Pular para o conteúdo
BRASIL

Junho dez anos depois

Elogiado e exaltado, mas também desprezado e condenado. Levou a glória por conquistas e também a culpa por desastres. O que de fato aconteceu em junho de 2013?

Editorial Esquerda Online
Midia Ninja

Há dez anos, protestos pela redução da tarifa do transporte desencadeavam uma das maiores ondas de mobilização popular da história do Brasil. Milhões de pessoas foram às ruas no mês de junho de 2013, mudando completamente o panorama político do país.

De lá para cá, esse acontecimento grandioso foi venerado por uns e insultado por outros. Foi elogiado e exaltado, mas também desprezado e ultrajado. Levou a glória por conquistas e também a culpa por desastres.

Análises simplistas escolhem, ao gosto do freguês, o doce ou o amargo desse momento histórico. Perde-se, assim, a compreensão sobre a complexidade e as contradições de um processo no qual forças políticas e sociais antagônicas entraram em disputa virulenta.

Análises simplistas escolhem, ao gosto do freguês, o doce ou o amargo desse momento histórico. Perde-se, assim, a compreensão sobre a complexidade e as contradições de um processo no qual forças políticas e sociais antagônicas entraram em disputa virulenta.

Não se deve confundir o desfecho com o princípio de um processo. Porque nem sempre o destino está traçado no começo do caminho. Junho de 2013 abriu um campo de possibilidades. A luta de classes, explodindo, intensificou-se bruscamente a partir dali. O resultado não estava dado por antecipação. Teria que ser decidido no confronto vivo de forças. E assim o foi.

Momentos de Junho

Os protestos liderados pelo Movimento Passe Livre (MPL) e outras articulações nas cidades constituíram o momento inicial do processo. Foram indiscutivelmente progressivos. A bandeira central era a luta contra o aumento das tarifas do transporte, que escancarava o problema da mobilidade urbana nas metrópoles. A base social dos atos era uma juventude numerosa, majoritariamente trabalhadora e precarizada. A participação da direita nas manifestações, até esse momento, era inexistente ou residual na maioria das cidades. Deve-se notar que o movimento no Brasil era parte da dinâmica mundial de protestos, como o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe e os Indignados na Espanha.

Importa mencionar as particularidades do movimento em cada região do país. Houve capitais em que o movimento começou antes de junho, como em Porto Alegre, e era dirigido por setores de esquerda. Por outro lado, em outras cidades, as manifestações começaram só depois da nacionalização do processo e já contaram, desde o início, com presença significativa de setores da direita.

A brutal repressão da PM no ato de São Paulo, em 13 de junho, que feriu dezenas e prendeu centenas de manifestantes, chocou o país. A enorme indignação provocada pelas cenas da barbárie policial levou centenas de milhares de pessoas às ruas em todo país poucos dias depois, em 17 de junho. O movimento ganhara então outra dimensão política e escala social. Alckmin e Haddad foram obrigados, finalmente, a anunciar a redução da tarifa. Políticos pelo país afora anunciavam medidas para atender aos reclames dos manifestantes.

Diante das novas circunstâncias, a grande mídia, que até então combatia os protestos e clamava por repressão enérgica, mudou radicalmente de linha. A direita passou a disputar com muita força o processo por dentro, reivindicando-o para mudar o seu sentido político. As forças reacionárias atuaram para colocar a pauta da corrupção no centro da agenda. Grupos de direita e extrema direita à paisana insuflavam o sentimento anti-partido prevalecente nos atos para acuar as organizações de esquerda nas ruas. Setores de classe média, politicamente conservadores, se integraram às manifestações abraçando a pauta propagada pela imprensa corporativa.

Nesse segundo momento, em que milhões de pessoas entraram em ação, o movimento multitudinário, sem direção definida, foi marcado pelo embaralhamento social e político. Grupos e setores de diferentes classes, programas e ideologias compartilharam o mesmo espaço de manifestação. Mas não de modo harmônico. E, sim, em feroz luta política pelos rumos do processo. Enquanto a burguesia liderava a classe média tremulando a bandeira do combate à corrupção; boa parte da juventude trabalhadora e estudantil, conectada às reivindicações de esquerda, levantava cartazes exigindo passe livre e educação e saúdes públicas de qualidade.

O relativo refluxo dos protestos de rua nos meses seguintes não significou, naquele ano, o fim do ciclo mais amplo de lutas que Junho potencializou. Entre 2012 e 2014, o Brasil assistiu ao auge do número de greves de trabalhadores desde os anos oitenta. A emergência do movimento feminista e LGBTI, que vinha de antes, também se fez sentir, assim como o crescimento dos coletivos negros. Os movimentos por moradia, destacadamente o MTST, cresceram rapidamente com a multiplicação das ocupações urbanas nesse período. Dezenas de câmaras municipais foram ocupadas por movimentos populares no segundo semestre de 2013. Em uma palavra, as lutas sociais avançaram.

Mas os inimigos não estavam distraídos, ao contrário. As forças reacionárias seguiram atuantes nos períodos subsequentes aos grandes atos. Amplas parcelas da classe média foram ganhas para a oposição de direita ao governo Dilma. O início da operação Lava Jato, em 2014, acelerou esse deslocamento reacionário. Grupos e lideranças de direita e extrema direita, que haviam experimentado e aprendido com a disputa das ruas em junho, avançaram em sua organização e articulação politica, mimetizando a estética das ruas. O MBL e Revoltados OnLine, por exemplo, foram formados nesse contexto.

Muita água rolaria até o golpe parlamentar contra Dilma em 2016 e a ascensão do bolsonarismo em 2018. Acontecimentos que mudaram por completo — e negativamente — a relação de forças no país. A multidão de jovens proletários que pediram, nas ruas em 2013, a ampliação de direitos sociais não pode levar a culpa pelos desastres políticos ocorridos anos depois. A derrota do impulso das lutas de esquerda daquele período abriu as portas ao avanço da reação. É preciso compreender porque perdemos.

Lição de Junho

As lutas sociais explodiram em 2013 porque amplos setores de massas queriam mais. O desemprego havia diminuído de forma significativa, contudo, os salários eram baixos. A miséria tinha recuado com políticas sociais de impacto, como o Bolsa Família, mas a saúde e a educação públicas sofriam com condições estruturais precárias.

As lutas sociais explodiram em 2013 porque amplos setores de massas queriam mais. O desemprego havia diminuído de forma significativa, contudo, os salários eram baixos. A miséria tinha recuado com políticas sociais de impacto, como o Bolsa Família, mas a saúde e a educação públicas sofriam com condições estruturais precárias.

Os trabalhadores consumiam mais produtos, porém, tinham dificuldades com os aluguéis cada vez mais caros das moradias. A juventude periférica e negra passou, pela primeira vez, a acessar o ensino superior em maior número, mas o preço do tarifa para se locomover nas cidade era demasiado caro.

Os governos do PT lograram promover crescimento econômico com diminuição da pobreza. Mas as desigualdades sociais ainda eram enormes. Havia muitas injustiças. E esses problemas não podiam ser resolvidos por meio da governabilidade conservadora pactuada com as classes dominantes que vigorava no país.

Era preciso ir além do reformismo de baixa intensidade. Para tanto, o confronto com as elites econômicas e a direita política se colocava como indispensável para entregar ao povo mudanças substanciais. Isso pelo simples motivo de que a grande burguesia brasileira não admite mudança no padrão obsceno das desigualdades brasileiras. As quais são fundadas na superexploração do trabalho, no racismo estrutural, no machismo, na LGBTfobia, na espoliação urbana, na destruição ambiental, na concentração de terras nas mãos de poucos, num sistema tributário invertido, que tira do pobre e dá ao rico, entre outros fatores.

Sem confrontar a classe dominante, derrotando-a, não haverá mudanças estruturais no Brasil. E essa grande burguesia, reacionária até a medula, não hesita, quando lhe é conveniente, em aderir ao golpismo, em patrocinar a extrema direita e avançar na destruição de direitos e conquistas do povo trabalhador. A história recente do país, entre 2016 e 2022, comprova a frase acima.

O sentido progressivo das lutas de 2013 foi incontestavelmente derrotado nos anos seguintes. A lição política principal que fica é: na luta de classes, quando não se avança contra o inimigo no momento oportuno, é ele que avançará sobre a classe trabalhadora e os oprimidos, implacavelmente.