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BRASIL

Um relato sobre junho de 2013

Arielli Tavares, de São Paulo (SP)
Arquivo Pessoal

Vivi intensamente cada momento das jornadas de junho de 2013. Por isso, falar desse ano para mim é muito mais do que uma análise fria e distanciada dos acontecimentos.

Além da euforia de viver um grande ascenso, foi naquele ano que me apaixonei pelo meu companheiro e pai dos meus dois filhos, com quem vivo até hoje.

Foi quando me mudei para uma república na Alameda Barros com uma carioca e uma maceioense, que são minhas maiores amigas e referências (além de ter a experiência de dividir o espaço com muitos agregados que passaram por aquele pequeno-grande apartamento).

Refletir sobre o que foram esses 10 anos é também, portanto, uma celebração dos amores, das amizades, das expectativas, dos medos e frustrações que marcaram minha juventude.

Por isso mesmo, demorei o mês todo para conseguir escrever esse texto. Ele veio se apresentando por partes que agora divido com vocês e espero que, de alguma forma, possa contribuir com as reflexões que estão sendo feitas a partir de um relato da minha experiência pessoal.

Quando as manifestações começaram, eu já tinha uma trajetória no movimento estudantil da USP.

Já tinha passado pela gestão do centro acadêmico, estava na minha terceira gestão do DCE e já tinha passado por algumas mobilizações estudantis. Posso dizer que, entre os mais jovens de nós, eu já era uma das veteranas.

Junho de 2013, no entanto, chegou como uma avalanche.

Não é que não estivéssemos, eu e meus companheiros, esperando que algo assim acontecesse no Brasil. Ao contrário, acompanhávamos com muita atenção todas as manifestações que aconteciam no mundo e estávamos empenhados em desenvolver todas as mobilizações progressivas que estavam ao nosso alcance.

Mas, ao mesmo tempo que encheu de ânimo, junho também frustrou uma boa parte das idealizações e esquemas que tínhamos, de como seria quando o ascenso por aqui finalmente acontecesse depois de tantos anos de estabilidade.

Para começar, acho justo demarcar que, nada teria sido como foi, não fosse a condução e liderança do MPL em São Paulo. Ao contrário da narrativa de uma pretensa espontaneidade das massas nas ruas, todo o processo foi conduzido, pelo menos até a derrubada do aumento da tarifa, de acordo com os planos deles.

Ocorriam reuniões algumas horas antes dos atos onde eu e alguns outros companheiros de outras correntes éramos informados sobre o trajeto, a data da próxima manifestação e outros detalhes da luta. Haviam debates sobre propostas distintas, mas a verdade é que, embora o ego tenha a tendência em dizer o contrário, nossa influência era mínima. Mas, mesmo que seja difícil admitir, devo dizer: que bom que foi assim.

Muito além da autoridade conquistada em torno da pauta, eles apresentaram também um plano de ação. Nesse sentido, diferiam de um vício que muitos de nós carregávamos: o de gastar muito tempo debatendo análises sobre a realidade brasileira e suas pautas, e pouquíssimo tempo refletindo sobre como colocá-las em prática. Ou seja, eles souberam traduzir a luta ideológica em torno do aumento da passagem e da ideia do transporte como um direito que deveria ser gratuito na batalha pela ocupação do espaço público, na mobilização direta de alguns milhares de jovens e na ação prática da manifestação de rua.

Confesso que tinha um certo constrangimento ao participar daquelas reuniões que antecederam os atos porque não conhecia de fato boa parte das ruas que iríamos passar com a manifestação, na realidade não tinha como opinar. Durante muito tempo pensei que era por eu vir do interior, não ter crescido aqui. Mas hoje, reconheço que esse processo não foi individual, mas coletivo.

Foi junho que apresentou a mim e a centenas de ativistas, pela primeira vez, a cidade e suas ruas como campo de batalha, usando como método de luta a ocupação das principais vias da cidade. Foi por isso que era tão central para os governos impedirem que os manifestantes se aproximassem da Avenida Paulista e fossem tão duramente reprimidos naquele 13 de junho.

Foi fundamental para a vitória da luta contra o aumento a decisão de chamar atos com pouquíssimos dias de distância (os dois primeiros atos foram chamados em dias consecutivos, 6 e 7 de junho), em aceitar nenhuma proposta que não fosse a diminuição da passagem, em não permitir nenhum tipo de carro de som e utilizar o método do jogral para comunicar os próximos passos para os ativistas e, até mesmo, legitimar a participação e negar a criminalização dos jovens encapuzados que fizeram parte das primeiras manifestações (embora houvesse também certa ingenuidade nisso que cobraria seu preço mais adiante).

Para além das questões mais de fundo que já foram extensivamente exploradas em outros textos e análises que explicam algumas das razões sobre porque tivemos um ascenso no país, acredito que essas decisões, que partiram essencialmente do MPL e com as quais, em algumas, polemizei frontalmente, estavam muito corretas e foram essenciais para a vitória. A partir delas, foi possível que a luta se conectasse com um setor amplo do ativismo e com a estética de mobilizações que estavam ocorrendo ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, ao transmitir a ideia de que o movimento não podia ser controlado por nenhuma liderança, foi possível acuar os governos e conquistar a vitória.

Mas essa não foi a única mensagem que os manifestantes foram capazes de transmitir, também demonstramos disciplina e capacidade de organização.

Uma das acusações que foram feitas depois do primeiro ato era de que ele havia terminado em baderna por culpa dos manifestantes, com depredação do patrimônio público. Naquele dia 7 de junho, portanto, nosso desafio era começar e terminar o ato sem que houvesse justificativa para a repressão. Sairíamos e retornaríamos para o mesmo ponto de onde iniciamos a passeata. E assim, o fizemos: saímos do Largo da Batata em direção à Marginal Pinheiros. Quando estávamos nos aproximando da alça de acesso à marginal, vimos que ela estava fechada por motos da polícia militar enfileiradas, que indicavam que aquele era um trajeto intransponível.

Lembro como se fosse hoje da angústia de dirigentes mais experientes que se aproximaram e pediram que recuássemos, que era uma loucura, que ao menos a coluna do movimento que eu fazia parte não seguisse a caminhada. Mas nos mantivemos em marcha, desafiamos a autoridade da polícia seguindo o ato entre as motos que não podiam nos conter, como se lhes escapássemos entre os dedos das mãos (talvez isso explique um pouco da agressividade com que reagiram nas manifestações seguintes). Terminamos a manifestação conforme o objetivo inicial, no mesmo Largo da Batata de onde saímos.

A manifestação seguinte, no dia 11 de junho, saiu do Teatro Municipal em direção ao Terminal Parque Dom Pedro e foi novamente marcada pela repressão, mas nada que possa comparar ao que presenciamos naquele 13 de junho.

Eu estava na frente do ato quando a repressão começou e, por isso, me perdi da coluna do movimento que fazia parte e segui a caminhada em direção à Avenida Paulista acompanhada apenas de mais um camarada.

Recebi com indignação a ordem de que deveria me afastar o quanto antes da Avenida Paulista e procurar abrigo. Só parei de andar quando me aproximei da Avenida e vi que dessa vez era a cavalaria da tropa de choque que aguardava os poucos que tinham conseguido atravessar o bloqueio no início da Consolação e que a ampla maioria dos ativistas estava sendo caçada e presa. Embora parecêssemos muitos nas ruas e que talvez pudéssemos retomar o ato, o fato era que a manifestação já havia sido dispersada e não havia outra saída a não ser recuar.

A repressão era muito intensa e havia muito medo entre os nossos, as bombas de efeito moral causavam pânico e muitos de nós queriam correr imediatamente após os disparos das primeiras em direção aos manifestantes. Por isso, estava empenhada em demonstrar outra atitude, era preciso coragem para enfrentar a repressão de cabeça erguida, ter certeza de que o ato tinha acabado antes de preparar um recuo, cheguei a pensar que era uma vergonha que nenhum dos nossos camaradas tivesse sido preso naquele dia.

Hoje, reconheço nesse pensamento uma imensa ingenuidade, digna dos privilégios da classe média branca que só tinha experimentado as lutas dentro da Universidade de São Paulo. Mas também reflito sobre outra lição que demorei a compreender.

Como já destaquei, foi fundamental para o sucesso da luta que ela estivesse imbuída de um plano prático, de ação. Sem isso, não seria possível vencer. Por outro lado, não é nas ações em si que o futuro da luta se define, mas no impacto que essas ações coletivas têm sobre a consciência das massas. Nesse sentido, as ações individuais têm valor se elas têm capacidade de impactar o coletivo, se elas conseguem se conectar com a indignação de milhares e, desse modo, vencer a disputa da opinião pública. E foi isso que, embora o ato em si e, portanto, nossa ação prática tivesse sido derrotada no seu objetivo que era alcançar a Paulista, fomos nós que saímos vitoriosos naquele dia.

E chegamos ao dia 17 de junho.

Lembro-me de sentir que, naquele dia, toda a cidade estava se manifestando. Não importava mais o trajeto do ato, não importava em que lugar você estivesse, a cidade pulsava a luta, todos estavam conectados com o que estava acontecendo naquele momento. Lembro-me também da euforia de atender uma ligação enquanto caminhava no meio da Marginal Pinheiros e ser informada de que era muito maior, que haviam manifestações em todo o país, que o Palácio do Planalto tinha sido ocupado. Finalmente, estava testemunhando um grande ascenso.

No entanto, acho que nunca vou conseguir expressar o sentimento de participar da maior manifestação da minha vida e, ao mesmo tempo, ser rechaçada por ela. Tínhamos esperado por esse momento por tanto tempo, era um esforço hercúleo desenvolver as demandas que surgiam de modo que pudessem se generalizar e chegássemos até ali. Estávamos tão orgulhosos que levamos uma bandeira enorme que destacava em letras garrafais o nome do nosso movimento. Era preciso demarcar nossa marca, nossa bandeira, tal qual a chegada do homem à lua. Queríamos mostrar a todos que estávamos lá, que entendíamos e apoiávamos sua indignação.

O que dizer então da sensação de absoluto desnorteamento ao sermos escorraçados da manifestação que ocorreu logo após o anúncio oficial de recuo do aumento das tarifas, no dia 20, na Avenida Paulista? Podemos até argumentar que eram grupos de extrema direita que estavam se apropriando da manifestação, que foram eles que nos expulsaram fisicamente, mas para quem estava lá, é inegável afirmar que eles o fizeram com o apoio massivo das pessoas ao redor, que eles expressavam o sentimento majoritário. As massas que tanto lutamos para mobilizar não nos queriam ao lado delas.

Levamos uma rasteira pelas costas e já estávamos estatelados no chão, observando as estrelas, sem compreender o que havia se passado.

A primeira reação, naturalmente, foi o ressentimento.

O mesmo MPL que foi fundamental para o sucesso da luta, com pauta e planos de ação, parecia que tinha esgotado suas possibilidades, declarou que não convocaria mais manifestações! Ao mesmo tempo, de repente, a principal batalha de uma parcela da esquerda, da qual eu fazia parte, deixou de ser a disputa da opinião pública sobre o conteúdo dos protestos e sim sobre nosso direito de fazer parte deles, nosso direito de levantar nossas bandeiras.

Alguns se zangaram profundamente e passaram a fazer questão de dizer ao tal gigante que tinha acordado que, embora ele estivesse saído às ruas pela primeira vez, nós nunca tínhamos saído delas. Outros foram buscar explicações no fato de a base social da manifestação não ser fabril e não ter como principal método as greves.

Não pretendo aprofundar minhas opiniões sobre essas hipóteses. O fato é que, ao massificar e potencializar os protestos, junho também colocou a nu uma verdade difícil de encarar: o distanciamento e o isolamento da esquerda radical de uma parcela ampla das massas. Por isso, o choque quando nos encontramos na mesma trincheira.

Não era apoio e incentivo à luta que as pessoas identificavam ao ver nossas bandeiras, era o medo de que roubássemos delas o protagonismo da luta, que manipulássemos as pautas e impedíssemos que suas vontades fossem respeitadas.

Reconhecer isso não quer dizer que essas manifestações não tivessem um caráter essencialmente progressivo, que fossem encomendadas pelo imperialismo ou qualquer variante da narrativa que procura atribuir aos protestos de junho o início da onda reacionária que vivemos no país nos anos seguintes.

Nesse sentido, as jornadas que vivenciamos durante o mês de junho foram uma luta justa contra o aumento da passagem em São Paulo, que conectou o Brasil com uma onda de lutas progressistas ao redor do mundo. Não havia nada de reacionário nesse processo, e, portanto, estivemos muito certos em atuar por dentro dele e lutar para que ele se massificasse.

O que esteve em disputa, isso sim, foi sobre as possibilidades do que fazer com a disposição de luta que foi despertada. E nesse caso, é preciso reconhecer que a ampla maioria da esquerda não estava preparada para o que viria.

É evidente que o PT cometeu muitos erros antes, durante e depois desse processo. Mas essa não é uma reflexão sobre eles, sobre os outros. É sobre nós mesmos e o motivo de não podermos ser encarados como alternativa.

Não se tratava apenas de trabalho de base, embora a burocratização e o distanciamento do dia a dia da classe sejam sempre desvios a serem combatidos.

Havia algo além, mais profundo, sobre os retrocessos na consciência coletiva que faziam com que fôssemos encarados como inimigos daqueles que se mobilizaram. Desvendar esse enigma é central para nossos planos de mudança social radical.

Para mim, foi se tornando nítido aos poucos. Era preciso retomar reflexões estratégicas que determinam o modo de construção de nossas correntes, encarar de frente o fato de que somos muito poucos, que estamos dispersos e que precisamos de mais mediações para nos aproximarmos da consciência daqueles que desejamos mobilizar.

Enfim, a maneira como cada um de nós refletiu sobre nosso breve encontro com as massas naquela jornada e as conclusões a que chegamos foram e são fundamentais para chegarmos até aqui. Não nos esqueçamos delas para estarmos à altura das próximas oportunidades e enfrentamentos nas ruas que, sem dúvida nenhuma, virão.