Pular para o conteúdo
Colunas

Numb3rs: a Matemática além dos números

Reprodução

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

Todas nós usamos a matemática todos os dias: para prever o tempo, para dizer as horas, para lidar com dinheiro. Nós também usamos matemática para analisar crimes, revelar padrões, prever comportamento. Usando números, podemos resolver os grandes mistérios que conhecemos.
Introdução da primeira temporada

 

A péssima educação matemática no ensino básico criou uma visão estereotipada da Matemática. Há 16 anos, a série Numb3rs foi ao ar e fez muitas pessoas pensarem que a matemática ali presente era pura fantasia. Pelo contrário, os modelos apresentados são reais, foram aplicados em casos do mundo concreto e publicados em revistas científicas. Apesar dos defeitos, a produção tem mérito de buscar popularizar a Matemática e combater a ideologia antirracionalista.

Nesse drama policial que foi ao ar entre 2005 e 2009, o gatíssimo Charlie Eppes (David Krumholtz), professor de Matemática Aplicada da “CalSci” (Instituto Científico da Califórnia, fictício), ajuda seu irmão Don Eppes (Rob Morrow), agente do FBI, a resolver crimes aparentemente impossíveis usando métodos matemáticos.

Em defesa da série, os matemáticos Keith J. Devlin e Gary Lorden escreveram o livro The Numbers Behind Numb3rs: Solving Crimes with Mathematics (Os Números por Trás de Numb3rs: Resolvendo Crimes com Matemática), descrevendo como essa ciência tem sido usada para a resolução de crimes reais.

Os problemas da série

Antes de falar nos méritos, há dois aspectos que eu não posso deixar de criticar. São problemas típicos de histórias desse gênero, ainda mais há 15 anos.

O primeiro é a evidente romantização da polícia que é típica de séries e filmes policiais: os policiais são grandes e inequívocos heróis que saem à caça dos vilões malvadões. Assim, trabalho da polícia se resume a uma luta simples e reta do “bem” contra o “mal”.

Eu poderia criticar a série por defender a concepção capitalista de sistema penal e policial, mas não é esse o foco. O problema é a falta de profundidade. Por exemplo, as séries Law & Order e derivadas defendem essa concepção, mas são muito mais realistas, com personagens contraditórias, situações complexas, um sistema cheio de rachaduras e defeitos.

Outro problema da série é o machismo. Como comentou Alice Silverberg, consultora do show e professora de Matemática e Computação Científica,

“[…] sob a lei da Califórnia, Charlie teria passado por duas horas de treinamento obrigatório de prevenção de assédio sexual e saberia que vários aspectos da sua relação com Amita viola as regras.” [1]

Amita (Navi Rawat) é uma estudante prodígio que defende sua tese orientada por Charlie e se envolve romanticamente com ele. Na minha opinião, a história não mostra uma relação abusiva ou de violência, mas relacionamentos desse tipo no mundo real são quase sempre acompanhados de abuso e violência. Por isso, dou razão a Silverberg.

Apesar disso tudo, a escritora Cheryl Heuton, entusiasta da Ciência e da Matemática, não perde seu mérito. A série por ela criada junto a seu marido estava fora de seu controle, o que fica nítido no texto de Silverberg. [1]

Se os problemas citados acima são o que afastam a série da realidade, não posso dizer o mesmo sobre o ambiente quase totalmente dominado por homens na produção científica. Isso é bem real.

A Matemática do mundo real

Quando assistimos a um filme baseado em fatos, não podemos esperar um retrato totalmente fidedigno aos acontecimentos. Assim, é evidente que a série Numb3rs contém exageros e dramatizações, mas ela é mais próxima à Matemática real do que Star Trek o é à Física. Star Trek cria teorias e conceitos fictícios, Numb3rs reproduz teorias e conceitos matemáticos do nosso mundo. Até as fórmulas que aparecem não saíram da cabeça de Heuton, são reais.

Por exemplo, o episódio piloto é baseado em um campo da ciência forense chamado Geographic Profiling (Criação de Perfil Geográfico) que estuda métodos científicos sobre como localizar criminosos em série (assassinos, estupradores, etc). Na série, o método foi concebido por Charlie após ver um esguicho ligado e, logo em seguida, ele criou um software para prever onde o assassino em série morava. No mundo real, esse software [2] foi produzido por Kim Rossmo, criminólogo que é diretor de um centro de inteligência e investigação na Universidade Estatal do Texas. [3] Foram necessários anos de pesquisa de várias pessoas para que esse programa fosse criado.

Eu ouvi pessoas afirmando que o episódio era fantasioso, não pela forma irrealista com que a Matemática é elaborada, mas pela ideia de que seria possível calcular as áreas mais prováveis de moradia de um criminoso com base no local dos crimes. Afinal, isso pressupõe que o comportamento dele segue um padrão, sendo que ele faz um grande esforço para não ser previsível.

Aqui entra a explicação do Charlie, o momento mais brilhante desse episódio. Charlie pede para cinco pessoas se distribuírem aleatoriamente dentro de um espaço determinado por ele. Após elas fazerem isso, ele observa que elas se distribuíram de maneira bastante regular, mantendo uma distância mais ou menos igual entre elas, buscando “preencher” o espaço todo. Daí, ele conclui seu raciocínio lógico: mesmo quando vocês tentaram ser aleatórios, acabaram inconscientemente produzindo um padrão.

Isso pode assustar algumas pessoas. Não gostamos de pensar que seguimos padrões de comportamentos mesmo quando nos esforçamos por não segui-los. Ainda mais quando isso envolve gostos pessoais, dotes artísticos ou nossa maneira de digitar um texto no computador. O curioso, entretanto, é que, na maioria das vezes, nossa vida segue um evidente padrão: nascer, brincar, estudar, trabalhar, casar-se, trabalhar mais, ter filhos, aposentar-se e morrer.

Existem vários aspectos banais que fazem Numb3rs cair no lugar-comum de várias outras séries de televisão. Há um que, pelo contrário, a torna genial e ímpar: a Matemática.

Referências

[1] Silverberg, Alice. Alice in NUMB3RLAND. https://www.math.uci.edu/~asilverb/bibliography/numb3rland.pdf
[2] http://ecricanada.com/products/rigel-analyst/
[3] https://www.cj.txstate.edu/people/faculty/rossmo.html

Marcado como:
matemática / Séries