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Eu estava nos atos de junho de 2013 e não me arrependo disso

Direita Volver

Coluna mensal que acompanha os passos da Nova Direita e a disputa de narrativas na Internet. Por Ademar Lourenço.

“Daqui a cem anos o dia de hoje será feriado”. Nunca me esqueço de ter disso isso em 17 de junho de 2013. A foto de baixíssima qualidade em cima do Congresso Nacional que ilustra este texto foi tirada por mim. Esse é um relato em primeira pessoa e não poderia ser diferente. E, sim, subi no Congresso Nacional naquele dia.

Muita coisa sobre junho de 2013 está sendo dita por gente que não estava lá e pesquisou pouco. Ou por quem deixou o trauma de tudo o que veio depois apagar algumas memórias. A violência policial foi o estopim. O ato que ocupou o Congresso e gerou a imagem que vai para os livros de História foi convocado com o nome de “Marcha do Vinagre”. Era uma referência à prisão de um jornalista da Carta Capital preso em um ato anterior. Seu “crime” era portar vinagre para reduzir os efeitos do gás lacrimogênio.

Em junho de 2013, 44% da renda das famílias estava comprometida com dívidas, de acordo com dados do próprio Banco Central. O aumento do consumo nos anos anteriores foi bancado em parte pelo acesso fácil ao endividamento e a bolha havia estourado. Nos seis meses anteriores aos atos, o tomate e a farinha de trigo haviam dobrado de preço. O crescimento da economia brasileira já dava sinais de desaceleração. Não foi apenas a classe média privilegiada que foi para as ruas.

Eu não vi nas redes sociais, eu não li nos jornais, eu estava lá

Eu vi o metrô na estação da Praça do Relógio, em Taguatinga, lotado de jovens vindos de Ceilândia, periferia do Distrito Federal, rumando em direção ao ato. Eu me lembro daquele fim de tarde na Rodoviária de Brasília. Ao invés de voltarem para casa, as pessoas subiram para a Esplanada dos Ministérios. A Brasília “ilha da fantasia” era invadida pelo Distrito Federal dos trabalhadores.

Eu vi um jovem militante socialista puxar um coro repetido por dezenas de milhares de pessoas, fato que rendeu o primeiro vídeo viral dos atos. “Só vamos parar quanto a gente colocar um milhão, dois milhões, três milhões, vinte milhões aqui para falar que não está certo o que eles fazem”. Era o que ele dizia, sendo repetido pela multidão, que ao final gritava o bordão “Amanhã vai ser maior”. O jovem de 10 anos atrás continua defendendo o socialismo em 2023, mas está mais ocupado trabalhando como servidor público.

Eu me lembro de outro jovem, de 16 anos, se mobilizando pela primeira vez na vida em meio a um ideal político confuso. Ele era contra a “cura gay” que estava em pauta no Congresso, mas ao mesmo tempo achava que o Ministério Público poderia salvar o Brasil da corrupção. Reflexo de um país que ainda não havia apodrecido pela polarização imposta pelos algoritmos das redes sociais.

Em 2013, uma postagem no Facebook (rede social mais popular da época) chegava à 25% de todos os seguidores de uma página. Se você tivesse uma página com 100 mil seguidores, um simples post era entregue para 25 mil, sem necessidade de pagamento. Hoje não chegaria nem a 20 pessoas. As redes sociais estavam se consolidando e os algoritmos que hoje manipulam completamente o que chega até as pessoas eram bem menos poderosos. A ideia de que tudo foi planejado para atacar o governo de Dilma Rousseff não se sustenta na realidade. Em 2013 ainda existia uma internet relativamente livre.

Me lembro muito bem dos manifestantes levantando cartazes dizendo que queriam “educação e saúde padrão FIFA” e que “um professor vale mais que o Neymar”. Está fresco em minha memória as reuniões espontâneas de centenas de pessoas que por duas semanas organizaram a “Assembleia Popular dos Povos de Brasília”. O nome foi dado em homenagem à “Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca”, que em 2006 havia promovido uma rebelião popular no Sul do México.

Não posso me esquecer das empresas de mídia mudando de posição. Começou atacando o movimento. Depois passou a apoiar por oportunismo. Em um terceiro momento, essa mídia tentou convencer o povo de que já era hora de sair das ruas. E o povo não obedeceu.

Outra lembrança que jamais vai sair da minha mente foi o ato na praça central da cidade em que nasci, um pequeno município do interior de Goiás de menos de 40 mil habitantes. Nunca houve uma manifestação de rua por lá antes. Um amigo de infância, ligado ao PT na época, ajudou a organizar. Isso aconteceu em centenas de pequenas cidades pelo Brasil.

É verdade que já havia um cheiro de enxofre no ar

Os atos eram compostos por oito grupos. Em primeiro lugar, o Movimento Passe Livre, grupo de esquerda com princípios horizontalistas (pregavam a ausência de líderes formais), mas ao mesmo tempo apoiador do governo petista (contradições da época). O segundo grupo era a oposição de esquerda ao governo de Dilma, composta por PSOL, PSTU, PCB e pequenos grupos. Também havia o grupo dos anarquistas e dos black blocks, cujos métodos foram pretexto para a violência policial.

Já haviam grupos de classe média tentando impedir qualquer pauta que não fosse a luta genérica “contra a corrupção”. Além desse, havia o bloco fascista, composto por integralistas, defensores da Ditadura Militar e leitores de Olavo de Carvalho. Eles iam para os atos bem disfarçados e partiam para cima dos militantes de esquerda.

Além disso, estavam presentes os militantes do PT e partidos de esquerda que apoiavam o governo Dilma Rousseff. Também eram bem discretos. O sétimo grupo era composto por policiais infiltrados. É incontestável que eles estavam lá. O último grupo era o “povo unido sem partido”. Eram milhares que carregavam o caldo ideológico de um povo que passou por 300 anos de colonialismo escravista, 150 anos de coronelismo, 20 anos de ditadura militar e 30 anos na frente da televisão. Era a primeira vez que iam a um ato. Eram a grande maioria. A parte mais branca, velha e rica desse grupo se aliou, sem vacilo, com os fascistas e grupos “contra a corrupção”. A parte mais negra, jovem, periférica e proletária do “povo unido sem partido” se dispersou. Esse foi o maior desastre.

Para o bem ou para mal, junho não morreu

Compartilho do trauma sofrido por tudo de ruim que aconteceu nos 10 anos que seguiram junho de 2013. Mas deixar nossas boas memórias serem apagadas por nossos traumas adoece a mente. Junho não formou uma coletividade, se concluiu como uma aglomeração de indivíduos. Aqueles que não tinham medo de apanhar da polícia venceram a disputa. Mas isso não apaga o que aconteceu em toda sua complexidade.

Eu vi coisas que as pessoas não acreditariam. Eu vi uma jovem com um escudo de papelão enfrentar de peito aberto um policial armado. Eu vi trabalhadores comuns resistindo a uma chuva de gás lacrimogênio. Eu vi um corredor ser aberto para dar passagem a indígenas, que foram ovacionados pela multidão. Eu vi a Rodoviária de Brasília se tornar uma praça de guerra e as pessoas se recusarem a voltar para casa. E não, esses momentos não vão se perder no tempo como lágrimas na chuva. Não é hora de junho morrer. A promessa de que “Amanhã vai ser maior”, gritada a plenos pulmões por milhares de pessoas, ainda não foi concretizada. E o meu eu de hoje, assim como o meu eu de 10 anos atrás, sabe que esse amanhã vai chegar.

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Junho de 2013