“Estamos bem cientes de que o movimento comunista
não poderá ser arruinado por um punhado de
fraseômanos alemães. Mas, ainda assim, […]
é necessário contrapor-se a todas as
fraseologias que possam enfraquecer e diluir
ainda mais a consciência da oposição total
entre o comunismo e a ordem mundial vigente.” [1]
Enquanto viviam em Bruxelas, escrevendo textos que postumamente seriam publicados como “A Ideologia Alemã”, Marx e Engels se bateram contra o “Socialismo Verdadeiro”. Trata-se de uma corrente política com pegada sentimentalista que informava quase todo pensamento socialista alemão e naquele momento aumentava sua influência sobre a classe trabalhadora. Os “socialistas verdadeiros” eram avessos à luta política, entendendo que a difusão de uma nova forma de pensar e sentir é que produziria as transformações que buscavam nas relações humanas.
Eles foram bastante inspirados nos escritos de Feuerbach. Este feroz crítico da religião entendia que a humanidade possuía uma essência que, se liberada, produziria laços de amor e amizade entre as pessoas. Moses Hess, que foi um dos primeiros alemães a se tornar comunista [2] no início dos anos 1840 e influenciou Marx nesse sentido [3], passou a discutir o comunismo justamente fazendo referência a essa essência humana. O capitalismo, pensava Hess, promovendo a busca pelo lucro e a concorrência, gera indivíduos isolados e egoístas. Isso afasta as pessoas de sua essência que estaria em trabalhar de forma harmoniosa, livre e prazerosa. Em sua “Confissão comunista de fé”, Hess escreveu: “Que religião devemos todos nós professar? A religião do Amor e da Humanidade. Onde está a evidência dessa religião?? No peito de todas as boas pessoas.” [4] A mudança desse estado de coisas não viria, para o comunista Moses Hess, através de um movimento revolucionário, mas da difusão da instrução, do amor e de uma reorganização pacífica do trabalho [5].
Para Marx (aqui, sempre com Engels), os Socialistas Verdadeiros possuem uma visão ingênua e mitificada da natureza e da consciência humana. Entendem que comunismo e socialismo são problemas de ordem filosófica, quando na verdade tem a ver com o movimento político de uma classe de sujeitos, o proletariado. Fazem parte da terrível tradição alemã de pensamento na qual não se observa as reais condições de vida das pessoas. Não pensam os problemas sociais em termos de classe, ou seja, de pessoas em certas situações e relações concretas, mas em termos de “homem” – o humano pensado abstratamente. No lugar da luta, eles pautam a filantropia reduzindo socialismo a uma questão de solidariedade humana. Chegam a rejeitar a luta por direitos [6]. O Socialismo Verdadeiro, segundo Marx, é uma doutrina não para proletários, mas para pequeno-burgueses e filósofos impotentes. Marx lamenta a situação alemã onde a falta de lutas reais acaba gerando um movimento que no fundo é apenas literário, e que acredita que o mundo pode ser criado ou destruído a partir da forma em que se pensa sobre ele [7].
O Socialismo Verdadeiro, que bebeu na filosofia antirreligiosa de Feuerbach, poderia também tomar uma forma religiosa, como em Georg Kuhlmann, que, com seu apelo à paciência e à calma, preconizava nada menos que o Reino de Deus contrapondo-o ao sistema capitalista. Alguns adjetivos que Marx reservou a Kuhlmann foram “profeta”, “padreco”, “charlatão” e “impostor”. Ironizando o papel que Kuhlmann se auto-atribuía, diz Marx que a transformação do mundo viria da cabeça de um eleito, “e o destino do mundo depende de que essa cabeça única, que possui toda sabedoria […], não seja mortalmente atingida por uma pedra realista antes de ter feito suas revelações” [8]. No final, Kuhlmann seria um hipócrita pietista, que procurava apenas ativar as glândulas lacrimais das pessoas. Sua visão para uma transformação do mundo cômoda e tranquila é calcada na covardia e aplaudida apenas por “dorminhocos”, que se negam a enxergar o movimento real que poderia levar à revolução [9]. Sua doutrina
“…serve de consolo para as criaturas pacientes que não sentem energia suficiente dentro de si mesmas a fim de explodir essas montanhas com pólvora natural; é fonte de confiança para os cegos e vacilantes que não conseguem ver o nexo concreto entre as manifestações ainda muito esparsas do movimento revolucionário” [10]
Mas no momento em que Marx escrevia, o nome mais influente do Socialismo Verdadeiro era Karl Grün [11]. Mais que isso, segundo o historiador Jonathan Sperber, que pesquisou os revolucionários alemães dessa época, Grün era a principal referência comunista para os alemães da década de 1840. Ele tinha características comuns a Marx: com quase a mesma idade (entre 27 e 29 anos, no período aqui em tela), ambos eram ateus e socialistas, ambos haviam sofrido bloqueios pela repressão nas carreiras universitária e jornalística, seguidas de exílio. Marx e Engels disputavam com Grün a influência sobre trabalhadores alemães que viviam em Paris. Engels chegou a viajar para lá em agosto de 1846 apenas para combater o trabalho do adversário junto às sociedades secretas do proletariado, e Marx tentou difamá-lo como charlatão de forma a afastá-lo de Proudhon (que era muito influente entre operários franceses). Grün não poupou Marx na imprensa, com uma acusação que se repetiria na vida de Marx inúmeras vezes vindas de outras pessoas: a de que se tratava de um autoritário que não permitia que circulassem ideias socialistas diferentes das suas. A querela não foi das mais elegantes: quando teve seu livro criticado, lembrou que pelo menos ele, Grün, havia publicado algo que era muito lido, diferente de Marx que nunca conseguia terminar nenhum escrito. Também disse que Marx era um fanático, que andava despenteado, desalinhado e que era incapaz de sustentar sua família. Marx, por sua vez, chamava Grün de plagiário. Certa feita, devolveu dinheiro a sócios afirmando que não era nenhum Karl Grün, que de fato tinha fama de uso inescrupuloso das finanças [12].
Entre as diferenças de ideias entre eles, está, como o próprio Grün já havia colocado, que Marx entendia a necessidade de uma revolução violenta. Além disso, Marx aponta que são importantes questões como produção, consumo e relações de produção e que, por não saber nada sobre essas coisas, Grün se refugia no esconderijo dos socialistas verdadeiros que é a essência humana[13]. As próprias concepções de Marx sobre as temáticas que julga relevantes não são propriamente desenvolvidas nessa parte dos escritos. Antes, como é uma forte característica sua e de Engels, ele se dedica a desqualificações do seu adversário, como a de que Grün não teria de fato compreendido os autores em que se baseia ou critica[14].
Fora do conjunto de textos mais tarde conhecidos como Ideologia Alemã, Marx, Engels e outros comunistas escreveram um importante documento chamado “Circular contra Kriege”. O sujeito em questão editava um jornal alemão em Nova Iorque e advogava as teses sentimentalistas do Socialismo Verdadeiro. Com essa circular, Marx e seu grupo estavam abertamente lutando pela definição de comunismo. Kriege colocava que os comunistas não pretendiam tomar a propriedade privada de ninguém, mas apenas que o trabalhador pudesse viver dignamente. Ele entendia que com certo pedaço de terra destinada a cada família todos poderiam viver em comunhão. Na leitura de Marx, o comunismo era definido por Kriege simplesmente como amor e altruísmo[15].
Existe uma pequena discussão entre autores sobre se tal ou qual figura histórica do socialismo alemão poderia ou não ser classificada como “socialista verdadeiro”. Da nossa parte, o interesse é a produção de Marx e Engels no âmbito da Ideologia Alemã, onde seus alvos principais, mas não únicos, foram os discutidos acima. A questão dos Socialistas Verdadeiros continuaria nos anos seguintes. Ela foi retomada em um dos principais escritos de Marx e Engels, o Manifesto Comunista. Quando a revolução estourou na Alemanha em 1848, Engels acusou os Socialistas Verdadeiros de trair os objetivos revolucionários com sua adornada poesia[16]. Marx os chamou de lacaios do governo alemão[17]. Mais de vinte anos mais tarde, no âmbito da associação internacional de trabalhadores que ajudaram a criar, Marx e Engels ainda se viam polemizando contra essa tendência[18].
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