No dia 17 de maio de 2023, foi realizada uma Audiência Pública sobre o tema “Comunidades Terapêuticas e Organizações da Sociedade Civil que prestam atendimento como Hospitais Psiquiátricos”. A audiência foi realizada pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, a partir de requerimentos do Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), de e Sâmia Bomfim (PSOL-RJ) e Filipe Martins (PL-TO).
Contudo, apesar da intenção inicial de crítica às Comunidades Terapêuticas (CTs) e a como o repasse de verbas públicas a tais instituições – de caráter asilar-manicomial – não só fomenta a lógica manicomial, mas também chancela a mercantilização, privatização e violência no campo da saúde mental, álcool e outras drogas, o que se observou foi um show de horrores. Mesmo com a presença de defensores do cuidado em liberdade, da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, a audiência foi marcada pela presença massiva de parlamentares conservadores, representantes das CTs, fundamentalistas religiosos, bem como dos “internos” de tais instituições, trazidos no atacado para defendê-las.
No fim das contas, tal espaço acabou possibilitando a organização de tais instituições, sendo bastante representativo da força política das CTs na atual conjuntura. Contudo, ao mesmo tempo que abriu brechas para suas vocalizações, bem como daqueles que as sustentam no plano político e econômico (não é um acaso que a bancada das CTs seja, fundamentalmente, a do boi, bala e bíblia – mesmo que haja também uma esquerda manicomial a chancelar tais instituições), o momento também foi bastante educativo – infelizmente, uma pedagogia da barbárie – sobre o que são as CTs em nossa realidade e o que eles expressam acerca de nossa história e do presente.
Na impossibilidade de abordamos a integralidade das mais de cinco horas de duração da audiência1, queremos aqui nos ater a um caso específico, a nosso ver, emblemático do que as CTs significam, representam, e mais, sintetizam e conformam quanto à nossa realidade. Dentre os participantes que representaram e defenderam as CTs, estava Frei Hans Stapel, pároco nascido na Alemanha e fundador da Fazenda Esperança (também conhecida por Obra Social Nossa Senhora da Glória – Fazenda da Esperança). Tal instituição funciona há 30 anos, tendo sido fundada em 1983, e, segundo Frei Hans, possui 106 filiais só no Brasil, estando também em mais 26 países.
Em consulta aos dados abertos do Portal da Transparência foram contabilizados na sessão de Despesa Pública, o recebimento de R$101.413.262,66, para os nomes “OBRA SOCIAL N S DA GLORIA FAZENDA DA ESPERANCA” e “OBRA SOCIAL NOSSA SENHORA DA GLÓRIA – FAZENDA DA ESPERANCA” – supondo-se aqui, representar a instituição de mesmo nome que a patronada por Frei Hanz. Esse montante de recurso público é referente apenas a um período de quatro anos, entre 2019 e 2022, na gestão Bolsonaro, oriundo da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred), pertencente ao Ministério da Cidadania, à época. De 2019 a 2022, os repasses feitos aos nomes da Fazenda Esperança foram, respectivamente: R$16.076.782,67, R$20.106.367,31, R$18.947.412,14 e R$46.282.700,54.
A partir de tais dados, apesar da fala calma, catequética e autoproclamatória do referido Frei, podemos já constatar que se trata de um grandessíssimo complexo, uma indústria (ou comércio) de suposta assistência para pessoas com necessidades atreladas ao consumo de álcool e outras drogas, financiada pelo Estado. Mais, um complexo industrial religioso, financiado por um Estado que se apresenta como laico. Avançando ainda mais, um complexo industrial, religioso que, a despeito de todo o montante de verbas estatais – que se somam a outras formas de financiamento (algumas delas abordadas a seguir) -, se pauta no voluntarismo de seus fiéis, de modo que o “segredo do sucesso da Fazenda da Esperança está ligado ao voluntariado, aos homens e mulheres que se colocam a [sic] disposição para acolher, cuidar de todos os jovens que são acolhidos em suas comunidades”2. Grosso modo, a sofisticação e reatualização do voluntariado, do caritativismo que, ao espoliar o fundo público (e a força de trabalho), não só se opõe, mas deslegitima e enfraquece as iniciativas assistenciais públicas.
Portanto, Frei Hans, o “argumento do dinheiro” não é “ridículo”, como você diz. É fundamental; é obrigatório! Uma pontual concordância com você é quando diz que é preciso “gastar mais” (discordamos quanto ao termo e ao sentido de “gasto”, pois para nós se trata de direito). Só que precisamos investir mais nos serviços substitutivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Unidades de Acolhimento (UA), leitos e enfermarias em hospital geral, Serviços Residenciais Terapêuticos, consultórios na rua, dentre outros. E um obstáculo a isso, ao fortalecimento e ampliação do SUS, é, justamente, o saqueio do fundo público pelas CTs.
Nesse interregno, é importante reiterar o que são as CTs em nosso presente. Num esforço de síntese, reproduzimos a seguinte citação de artigo que analisou as principais mudanças durante a pandemia nas políticas orientadas ao cuidado à população em situação de rua com necessidades decorrentes do consumo de drogas no Brasil:
Fossi e Guareschi (2015, pp. 103-104) apontam que as CTs, ‘em sua estrutura e funcionamento, organizam-se e articulam-se como cadeia, igreja e hospital psiquiátrico’, ‘é na articulação do funcionamento destas três instituições que elas encontram sua especificidade’. Segundo o IPEA (2017), apesar da heterogenia das CTs no país, os três pilares delas são: disciplina, religiosidade e trabalho (não pago, forçado, denominado ‘laborterapia’). Considerando isso, sobretudo o último pilar, bem como a cor da força de trabalho em tais instituições e a condição de trabalho não pago, servil, podemos adicionar à prisão, à igreja e ao manicômio, outra instituição fundamental na formação social brasileira: a senzala. As CTs como sofisticações e reatualizações de: igrejas, prisões, manicômios e senzalas; uma expressão de nosso moderno-arcaico.5
Portanto, a própria espoliação da força de trabalho e o não pagamento desta na forma de salário, mistificada sob a forma de voluntariado – e com toda a justificação religiosa, do amor etc. – também é vista quanto aos ditos “internos” que, sob a perspectiva da laborterapia, costumam trabalhar para tais instituições – em condições degradantes -, em rgimes de servidão, análogos à escravidão, constituindo, pois, mais uma fonte de renda às CTs. E é necessário negritar, o tempo todo, quem são as pessoas, na sua concretude, submetidas a isso: são majoritariamente pessoas negras, das frações mais pobres da classe trabalhadora. Os “drogados, alcoólatras, todos dependentes” a quem se refere o Frei Hans, utilizando-se de termos com carga abruptamente pejorativa, negativa.
Por mais que a retórica do Frei Hans, e das CTs em geral, busque ocultar, mistificar o caráter manicomial das CTs, tal esforço discursivo se choca contra a própria realidade, exposta em inúmeras fiscalizações, vistorias, pesquisas5, bem como denúncias e matérias que, com o ganho de força de tais instituições, são cada vez mais frequentes. E tal discurso se choca contra si, dadas as evidentes contradições de quem diz que a “ajuda” se dá em liberdade, mas também diz que “dizer recuperação em liberdade, isso é estúpido!”. Negar o caráter manicomial, exploratório e opressivo das CTs é negar o que ela é; é negá-la. Portanto, mais um motivo para que tal instituição seja superada concretamente, não só deixando de receber verbas públicas, mas, como proclama há décadas o Movimento Antimanicomial para quaisquer formas de manicômio, que deixe de existir.
Voltando ao Frei Hans, o próprio nome da instituição, Fazenda Esperança, é também bastante ilustrativo. Um complexo de fazendas, assentado na superexploração da força de trabalho, na qual os bichos tendem a ser as pessoas, remetendo, no país do agronegócio, do latifúndio, à Casa Grande e à Senzala. Mais uma vez, não à toa, a bancada das CTs é muito semelhante à do boi, bala e bíblia; melhor dizendo, é a mesma bancada.
Por fim, ressaltamos a postura de quem vem “a este país como missionário”, o olhar para a nossa realidade, muito bem evidenciado em vários momentos quando fala sobre “este país” e a sua gente, como os “tantos voluntários que salvam o Brasil”. Portanto, diferentemente da fala do referido Frei, a quem “quando se tem a cura, não se discute o método”, aqui, neste país, nós discutimos, sim, o método. Para nós, os fins não justificam os meios. E, no caso das CTs, tanto os fins como os meios não são aceitáveis. Alia-se a isso toda a retórica catequética, messiânica, salvacionista, do europeu, branco, que, inclusive, queremos descolar da pessoa do Frei Hans, já que não, em nossa história, ela não se resume a um ou poucos indivíduos, não se tratando de algo personalista ou individual.
Paremos para refletir: o que sintetizou e sintetiza muito bem em nossa formação social a junção de religiosidade e catequização, mercantilização e privatização, com escravização da população não branca? Ora, a colonização! Adiciona-se a isso não só a nacionalidade do Frei Hans, mas seu discurso, que expressa uma postura, uma visão colonizadora e, talvez, não consigamos pensar em nenhum outro exemplo tão representativo do que, infelizmente, fomos, temos sido e, portanto, do que não queremos ser. A partir do momento que o atual governo chancela, financia tais instituições e, portanto, o que elas expressam e materializam, cabe a nós perguntar: O que quer este governo no campo da saúde mental, álcool e outras drogas?
Pedro Costa é professor de Psicologia na UnB e Lúcio Freitas Junior é Militante da Resistência DF.
1 O vídeo da audiência integral está no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=9h2hChp2yuM. As informações sobre a Fazenda Esperança, bem como trechos de fala do Frei Hans são extraídas dela.
2 https://www.gov.br/cidadania/pt-br/obid/entrevistas/copy26_of_teste.
3 MENDES, K. T.; COSTA, P. H. A. No meio da pandemia tinha uma pedra? Uma análise das políticas para a população em situação de rua no contexto pandêmico brasileiro. Encuentros Latinoamericanos, v. 6, p. 96-117, 2022.
Comentários