Pular para o conteúdo
BRASIL

Um governo manicomial? Pela revogação do decreto 11.392/2023! Pelo fim das comunidades terapêuticas!

Pedro Henrique Antunes da Costa, de Juiz de Fora (MG)
A defesa por um tratamento humanizado a pacientes com transtornos mentais marcou o ato virtual realizado na quinta (10.12), pelo CNS e CNDH
Conselho Nacional de Saúde

Pedro Henrique Antunes da Costa1

No dia 20 de janeiro de 2023, foi publicado o Decreto nº 11.392, que “[a]prova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, e transforma e remaneja cargos em comissão e funções de confiança”2. Nele, consta a criação do “Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas”, dentro da Secretaria-Executiva do Ministério. Compete a tal Departamento assessorar, desenvolver, coordenar e monitorar ações de cuidado a pessoas com problemas decorrentes do consumo de álcool e outras drogas, bem como propor contratos, acordos e parcerias com instituições – notadamente não-governamentais – e analisar e propor a atualização da legislação relativa à sua área de atuação. Resumindo, não só o lobby das Comunidades Terapêuticas (CTs) foi institucionalizado, como agora está dentro de um Ministério, pautando todo o processo de formulação e implementação de políticas na área.

Nos marcos institucionais, se trata de um salto qualitativo – infelizmente para trás, um retrocesso – quanto ao papel e relevância das CTs nas políticas em saúde mental, álcool e outras drogas, mesmo em comparação ao governo Bolsonaro. Para piorar, isso acontece não só no governo do Partido dos Trabalhadores (PT), como vem na sequência (e na contramão) da criação do Departamento de Saúde Mental na estrutura regimental do Ministério da Saúde, algo inédito, já que, até então, a saúde mental tinha alcançado o status máximo de coordenação (abaixo de Departamento) – tendo sido extinta no governo Bolsonaro – e de falas e posicionamentos da nova ministra da Saúde, Nísia Trindade na direção da revogação dos retrocessos no campo, retomando o desenvolvimento e fortalecimento da Reforma Psiquiátrica.

É necessário salientar que tal decreto foi publicado no mesmo dia que o nº 11.3913, que alterou o Decreto nº 11.358, de 1º de janeiro de 2023, que aprovou a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Saúde4. Uma das mudanças foi, justamente, a alteração do nome do “Departamento de Saúde Mental e Enfrentamento do Uso Abusivo de Álcool e Outras Drogas” para “Departamento de Saúde Mental”, representando não apenas uma mudança terminológica, mas uma divisão na esfera do cuidado em saúde mental, álcool e outras drogas, em que a “saúde mental” ficaria com a pasta da saúde, enquanto as “drogas” com o Ministério do Desenvolvimento Social (e o da Justiça também).

Vários posicionamentos contrários, manifestos e notas de repúdio foram produzidos por inúmeros coletivos, organizações, grupos, associações de usuários(as), familiares, trabalhadores(as), pesquisadores(as) e militantes do campo. Ao serem repúdios e desaprovações de quem constrói historicamente as lutas na saúde mental, álcool e outras drogas, sendo o próprio campo no que ele teve e tem de mais avançado, humanizado, potente, tais iniciativas, por si só, já denotam o equívoco não só de manter o financiamento público das CTs, mas de se criar um Departamento delas e para elas. Aliás, qual é a instituição, mesmo pública, que possui um Departamento só para is, seja no Ministério do Desenvolvimento Social ou no da Saúde?

A nosso ver, tal medida expressa, mais uma vez, o caráter conciliatório dos governos petistas, neste caso, no campo da saúde mental, álcool e outras drogas. Não há nada de novo no front, até mesmo pelo fato de que as CTs são inseridas nas políticas do campo pelo próprio PT, em seus governos anteriores. Contudo, isso não abona ou justifica tal escolha política (econômica, ideológica), e suas consequências concretas, afinal, tal caráter conciliatório impõe uma conciliação que só existem formalmente, afinal, busca conciliar o que não se concilia concretamente: cuidado digno e mais humanizado versus segregação, violência e aprisionamento; liberdade terapêutica versus manicômio; SUS versus mercado da loucura; Reforma Psiquiátrica versus Contrarreforma Psiquiátrica.

Além disso, as CTs têm se constituído como um dos principais pilares para a deslegitimação de serviços públicos não manicomiais, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Unidades de Acolhimento, enfermarias e leitos de internação (de curta ou curtíssima duração) em hospitais gerais, consultórios na rua etc. Há de se questionar diretamente o repasse de verbas às CTs – e que cresceu no governo Bolsonaro – num contexto de contingenciamento de verbas para tais serviços, para o SUS e políticas sociais em geral. Trata-se do enfraquecimento e deslegitimação da Reforma Psiquiátrica enquanto conquista e das conquistas no campo, como os serviços substitutivos, a adoção de Redução de Danos como princípio, fundamento e horizonte no cuidado a pessoas com problemas decorrentes do consumo de drogas, dentre outras.

Como defendemos no ano passado, nas “Propostas para um programa de esquerda antimanicomial”5:

A principal razão de ser da atual Contrarreforma Psiquiátrica é a remanicomialização ou a reinstituicionalização da lógica manicomial. Como apontamos em trabalho de crítica à economia política da Contrarreforma Psiquiátrica, esta se configura enquanto “processo de enxugamento orçamentário, remanicomialização e mercantilização, com: retorno do Hospital Psiquiátrico às políticas, centralidade das Comunidades Terapêuticas na área de álcool e outras drogas […] tais instituições são de caráter não-governamental, privado – no caso das CTs, a maioria é vinculada a instituições religiosas – conformando um amplo e lucrativo mercado ou indústria da loucura, do asilamento de ‘loucos’, ‘drogados’ e afins – que, em nossa realidade, não por acaso, são majoritariamente pobres e negros.

Portanto, não há e nunca houve conciliação! O próprio fato de as CTs e a parte do “cuidado” referentes às “drogas” ter ficado sob responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social, expressa isso, inclusive, como uma forma de contrapor os princípios da Reforma Psiquiátrica e escapar dos mecanismos de controle social do SUS. Temos mais um ataque ao SUS e à Reforma Psiquiátrica, indo na contramão de seus princípios e horizontes, só que por fora, passando ileso ou levemente atravessado pelos seus mecanismos decisórios, de controle e participação social. No entanto, por mais que a organização do ataque seja por fora do SUS, ele acaba o correndo por dentro, afinal, deslegitima e enfraquece seus serviços, princípios etc., sendo que as CTs são instituições de natureza propositalmente dúbia, genérica, estando também dentro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), do SUS.

Alguns também podem afirmar que se trata de um governo de frente ampla e que tal tática no campo da saúde mental, álcool e outras drogas – mesmo que o Departamento das CTs componha formalmente o Ministério do Desenvolvimento Social – expressa tal amplitude de articulações. Ora, a isso respondemos que tal frente ampla configurou uma aposta tática para a derrota de Bolsonaro nas eleições. Relembramos, então, que as CTs são a principal expressão de Bolsonaro e do bolsonarismo no campo da saúde mental, álcool e outras drogas; não à toa, tiveram um crescimento ainda mais vertiginoso em seu financiamento pelo fundo público. Em suma, Bolsonaro e o bolsonarismo são as CTs; as CTs são Bolsonaro e o bolsonarismo na saúde mental, álcool e outras drogas. Portanto, tais argumentos não nos servem, afinal, mesmo sem entrar no mérito da escolha e articulação tática pela frente ampla – e entendendo que a derrota do bolsonarismo vai muito além da derrota de Bolsonaro nas urnas –, ela se pôs a derrotar Bolsonaro. Como é possível derrotar Bolsonaro, mesmo na via institucional, neste caso, nas especificidades do campo da saúde mental, álcool e outras drogas, mantendo-o, perpetuando e reforçando seus princípios, horizontes, grupos e instituições?

E vale salientar sempre que possível o que são as CTs, isto é, o que está sendo fomentado pelo governo. Em outro texto, “Apoio às comunidades terapêuticas: Uma esquerda manicomial?”6, decorrente da aprovação em 24 de novembro de 2021 do Projeto de Lei Complementar (PLP) 134/2019, que deu imunidade tributária às Comunidades Terapêuticas (CTs), com o apoio da bancada do próprio PT – e, também, de parlamentares do PCdoB, PDT e PSB, fazemos uma breve caracterização do que são as CTs e o que representam em nosso país:

Apesar de não serem prisões, nem igrejas ou manicômios, as CTs têm sua especificidade, justamente, numa articulação do funcionamento das três instituições; é uma amálgama evidente dos processos de (re)manicomialização, mercantilização/privatização e conservadorismo/fundamentalismo religioso. É a instituição-modelo, praticamente um tipo ideal (no caso, nada idealista, mas material, concreto) a demonstrar que a ofensiva do capital contra a classe trabalhadora, anda de mãos dadas com a ascensão e ofensiva conservadora. Acrescentamos à sua natureza de prisão, manicômio e igreja, outra instituição por excelência de nossa formação social escravocrata e racista: a senzala. Até porque, segundo estudo do IPEA (2017), um dos pilares de tais instituições, junto da disciplina e religiosidade, é o trabalho. Não qualquer trabalho, mas o trabalho forçado, não pago, sob roupagens de laborterapia, de ação com suposto propósito terapêutico.

Reafirmamos que o desenvolvimento de uma política de cuidado em saúde mental, álcool e outras drogas mais humanizada, a partir dos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira, passa não só pelo fim do financiamento de todos os manicômios, mas pelo seu fechamento, nas suas novas-velhas formas, CTs inclusas. Nessa direção, é importante mencionar a recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos, publicada no dia 24 de janeiro, de auditoria e inspeção em todos os contratos com CTs firmados na gestão Bolsonaro.

Reafirmamos o pedido do próprio presidente Lula, para que não deixemos de tensionar, de criticar e reivindicar: “não deixem de cobrar. Porque se vocês não cobram, a gente pensa que está acertando. E muitas vezes a gente tá errando e continua errando porque as pessoas não reclamam. Vou dizer em alto e bom som: nós não precisamos de puxa-sacos. Um governo não precisa de tapinha nas costas. Um governo tem que ser cobrado todo santo dia para que a gente consiga aprimorar a nossa capacidade de trabalho. Cobrem, cobrem e cobrem para que a gente faça, faça e faça”7. Portanto, que o Departamento das Comunidades Terapêuticas seja extinto, bem como todo o financiamento público a tais instituições da violência. Mais, que o Estado atue para que as CTs, assim como toda instituição manicomial, sejam fechadas em nosso país.

Fica, aliás, para o conjunto de movimentos e de lutas do e no campo da saúde mental, álcool e outras drogas, a premência de se tomar e fortalecer o fim das CTs como um dos seus motes centrais. Nisso, é necessário pautar o seu financiamento (neste ponto, é fundamental uma maior apropriação e análise crítica sobre o papel do Fundo Nacional Antidrogas – FUNAD), com as devidas destinações do fundo público aos serviços públicos substitutivos, laicos, com ênfase nos de caráter territorial-comunitário, e às políticas sociais como um todo (SUAS, SUAS etc.). Como alternativas de mediação tática, não estando isentas de limites e contradições, e não devendo ser tomadas como fins em si, apontamos a necessidade de que as verbas destinadas para o cuidado em saúde mental, álcool e outras drogas, independentemente de suas origens, sejam geridas pelo Ministério da Saúde e seu recém-criado Departamento de Saúde Mental, de modo que o poder decisório sobre ele se dê com participação do Conselho Nacional de Saúde, pelas instâncias de controle e participação social do SUS e dos atores, associações, em suma, sujeitos históricos que compõem – e são – as Lutas Antimanicomial e Antiproibicionista no país.

Concluímos, repetindo o que falamos anteriormente, não por autoadulação, mas, infelizmente, como constatação da máxima marxiana de vermos a história se repetindo não mais como tragédia, mas como farsa:

uma política de esquerda no campo da saúde mental não pode apenas bradar que é antimanicomial, deve ser no seu conteúdo, na sua práxis, antimanicomial. Não se pode ser antimanicomial por conveniência ou apenas em determinadas pautas, momentos específicos; ou se é antimanicomial ou não é; não existe meio antimanicomial”.

Pela revogação do Decreto 11.392/2023!

Pelo fim do financiamento público às Comunidades Terapêuticas!

Pelo fim das Comunidades Terapêuticas!

Manicômio nunca mais!

1 Professor de Psicologia na Universidade de Brasília

2 planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11392.htm

3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11391.htm

4 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11358.htm

5 https://esquerdaonline.com.br/2022/05/18/propostas-para-um-programa-de-esquerda-antimanicomial/

6 https://esquerdaonline.com.br/2021/12/01/uma-esquerda-manicomial-apoio-as-comunidades-terapeuticas/

7 https://www.youtube.com/watch?v=KedCa3ZNfHw