No Brasil, as equipes multiprofissionais integram a Atenção Primária à Saúde (APS) ou Atenção Básica (AB) desde 2008. O objetivo é fortalecer a resolutividade e a qualidade das ações e dos serviços da Estratégia Saúde da Família (ESF), que organiza a APS/AB, e fomentar a construção de um novo modelo de saúde, numa perspectiva integral, de base territorial-comunitária, a partir das necessidades da população.
Contudo, a expansão da ESF nos municípios brasileiros apresenta inúmeros desafios, principalmente no que diz respeito à capacidade efetiva da gestão de cuidado em consonância com as demandas e as necessidades de saúde dos indivíduos e grupos sociais de cada território. Destaca-se a importância de repensar processos de trabalho por meio de diferentes tecnologias de cuidado e da articulação com profissionais que pudessem apoiar as equipes de Saúde da Família (eSF) no cuidado à população.
É neste cenário que o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), como inicialmente denominado, se constitui como equipe multiprofissional. Ele deve atuar a partir da lógica interdisciplinar, do apoio matricial e do princípio da integralidade da atenção à saúde com o objetivo central de ampliar o escopo de práticas desenvolvidas pela eSF e de superar lógica do cuidado fragmentado historicamente estabelecido. Fazem parte destas equipes diferentes categorias profissionais, como por exemplo: Assistente Social; Nutricionista; Psicólogo; Fisioterapeuta; Fonoaudiólogo e Terapeuta Ocupacional.
Em 2011, com algumas atualizações da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), o NASF começou a fazer parte do conteúdo integrante desta política. Ressaltou-se neste documento, sobretudo, a importância dos processos de trabalho das equipes NASF apresentarem como pressupostos o apoio matricial, a articulação com a rede intersetorial dos territórios e a construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), que se configuram como estratégias para descortinar demandas anteriormente não identificadas, para qualificar as ações já realizadas e para fortalecer as equipes mínimas de saúde da família.
Em 2017, a PNAB foi novamente revisada e o conceito de “Apoio”, que desde 2008 acompanhava a sigla do NASF, foi substituído pela palavra “Ampliado”. Somada a essa mudança, o documento revisado não menciona o conceito de apoio matricial e permite que as equipes – agora nomeadas por Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) sejam vinculadas às equipes de Atenção Básica (modalidades de equipes reconhecidas pela PNAB, mas que representam um retrocesso à expansão do modelo prioritário da ESF).
O NASF-AB também foi alvo dos intensos desmontes das políticas públicas, principalmente nos últimos seis anos, pós-golpe. Por exemplo, destacamos em 2019, a publicação da Portaria nº 2.979, que institui o novo modelo de financiamento de custeio da APS no âmbito do SUS (Previne Brasil) e não incluiu a atuação dos profissionais do NASF-AB para alcançar as metas estabelecidas pelos indicadores de desempenho. Nesse aspecto, essa forma de financiamento impossibilitou o credenciamento e a manutenção destas equipes na maior parte dos municípios brasileiros, visto que foram excluídas do rol das ações financiadas com recursos federais. Cabe ressaltar, que tal normativa não só exclui o NASF, mas expressa e reitera, na sua própria natureza, os ditames neoliberais, gerencialistas/empresariais nas políticas que vêm marcando o próprio subfinanciamento ou desfinanciamento de tais políticas.
No contexto do Distrito Federal, localidade de trabalho e vida da autora e do autor, diferentemente da maior parte das unidades federativas, as atividades e as ações das equipes NASF-AB foram mantidas e financiadas por meio de recursos próprios do DF. Além disso, trazemos tal exemplo concreto para destacar que isto não se deu de maneira automática, mas foi resultado de intensa mobilização dos trabalhadores da assistência e da gestão, bem como dos usuários do SUS, conseguindo a manutenção destas equipes, mesmo em um contexto de acirramento da lógica neoliberal e da mercantilização dos serviços da saúde.
No dia 22 de maio de 2023, com a publicação da Portaria GM/MS nº 635, é novamente instituído e definido o incentivo financeiro federal de implantação, custeio e desempenho para as equipes NASF-AB. Para além de possibilitar, novamente, o financiamento do NASF-AB pelo ente federal, a normativa trouxe muitas novidades, com uma outra nomenclatura: Equipes Multiprofissionais na Atenção Primária à Saúde (eMulti). Além disso: aumentou-se o custeio de financiamento para as equipes multiprofissionais; incluiu-se novas especialidades médicas (cardiologia, dermatologia, endocrinologia, hansenologia e infectologia) na composição das equipes; acrescentou-se o arranjo de atendimento remoto como ferramenta tecnológica para otimização do processo de trabalho; ampliou-se a carga horária para 300 horas semanais para as equipes da modalidade ampliada.
Não restam dúvidas dos ganhos significativos da retomada desta Portaria, principalmente quando o cenário anterior estava atravessado por intensas desmobilizações das equipes multiprofissionais no âmbito da APS/AB e por ações descontinuadas das políticas públicas, tendo em vista os cortes bilionários, o congelamento do teto de gastos e o recrudescimento de uma agenda privatista e contrarreformista no setor saúde, que tinha como estratégia final o desmonte da ESF e do SUS. No entanto, é importante não perder de vista os tensionamentos e as contradições inerentes da própria construção de políticas públicas no contexto brasileiro, expressas na própria Portaria. Algumas preocupações serão levantadas aqui como a finalidade de provocar crítica e diálogo com as instâncias governamentais e com os movimentos sociais, características presentes na atual gestão do Ministério da Saúde, em contraposição aos governos anteriores, na tentativa de reconstruir, de fato, um modelo de atenção que seja orientado à integralidade e construído coletivamente.
A primeira preocupação consiste em um risco iminente de ambulatorização e especialização do trabalho da eMulti com a inclusão de mais de quatro especialidades médicas na composição destas equipes, sobretudo quando a Portaria preconiza uma carga mínima de 10 horas para essas categorias. Algo importante a ser considerado também se relaciona à ampliação da carga horária para 300 horas, o que pressupõe aumento da quantidade de profissionais em uma mesma equipe, sendo que isto não é automático ou garantido, o que, por sua vez, pode significar crescimento da demanda, intensificação do trabalho etc. Nesse ponto, questiona-se: como os processos de trabalho serão organizados e executados, levando em consideração a presença de tantos profissionais em uma mesma equipe e a centralidade histórica do modelo hegemônico de cuidado?
Embora o apoio matricial tenha sido apresentado nas diretrizes da nova Portaria, essa ferramenta de cuidado não foi pontuada ao longo do texto como organizadora dos processos de trabalhos das equipes, com o perigo de tornar o cuidado fragmentado e não norteado na interprofissionalidade e integralidade. E, por fim, a apresentação de indicadores de pagamento por desempenho mantém uma perspectiva gerencialista, empresarial e pautada na lógica do produtivismo, principalmente quando a realidade da gestão dos diversos municípios tem sido realizada via Organizações Sociais de Saúde (OSS).
Compreende-se que tal normativa não possui pretensões de contemplar a complexidade das intervenções desenvolvidas pelas equipes multiprofissionais nos diversos territórios e comunidades brasileiras. Nesse sentido, devido ao seu caráter contraditório e às preocupações aqui levantadas, torna-se necessário que a implementação da eMulti seja realizada de forma democrática e dialogada, a partir de uma rede de provocações com os diferentes atores da sociedade civil, com vistas a tornar esse processo mais participativo e alinhado com todas as potências e com o percurso histórico das equipes multiprofissionais na APS/AB. Por outro lado, tais ponderações só reforçam como o Ministério da Saúde não pode estar nas mãos do “centrão”, para que as contradições sejam sanadas, e as potencialidades ainda mais intensificadas, numa direção de fortalecimento do SUS.
Letícia Coelho é psicóloga e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da UnB. Integrante do Grupo Saúde Mental e Militância no Distrito Federal (GSMM-DF).
Pedro Costa é Professor de Psicologia na UnB. Coordenador do Grupo Saúde Mental e Militância no Distrito Federal (GSMM-DF). Militante da Resistência DF.
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