Um mundo muito mais perigoso

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Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

 Quando a casa do teu vizinho está a arder, a tua também corre perigo.

                                                                                              Provérbio popular português

Marxistas afirmam que o limite do capital é o próprio capital. Em outras palavras, a superação das crises não é impossível, mas terá sempre o custo de uma regressão econômica social imensa – a latino-americanização da Europa no último meio século, a asiatização da América Latina, e o avanço da extrema-direita em escala mundial – reatualizando o prognóstico marxista de socialismo ou barbárie. 

Mais uma vez os EUA terão que ampliar, em 2023, os limites de endividamento público, a despeito do impulso de recuperação econômica que veio da etapa pós-covid em 2022. Aumentou a arrecadação fiscal, mas o FED vai continuar os leilões de títulos, ainda que elevando a taxa básica de juros para premiar o rentismo mundial, que entesoura na segurança da rolagem da dívida norte-americanos. Os EUA precisam manter o papel do dólar, tão essencial quanto a hegemonia militar, para a defesa da sua supremacia no sistema internacional de Estados, ameaçada pela ascensão da China, e desafiada pela Rússia.

O mais provável é uma desaceleração, ou até mesmo uma recessão. Por enquanto, o desemprego ainda é muito baixo, o consumo das famílias permanece alto, e a pressão no mercado de trabalho permitiu um leve aumento salarial. Mas é transitório. E não impediu a vitória do partido republicano na eleição da Câmara de Deputados de meio de mandato. É uma questão de tempo para que o endividamento mais caro seja inibor de consumo e investimento, e aumente o desemprego e a desigualdade social. 

A fratura do mercado mundial, com sanções inusitadas contra a Rússia encerrou a etapa da globalização financeira. A continuidade da guerra da Ucrânia sem solução militar deve favorececer, também, a campanha de Trump à presidência. Assim como na Europa, a invasão de Putin irá beneficiar a extrema-direita. “Os russos vêm aí” é uma manobra eficaz para disseminar o medo e o nacionalismo. A vitória da direita nas eleições municipaís na Espanha, e a perpectiva de um governo em coalizão com o Vox sinaliza a normalização dos neofascistas como uma corrente que pode ser assimilada à governança burguesa em um país central. Marine Le Pen nunca esteve tão influente na França.    

Mas nunca existiu na história crise econômica ou política sem saída para o capitalismo. A saída de crises econômicas nunca foi, evidentemente, indolor. Exigiu destruição massiva de capitais, um aumento do patamar de exploração da força de trabalho, uma intensificação da concorrência entre monopólios, e da competição entre Estados, ou seja, imensos perigos. A saída crises políticas exigiu duas guerras mundiais. 

Enquanto o capitalismo vivia sua época histórica de gênese e desenvolvimento, crises destrutivas eram, relativamente, rápidas e suaves. Mas agora estamos diante de um período histórico de decadência do sistema. Uma época em que reformas progressivas são mais difíceis e efêmeras, embora não sejam impossíveis.

As últimas crises confirmam que os limites históricos do capitalismo estão mais estreitos. O prazo de “validade” histórica do capitalismo diminuiu. Os perigos de estagnação econômica, crise social, ascensão do fascismo, aquecimento global, e disputa pela supremacia política mundial se acumulam. Estes limites, todavia, não foram, não são, não poderiam ser fixos. Dependem de muitas variáveis. Mas resultam, finalmente, dos desfechos de uma luta política e social contra a exploração e as opressões ainda em desenvolvimento. Em linguagem marxista o futuro maior ou menor do capitalismo depende da luta de classes. 

E a luta de classes depende da disposição de luta revolucionária dos trabalhadores da juventude. Esse ânimo, entusiasmo, força, coragem, brio e força oscilam flutua, avança e recua em função da capacidade maior ou menor de construir ferramentas de luta independentes. Quanto maior for a maturidade objetiva e subjetiva do proletariado menores serão as perspectivas do capital. Mas, infelizmente, a crise da esquerda mundial permanece crônica 

Em algumas etapas histórico-políticas os limites do capitalismo se contraíram porque avançou a revolução mundial (depois da vitória da revolução russa; depois da crise de 1929; depois da revolução chinesa; depois da revolução cubana), e em outros os limites se expandiram (depois do New Deal de Roosevelt; depois dos acordos de Ialta e Potsdam, ao final da Segunda Guerra Mundial; depois de Reagan/Thatcher nos anos 80). O capitalismo não terá “morte natural”. 

Todos os Estados, mesmo aqueles que têm uma posição dominante no mercado mundial, estão condicionados pela pressão do capital financeiro. Os mágicos keynesianos substituíram, parcialmente, os artistas neoliberais à frente de alguns governos, como na gestão Biden, mas enfrentam muitas dificuldades para “salvar” o capitalismo dos capitalistas. 

Os impostos futuros consumidos na forma de emissão de dívida para a compra de participação estatal em empresas e bancos ameaçados de falência, comprometerão, e algum momento, a possibilidade de emissão de novos títulos, sob pena de uma desvalorização das moedas de entesouramento (dólar norte-americano; libra inglesa, franco suíço, euro; iene), ou seja, o perigo de uma inflação muito maior que a atual. 

Em longa perspectiva, a questão histórica determinante para a compreensão das últimas décadas foi o significado da derrota político-social que foi a restauração capitalista, primeiro na China, a partir de 1978, acelerada nos anos noventa, e depois na URSS, a partir de Gorbatchev. A economia capitalista conheceu, ao longo dos últimos trinta anos, três ciclos de ampliação econômica que dependeram muito da financeirização, embora ela tenha sido, essencialmente, uma inovação em consequência da recessão dos anos setenta. Foi a financeirização que facilitou a expansão do crédito que impulsionou os mini-booms dos anos oitenta com Reagan, dos anos noventa com Clinton, e dos anos de 2001/2008 com Bush. Operaram, com força de influência variada, os outros quatro fatores identificados por Marx como contra-tendências de freio à queda da taxa média de lucro, expressão do esgotamento e da tendência à decadência: o barateamento das matérias primas; a renovação de tecnologias; a internacionalização até à última fronteira e, o mais importante, o aumento da exploração do trabalho.

Nos dois primeiros mini booms verificaram-se quedas importantes nos preços do petróleo e dos grãos, embora não no último; o desenvolvimento da microeletrônica e da telemática foram significativos para o impulso da reestruturação produtiva, sobretudo, nas duas últimas duas décadas do século XX; o crescimento chinês e, em menor medida, da Índia foi um fator de impulso nos últimos vinte e cinco anos; a estagnação do salário médio nos EUA e a restauração capitalista, incorporando centenas de milhões ao mercado mundial, pressionou para baixo o salário médio na Europa e Japão. Talvez a incorporação acelerada da Inteligência Artificial possa impulsionar um novo ciclo, sobretudo, se for potencializada pela corrida armamentista. Mas seriam fatores de desestabilização política e social imprevisíveis, porque um salto na automação robótica elevaria o desemprego estrutural a patamares nunca vistos, e o perigo de guerra mundial ameaçaria os regimes democrático-liberais até à raiz.  

O barateamento do crédito foi um fator decisivo da rápida recuperação das últimas três crises mundiais. A montanha de derivativos cresceu até atingir o pico de US$ 600 trilhões, ou mais de 10 PIB’s mundiais e, transformou-se em um obstáculo intransponível, porque o movimento de rotação de capital não é possível nesta escala: deixou de ser possível a valorização de capital, mesmo que seja muito lenta, quando o volume de capitais fictícios atingiu esta dimensão estratosférica. 

O mesmo problema está na raiz da crise dos endividamentos públicos acima dos 100% dos PIB’s nos países centrais. O endividamento do Estado não é senão a antecipação para o presente de receitas fiscais futuras, os impostos que serão pagos nos anos por vir e, em prazo mais longo, pelas futuras gerações. Ao contrário de empresas, Estados não podem falir, mas podem cair em situação de inadimplência por incapacidade de rolagem dos juros, com moratória das dívidas. 

Foi o que aconteceu com o Brasil durante o governo Juscelino Kubitschek, nos anos cinquenta, e José Sarney, nos anos oitenta. Isso significa que Estados, mesmo os Estados centrais, não conseguem se endividar ilimitadamente, além de sua capacidade de pagamento, porque os capitalistas perderão a confiança nos títulos, e exigirão em contrapartida juros mais elevados para renovação dos empréstimos. 

Um maior endividamento se traduzirá em um comprometimento de despesas que impedirá investimentos futuros e provocará recessão crônica, ou desestabilização política pelos cortes nas despesas dos serviços públicos com sequelas sociais imprevisíveis. A financeirização transformou os títulos públicos de qualquer Estado – inclusive, no limite, os dos EUA – em papéis que podem, também, apodrecer, desde que os investidores percam a confiança de que o Estado poderá honrar seus compromissos. Não há qualquer garantia, a priori, de que os títulos públicos não virem tóxicos. A perspectiva de uma nova crise mundial não está descartada. Poderá ser um novo 2008, e suas consequências devastadoras.

A parasitagem das dívidas públicas foi um dos negócios mais rentáveis da expansão mundial da liquidez das últimas três décadas. Os credores dos títulos públicos se entesouram nestes papéis, buscando a máxima rentabilidade e a máxima segurança. O aumento da dívida do Estado em relação ao PIB eleva, contudo, o custo da rolagem da dívida. O que se revelou, no passado, incompatível com a preservação dos gastos públicos e traz como ameaça um agravamento da recessão. Desde que Washington renunciou à convertibilidade fixa do dólar, em 1971, e preferiu que ela flutuasse livremente, em função da oferta e procura, o Estado aumentou as possibilidades de endividamento. Foi uma resposta fiscal de tipo keynesiano à desaceleração do crescimento do pós-guerra nos anos setenta. A moeda norte-americana desvalorizou-se, porém, preservou o seu papel de moeda de reserva mundial. Hoje este lugar está ameaçado. 

Mudanças desta magnitude só foram possíveis depois de um brusco, intenso, e desfavorável deslocamento da relação social de forças entre as classes em cada país, e uma alteração do posicionamento dos Estados no sistema mundial. Essas gigantescas transferências de riqueza e poder entre classes, entre monopólios, e entre Estados nunca puderam ser feitas sem enfrentar resistências. 

O que está em disputa é uma reconfiguração econômica, social e política do mundo tal como o conhecemos. Oxalá a próxima onda de grandes lutas populares não demore muito.