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Caiu um racista: Amâncio de Carvalho não mais será homenageado pela Faculdade de Direito da USP

Letícia Lé

Letícia Lé é militante do movimento de juventude Afronte!, advogada formada na primeira turma de cotistas da Faculdade de Direito da USP e covereadora em São Paulo-SP pela Bancada Feminista do PSOL

Na última quinta-feira, 30 de março de 2023, a Congregação da Faculdade de Direito da USP determinou a retirada do nome de Amâncio de Carvalho de uma das suas salas. Amâncio de Carvalho foi um eugenista, que fundou e foi Presidente Honorário da Sociedade Eugênica do Brasil e que mumificou e expôs o corpo de uma mulher negra em 1900, a Jacinta Maria de Santana. A história foi descoberta a partir da pesquisa de Suzane Jardim, mulher negra e historiadora e ganhou grande repercussão a partir da matéria veiculada pela Ponte Jornalismo.

Após a mobilização de diversos setores da Faculdade, dentre eles o Coletivo Feminista Negro Angela Davis, o Centro Acadêmico XI de Agosto e a Representação Discente da Pós e da Graduação, a Congregação da Faculdade instaurou uma comissão com o objetivo de analisar os fatos divulgados na pesquisa de Suzane Jardim. A pesquisa não somente confirmou os fatos, como, ao analisar a figura de Amâncio de Carvalho, denota a sua relevância para a disseminação das discussões acerca da eugenia.

A eugenia, é importante ressaltar, parte do ponto de vista de que haveria uma suposta superioridade da raça branca, contribuindo de maneira nefasta para a perpetuação de um sistema que, desde a escravidão negra e indígena, age para eliminar e excluir os corpos nao brancos. O fato de uma elite intelectual paulista ter sido parte ativa na disseminação dessa ideologia já é bastante repudiável, entretanto, é inaceitável que em 2023, no sexto ano da implementação das cotas étnico-raciais da USP, um eugenista como Amâncio de Carvalho receba a mais alta homenagem que a Faculdade tem a oferecer.

Nos dias 29 e 30, o movimento negro ao lado dos estudantes, se mobilizou de forma extremamente qualificada acerca do tema. No dia 29, através de uma mesa para debater o tema, que contou com a presença de importantes figuras do movimento e também de professores aliados. Já no dia 30, aconteceu a votação acerca da remoção da homenagem ao eugenista Amancio de Carvalho e desde o inicio, os estudantes e o movimento negro estiveram bastante mobilizados, ocupando através do enfrentamento a frente da sala da Congregação durante todo o dia.

Na Congregação, algumas propostas foram colocadas, havendo dissenso também acerca do método de votação. O que ficou definido foi que se votaria se haveria ou não a remoção da homenagem a Amâncio de Carvalho, independente dos motivos. Nessa votação, todos os presentes votaram a favor, com exceção do Professor Erasmo Valladão.

No decorrer da votação, surgiram também propostas como a manutenção do nome da sala, mas a colocação de uma placa informativa sobre a história da Jacinta, a qual foi vista com maus olhos pelo conjunto dos movimento, pois eternizaria a Jacinta no local onde ela foi violentada, enquanto seu algoz permaneceria ali, homenageado. Contudo, com a aprovação da remoção do nome, o que foi aprovado foi uma placa contando a história da Jacinta e responsabilizando o Amâncio, que não mais será ali homenageado. Além disso, foi aprovada uma segunda placa em homenagem à Jacinta no pátio das Arcadas.

Uma vez aprovada a remoção do nome do Amâncio, ficou decidido que ainda não se determinaria o novo nome que irá batizar a sala. Uma proposta do movimento negro é que a sala passe a se chamar Esperança Garcia, a primeira mulher negra advogada no Brasil.

Essa vitória foi importante por diversos motivos, mas talvez o principal deles tenha sido o seu significado simbólico. Retirar o nome de eugenista de uma das salas da maior e mais tradicional Faculdade de Direito do país é um importante primeiro passo no que diz respeito a uma movimentação que ganhou peso com o Black Lives Matter, que questionou ativamente as diversas homenagens feitas nos espaços públicos a aqueles que por séculos foram algozes do povo preto e dos povos originários. Os estudantes, portanto, colocaram o seguinte questionamento em pauta: é pertinente, em 2023, com o avanço das conquistas democráticas, com o avanço da política de cotas étnico-raciais, que um Professor que ativamente disseminou ideais eugenistas receba a mais alta homenagem que a Faculdade de Direito da USP tem a oferecer?

 

Outras figuras que inegavelmente atuaram como inimigos dos oprimidos levam homenagens na FD-USP. É o caso de Monteiro Lobato, notadamente racista, que está em um quadro ao lado da Congregação da Faculdade e também do jurista Miguel Reale, que foi um integralista e um dos principais redatores da Emenda Constitucional que consolidou a ditadura militar no Brasil, além de delatar estudantes e professores para o regime.

Quando falamos de memória, é preciso nomear e registrar o passado ausente. A história que a história ainda não contou. Para que esse passado ausente não seja mais desconhecido (e assim deixe de ser ausente), é necessário criar mecanismos e políticas de não esquecimento. Outro elemento fundamental é o tempo; o passar do tempo não faz com que a vítima seja esquecida, mas que seja sentida sua ausência.

É fato que no Brasil, tivemos uma grande violação dos direitos humanos no âmbito da Ditadura Militar. Mas anterior a isso, há a maior violação de direitos humanos já cometida na nossa história: a escravidão de negros e negras e o seu posterior subjugamento a condições sub-humanas perante a sociedade brasileira. O Brasil tem uma história marcada pela violência. A colonização, a escravização e o genocídio de povos originários, africanos e afrodescendentes deixaram um legado de autoritarismo, patriarcalismo e racismo institucional que marcam até hoje nossa sociedade.

Nesse sentido, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, sendo a primeira instituição de ensino jurídico do país, tendo formado grandes figuras que ocuparam espaços de notável relevância nos mais altos cargos políticos e jurídicos, possui um papel fundamental na atribuição da memória e da justiça acerca da escravidão e do racismo cientifico e institucional no Brasil.

É importante a compreensão, portanto, de que este pertencimento e permanência que os estudantes reivindicam desde o momento em que adentram a Universidade, possuem facetas objetivas e subjetivas. No âmbito das subjetividades, ressaltamos a importância da representação. É importante para os estudantes que haja cada vez mais docentes negros e não só isso, é importante que aqueles que foram os algozes dos seus ancestrais não sejam homenageados nos locais em que não somente frequentam para estudar, mas para viver tudo que advém da convivência acadêmica.

Sem anistia para todos os nossos algozes! Amâncio de Carvalho foi só o primeiro.

 

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