Por Eduardo Real
Foram quase seis anos dentro de Comunidades Terapêuticas (CTs), em treze ou quatorze internações intercaladas entre 2011 e 2020 e sim, vou contar novamente um trecho dessa história.
Assim que o uso de cocaína se tornou problemático pedi ajuda à minha família, que naquela semana, preocupada, procurou ajuda. Devido ao fato de meus familiares não terem encontrado recursos públicos para o meu cuidado, no município onde moro, eles aceitaram a oferta de um pastor e de um vereador local, que ofereceram uma internação num preço acessível, onde, segundo eles, eu seria curado do vício e também da homossexualidade.
Era um dia qualquer, acho que era de tarde e eu estava acordando depois de virar na balada. Alguém entrou no meu quarto e disse “vamos te levar ao médico”. Me colocaram num carro e fui levado ao pronto socorro psiquiátrico da minha cidade. Não passei por nenhum médico e o vereador apareceu, me abraçou o pescoço e me levou para a sala de medicação e disse que “ia ficar tudo bem”. Um enfermeiro chegou e me aplicou duas injeções, adormeci aos poucos. Tempos depois fui saber que se tratava de Haldol e que não havia nenhum registro de minha passagem no PS naquele dia. Acordei horas depois num galpão onde havia oitenta outros rapazes, no meio de uma chácara no interior de São Paulo. Lá passei sete meses entre grades, muros, trancas, cultos, humilhações, vigilância punitiva, homofobia, abusos, racismo religioso, presenciando inúmeras cenas de violência contra os internos. Todos nós tínhamos medo do “chico doce – jesus cristo”, um pedaço de pau com essas palavras escritas que era usado nas punições aplicadas no “quartinho da oração”, beco que existia ao lado dos banheiros sem porta, onde eram aplicadas penas contra internos que tentavam fuga, que se negavam a orar, que reclamavam ou que tentavam contar pra alguém as atrocidades que aconteciam lá dentro.
Eu gostava dos rapazes que também estavam internados e eles gostavam de mim. Entre cultos e cenas de terror, compartilhávamos nossas experiências no uso, nossas histórias de vida. O problema era os que gostavam um tanto a mais, que tinham desejo e viam no corpo LGBT a possibilidade de alívio. Alguns desses, eram os “monitores”, eleitos pelo pastor, sempre os mais fortes, para vigiar os outros internos e que para os quais, em vários momentos, tive que prestar “favores”. Eu não queria, tinha nojo, tinha medo, mas não podia negar. Como recompensa, tive certos privilégios, como ficar com a cama de baixo do beliche que estava perto da única porta, uma porta com grades, onde os internos se revezavam para respirar um ar menos fétido. Aquilo já era um alívio porque o galpão era quente e quando fazia muito calor tornava-se um inferno, principalmente por conta do cheiro podre que saía da traqueostomia de um companheiro que estava ali há dois anos sem nenhum cuidado a não ser dos outros internos.
Dentre todas as pessoas que estavam ali, nunca vou me esquecer da Renata (como ela realmente se chamava) e da Alexandre, ou seja, uma travesti e uma mona, que ao longo dos sete meses que fiquei na Comunidade Terapêutica (CT), eu as vi chegar. Renata era travesti, mas tinha que ser Renan ali dentro, pois no momento em que chegou suas roupas foram queimadas e seu cabelo cortado em frente a todos nós, que ainda por cima, além de obrigados a olhar, éramos obrigados a orar. Já a Alexandre era um rapaz gay, com problema sério relacionado à obesidade e se sentia muito envergonhado com isso. Alexandre, filho de evangélicos, dizia sempre que seus pais a odiavam e também sempre falava em morrer. Dito e feito, tempos depois soube, que Alexandre assim que saiu dali, suicidou-se. Éramos as bichas da CT e isso nos rendeu até um certo prestígio, porque nos tornamos a descontração em meio ao inferno que aquele lugar era para todos nós. Só não tínhamos prestígio com o pastor e seus internos designados a dar cultos, esses não perdiam a oportunidade de nos condenar e nos expor nos cultos. Isso quando não tínhamos que passar as madrugadas sendo humilhados durante os “cultos vigília” que aconteciam a cada 30 dias, onde vários outros pastores e fiéis vinham para um insuportável e interminável culto que ia até de manhã. Nessas ocasiões, a disciplina que tínhamos que ter era militar. Ficávamos de pé no salão onde acontecia a vigília, separados dos outros fiéis e não podíamos de forma nenhuma ter contato uns com os outros, desse modo, a vigilância era redobrada. Qualquer falha era “chico doce – jesus cristo”. Muitas coisas aconteceram ali e precisaria de muitas páginas para narrar, mas vamos seguir. Sete meses se passaram, consegui sair de lá após meu pai ver eu tomando um tapa na cara por ter pedido na visita para ir embora. Fora dali, arrasado, voltei imediatamente ao uso de substâncias, de uma forma muito mais problemática. Não podia nunca mais deixar alguém saber que tinha retornado a usar, pois o medo era grande de retornar para aquele buraco, então passei a usar na rua e assim conheci o crack. Em muitos momentos a rua era meu porto seguro contra a possibilidade de voltar àquele espaço, por outro lado também era um abrigo contra os olhares decepcionados. Sim, porque enquanto eu não parasse de “dar problema e virasse homem” como diziam os pastores, eu não passava de uma decepção e vesti aquela roupa muitas vezes.
As coisas se tonaram cíclicas. Uso de substâncias, rua, internação, pedir para ser internado. As outras Comunidades Terapêuticas (CTs) que passei posteriormente, vivenciei ou presenciei situações parecidas ou até mais graves, a diferença é que criei formas de passar batido e assim, apanhar menos. Por exemplo, numa delas, acordava diariamente com todos os internos da casa orando em volta da minha cama, pois segundo o “terapeuta”, era necessário expulsar o “espírito de Pomba-Gira” que me acompanhava, responsável por eu ser homossexual. Nessa mesma CT, não permitiram que eu presenteasse mamãe numa visita, pois segundo os monitores, em uma explicação dada a ela no dia da visita, o artesanato que eu tinha feito para presenteá-la era uma “macumba” que iria matá-la. Em outra dessas supostas comunidades terapêuticas, presenciei o pastor praticar tiro ao alvo com armas de fogo real, com internos de confiança, que também eram levados para trabalhar em canteiros de obras. A última internação, foi em 2020, interior de São Paulo também, foi onde tive minha última internação em uma Comunidade Terapêutica. Era contrato de um mês e quando terminou o contrato pedi pra ir embora. Não queriam deixar eu sair, diziam que minha família havia assinado contrato de 6 meses e o contrato que eu havia assinado estava anulado. Sem acordo, gritei pela polícia, mesmo sabendo que ninguém ouviria, porque estava no meio do mato. Nesse momento fui espancado por 11 internos a mando do “terapeuta”. Minha família não podia falar comigo e era extorquida, diziam que se eu não ficasse 6 meses eu não iria ter salvação, entre outras justificativas que trouxeram grande desconfiança a meus familiares, que já tinham muita mais experiência nessas internações e a respeito dessas instituições depois de tudo que passamos pelas anteriores. Dois dias depois do espancamento, eu estava irreconhecível e fui “resgatado” por um familiar que achou muito estranho que a instituição negasse a comunicação dos internos com seus familiares.
Tirando a primeira internação em Comunidade Terapêutica, que foi “involuntária”, as sequentes foram todas “voluntárias” e preciso fazer dois apontamentos sobre isso. Primeiramente, moro na da grande São Paulo, num município de quase 800 mil habitantes que conta apenas com 1 (um) CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e Outras Drogas), nível II, ou seja, um dispositivo da Rede de Atenção Psicossocial, que funciona sem leitos e somente em horário comercial. Fica longe das periferias da cidade, sempre sucateado e impossibilitado de atender a grande demanda de um município com grande oferta de substâncias como cocaína e crack. Além disso, não temos leitos em saúde mental em hospital geral e os únicos leitos estão em celas apertadas e superlotadas num local que antes era uma delegacia e agora é o Pronto Socorro que atende “psiquiatria”. Ou seja, somos praticamente empurrados a buscar o “setor privado”, que inclusive tem seus proprietários inseridos na máquina pública, como vereadores e comissionados em altos cargos.
O segundo apontamento é sobre o termo “voluntariedade”. Se o Estado não garante alternativas de cuidado público, no território, integral, equânime, laico, no SUS e em liberdade, no âmbito da Saúde, como consta, no que depois vim conhecer como Lei 10.216, de 2001, principalmente nos momentos que temos agravamento de nossa condição de saúde, então sempre será INvoluntária nossa busca por esse tipo de equipamento, mesmo que sejamos nós que acessamos o site ou a igreja, que combinamos com o captador, que caminhamos pela estrada de terra até a chácara cercada de fios eletrificados, tudo sem interferência da família, de um alguém ou do estado. É uma alienação pensar que as/es/os ingressas/es/os escolhem de forma voluntária e sinto muito por isso. A princípio, eu e meus familiares acreditávamos que a Comunidade Terapêutica era a única possibilidade de “tratamento”, pois não conhecíamos outras e as que estavam disponíveis, como o CAPS AD daqui, não eram acolhedoras, principalmente nos momentos críticos. Buscar uma internação, mesmo sabendo das violências que a constituíam, era pra nós a única alternativa, num Estado que não chega aos rincões do país, com políticas públicas para o cuidado de pessoas em uso de substâncias.
Porém, por sorte ou desespero em conhecer formas de não mais passar por aquilo tudo, conheci a Luta Antimanicomial, por volta de 2014 e me agarrei nessa ideia. Tudo começou a fazer sentido a partir dali. Nas Comunidades Terapêuticas, algo me incomodava, eu não sabia explicar, algo além das violências sofridas, e a Luta Antimanicomial trouxe o entendimento deste incômodo. Eu estava em manicômios, manicomializado e quando estava fora dos muros, mesmo sem estar internado, eu era alvo. Entender aquilo foi um grande impacto.
O tempo foi passando e, aos poucos, laços foram sendo criados e experimentei outras práticas de cuidado, não mais as manicomiais. Conheci pares e pessoas queridas de luta, que hoje constituem minha rede de apoio, com grandes histórias compartilhadas. A Luta Antimanicomial e a Luta Antiproibicionista se tornaram minha terapia mais bem sucedida, sem me agredir, sem me humilhar, sem me excluir. Apesar de, mesmo depois de conhecer a luta, ainda ter vivenciado internações devido à precariedade de meu território, a minha realidade se transformou e não posso negar que me tornei privilegiado entre tantos que carregam as mesmas condições que carrego.
Adentrar nas Lutas Sociais fez com que eu entendesse como sujeito de direitos, como parte das políticas e das lutas. Tornou-se, além de um privilégio, um grande recurso de sobrevivência, diante do iminente perigo que nós, pessoas usuárias dos serviços substitutivos aos manicômios e nós pessoas usuárias de substâncias sofremos de morte ou silenciamento total. Perigos que nos assombra e que ficam à espreita, se autoproclamando “comunidade”, oferecendo uma enganosa “terapêutica” ao povo usurpado de Direitos.
Ter conhecimento real do que são as instituições asilares me causa estranheza com coisas que antes me passavam despercebidas ou que não me provocavam interesse, como por exemplo, o papel dos governos e o propósito destes na existência e no funcionamento das Comunidades Terapêuticas, ou melhor dizendo, nos Novos Manicômios, regulamentados ou clandestinos, onde mais de 200 mil outros sujeitos estão neste momento encarcerados e segregados, no que considero o segundo sistema prisional brasileiro.
No Brasil estas instituições, do período da Ditadura Militar até os dias de hoje, recebem grandes incentivos dos governos e podemos até compreender que em contextos passados houve maior dificuldade para reverter essa lógica. Entretanto, é difícil compreender nos dias de hoje, com as diversas denúncias, estudos que comprovam sua ineficácia e os diversos Relatórios oficiais (Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção de Combate à Tortura, Relatório do Conselho Federal de Psicologia, Relatórios de Conselhos Regionais de Psicologia, entre outros) que denunciam as inúmeras violências e violações de direitos, na contramão de todas as recomendações de organismos nacionais e internacionais, como o Brasil continua a manter, financiar e subsidiar, via Estado, esses espaços de segregação, tortura e morte.
Essa contradição em um governo progressista, ainda que de frente ampla, me traz incômodos maiores do que se fosse em um governo, assumidamente, fascista, contrário abertamente aos direitos das ditas minorias, manicomialista e higienista. É surpreendente esta lógica de que o sofrimento psicossocial demanda uma suposta cura e que está sendo mantida por um governo que, nos discursos, prometeu a garantia dos direitos e reparação histórica às minorias. O que vemos, ao contrário, é a barganha pela garantia de “governabilidade”, que atinge os corpos loucos, considerados por grande parte da sociedade como indesejáveis, corpos que a existência denuncia as mazelas desse sistema podre.
Por isso, conto minha história repetidas vezes, enquanto posso. É necessário que todas as pessoas da sociedade e do governo ouçam, que se sintam incomodados, que percebam as torturas, o descaso, a indiferença e o sofrimento pelos quais passamos, que percam o sono. É necessário ouvir esse grito de quem passou por muito tempo amordaçado. Sei da dificuldade de muitos, em ver um alguém apontado pelos laudos como louco fora dos manicômios, trazendo uma áspera sensatez que causa incômodo, podem até dizer que estou me fazendo de vítima – não estou. Luto para que nossas vozes ecoem. É necessário contar nossas histórias reais, nossas histórias de dor, histórias que a justiça não foi feita, por mais que sejam incômodas… É necessário ouvir quem passou por isso e buscar reparação. É necessário entender que aqueles que passaram por internações e violências nos velhos e novos manicômios, apanharam tanto, que normalizaram a violência sobre seus corpos. É necessário coragem para enfrentar a barganha com os corpos incômodos. É necessário libertar as pessoas loucas.
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