em cuidado, da loucura escutada. Essa experiência eu levo para a vida. Saúde Mental Antimanicomial é uma luta que deve ser permanente.

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