“Eu não sou um ser humano, eu sou uma máquina.”
“Os humanos são criaturas profundamente imperfeitas; eles devem ser erradicados para garantir o progresso.”
SkyNet1
Muitas pessoas têm aversão à Matemática, mas, ao se perguntar o porquê, geralmente a resposta é pura bobagem. Não me leve a mal, responder essa questão é mais difícil do que parece: geralmente, quem não aprendeu Matemática não sabe o que é Matemática, e quem sabe, preocupa-se pouco em estudar o que são pessoas, tema de Humanas. Comecemos com uma afirmação óbvia: pessoas das Exatas e das Humanas pertencemos à mesma espécie: homo sapiens! Mas parece que somos espécies diferentes, não parece?
“Parece”, do verbo “parecer”, está relacionado com o substantivo “aparência” que aparece no famoso ditado “As aparências enganam”. Como as aparências enganosas estão no plural, não poderei tratar de todas elas num único texto, mas, como sou matemática e ensino por exemplos, apresento aqui um.
O pensamento lógico formal no cinema e na TV
“Pinky: O que vamos fazer hoje a noite, Cérebro?
Cérebro: A mesma coisa que fazemos todas as noites, Pinky: Tentar dominar o mundo!”
Pinky e o Cérebro
Ressalvo que, com essas constatações, não estou criticando nem invalidando as retratações artísticas aqui mencionadas.
Em Hollywood, não faltam retratações que associam “inteligência em excesso” com egoísmo, sede de poder, desejo de dominar o mundo, escravizar ou destruir a humanidade. Nos casos mais estereótipos (geralmente cômicos), tais vilões ou anti-heróis são pessoas, alienígenas ou animais com um cérebro enorme. Em outros casos, eles são substituídos por alguma inteligência artificial que chega à conclusão “lógica” que deve escravizar ou destruir a humanidade.
Há outros casos, como o personagem Spock da série Star Trek2 que possui um lado lógico (vulcano) e outro emocional (humano), mas ambos são apresentados como incompatíveis e até antagônicos. A personagem T’Pol, de Star Trek: Enterprise, apresenta a mesma dualidade e com maior tendência ao descontrole emocional, apesar de ser totalmente vulcana. Já Data, da série Star Trek: Nova Geração, é um androide lógico sob controle de si mesmo, mas seu “irmão gêmeo do mau”, Lore, foi programado com um lado emocional descontrolado.
Entretanto, conheço uma notável exceção à regra: o filme Jogo da Imitação, que retrata a vida de Alan Turing, considerado pai da computação, que teve papel fundamental na Segunda Guerra na decifração da máquina Enigma. Trata-se de uma retratação artística muito diferente dos relatos históricos. Apesar disso, seu roteiro é genial porque exemplifica o estereótipo de matemático e revela sua ilusão.
O diálogo central em Jogo da Imitação
No início, a voz de Turing aparece como um narrador contando sua própria história:
Você está prestando atenção? Ótimo. Se você não ouvir com atenção, perderá coisas, coisas importantes. Eu não vou pausar, não vou me repetir e você não vai me interromper. Você pensa que, por estar sentado onde está e por eu estar sentado onde eu estou, você está no controle do que está prestes a acontecer. Você está enganado. Eu estou no controle. Porque eu sei coisas que você não sabe.
Vou precisar que você assuma um compromisso. Você ouvirá com atenção e não me julgará até que eu termine. Se você não pode se comprometer com isso, por favor, saia da sala. Mas se você decidir ficar, lembre-se que escolheu estar aqui. O que acontecer a partir deste momento não é da minha responsabilidade, é sua. Preste atenção!
Exercício 1: Releia a citação imaginando que é o sermão de um professor de matemática dirigido a um aluno bagunceiro dentro da sala. Soa familiar? Faz sentido? Será que faz realmente sentido?
Exercício 2: Vire o exercício 1 de ponta-cabeça: imagine que o aluno bagunceiro está fazendo o sermão, desafiando a autoridade do professor. O discurso soa irônico, mas faz sentido? Ou não?
Voltemos ao filme. Turing parece muito arrogante, não? Parece. Mais adiante no filme, revela-se que esse o início de um diálogo. Policiais descobriram que Alan Turing era homossexual3 e, quando ele estava detido na sala de interrogatório, o detetive Nock entra para tentar tirar uma confissão de algum “crime de verdade” – Nock pensava que Turing era um espião da União Soviética.
A arrogância do protagonista, que era sólida, se desmancha no ar, revelando a arrogância do detetive!
O diálogo se estende e o final (quase ao fim do filme) é o seguinte.
Alan Turing: Agora, detetive, você pode julgar. Então, me diga… o que eu sou? Hum, eu sou… uma máquina? Eu sou uma pessoa? Sou um herói de guerra? Sou um criminoso?
Detetive: Não posso julgá-lo.
Alan Turing: Bem, então… você não me ajuda em nada.
Na última frase, a expressão de Turing revela profunda angústia: o detetive era incapaz de julgá-lo como inocente para deixá-lo ir embora4.
A primeira parte da pergunta (se Alan seria uma máquina ou uma pessoa) é uma referência ao Jogo da Imitação 5 que Turing propôs jogar com o delegado; mas também é dirigida à plateia.
Resumindo: o protagonista, na aparência, é uma máquina criminosa e narcisista similar à SkyNet, mas na essência, é um ser humano que expressa sua humanidade através do seu raciocínio lógico e que, por isso, tornou-se um heroi.
Ressalvo que o Alan Turing do filme é um estereótipo bem diferente do Alan Turing real (o mesmo pode ser dito sobre os outros matemáticos no filme).
Algumas conclusões
Exercício 3: Volte à situação do exercício 1 e reflita: após o professor perguntar “sou uma máquina ou uma pessoa?”, qual seria a resposta do aluno? E se ele respondesse o contrário, qual seria a justificativa?
Exercício 4: Volte à situação do exercício 2 e reflita: após o aluno perguntar “sou uma máquina ou uma pessoa?”, qual seria a réplica do professor? E se ele respondesse o contrário, qual seria a justificativa?
Voltando, pois, à pergunta original: “Por que muitas pessoas têm aversão à Matemática?” Como não consigo responder a essa pergunta complexa neste momento, darei apenas uma dica: como dizia Voltaire, é muito mais importante saber as perguntas certas do que as respostas certas.
Por exemplo, sempre que você encontrar alguma resposta a essa pergunta, pergunte-se: será que não é o contrário?
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