Nunca antes na história do país um governo tomou posse para sete dias depois ser alvo de uma tentativa de golpe. A invasão bolsonarista aos Três Poderes é símbolo do perigoso momento histórico que atravessa o Brasil e o mundo, em que o neofascismo emerge como relevante força política e social.
Lula venceu Bolsonaro nas eleições. A retirada do genocida da Presidência, ainda que por uma diferença estreita de votos, foi uma gigantesca vitória política do povo trabalhador e da democracia.
Mas, como se viu em 08 de janeiro, o fascismo está vivo e organizado. Não deve ser subestimado. Enquanto o bolsonarismo mantiver influência de massas e penetração nas instituições de Estado, em particular nas forças armadas e policiais, o perigo continuará vigente.
Ao mesmo tempo em que faz soar o alerta, o fracasso da insurreição bolsonarista abre caminho à contra-ofensiva democrática, que precisa ser implacável. A tarefa é impor derrota substantiva ao fascismo. Para tanto, se fazem necessários dois movimentos combinados: aplicar duríssima repressão aos golpistas e realizar medidas econômicas e sociais para melhorar a vida do povo trabalhador.
O primeiro mês do novo governo foi marcado por grandes acontecimentos. Haverá importantes desafios e perigos no próximo período, e também possibilidades. Nesse editorial, apresentamos uma visão sobre o início do terceiro mandato de Lula.
O povo foi à posse e gritou “sem anistia”
Na noite de 30 de outubro, tão logo foi confirmada a vitória de Lula, as ruas de centenas de cidades em todo país foram ocupadas por enormes manifestações. Foi uma noite emocionante e inesquecível de comemoração de massas.
O segundo momento de relevante mobilização popular foi a ida à Brasília para a posse de Lula. De acordo com o levantamento do site Poder360, mais de 150 mil pessoas estiveram no ato em 1o de janeiro. Ainda segundo o site, a posse de Lula foi maior que a dele em 2002 e a de Bolsonaro em 2018, assim como foi superior ao 07 de setembro bolsonarista em 2022.
Trabalhadores e estudantes de todas as regiões do país vieram em caravanas organizadas pelos movimentos sociais e partidos esquerda. Mas essas pessoas não foram à capital federal apenas para festejar a vitória de Lula. Elas percorreram grandes distâncias também para gritar em bom e alto som: “sem anistia” para os crimes do bolsonarismo.
Um Governo de frente ampla e um Congresso conservador
A nomeação dos ministros confirmou o caráter de frente ampla do novo governo, o qual já se evidenciava na indicação de Alckmin para vice, nome de confiança da classe dominante. Trata-se, em termos marxistas, de um governo de conciliação de classes, formado por representantes da esquerda e dos movimentos sociais e também por lideranças da direita e nomes ligados ao grande empresariado. Nele há diversos ministros indicados pelo PT, PCdoB, Rede e movimentos sociais. Mas há também vários outros ministros do MDB, União Brasil, PSD, PSB e PDT. Vários desses partidos de direita estiveram na articulação do golpe contra Dilma e são contrários a diversos pontos do programa que elegeu Lula, como a reversão da reforma trabalhista.
Dessa forma, o mesmo governo que tem Silvio de Almeida, Sonia Guajajara e Anielle Franco (nomes de esquerda e referências para a luta antirracista e indígena), tem também José Múcio (de direita e amigo de generais golpistas), Daniela do Waguinho (ligada à milícia fluminense) e Carlos Fávaro (representante dos poderosos do agronegócio).
Em decorrência dessas marcantes diferenças em sua composição, o governo nasce permeado por nítidas contradições internas. Enquanto as alas mais progressistas tentarão puxar a agenda mais à esquerda, os setores à direita farão o inverso. Serão obstáculo para a aplicação de um programa à esquerda, e mesmo para o avanço da luta democrática. O papel de José Múcio, ministro da Defesa, avalizando os acampamentos nos quartéis dias antes da tentativa de golpe, é bastante ilustrativo dessa consideração. Por isso, defendemos a demissão de Múcio.
Importa destacar também o fato de que o Congresso Nacional tem uma maioria conservadora, além de contar com uma bancada bolsonarista expressiva. Em função de acordos com partidos de direita e de negociões de cargos, é provável que o governo forme maioria no Congresso, tanto no Senado como na Câmara. Mas essa maioria tende a ser instável e precária, dado o caráter traiçoeiro desses “aliados”.
O partido fascista e o golpismo dos quartéis
Embora tenha sido derrotado nas urnas, Bolsonaro saiu das eleições com 58 milhões de votos. Mais do que isso. Candidatos apoiados pelo ex-presidente se tornaram governadores em diversos estados, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A bancada bolsonarista no Congresso é numerosa e barulhenta.
E a força da extrema direita vai além das eleições. Como se observou na intentona golpista de 08 de janeiro, o bolsonarismo tem lastro em setores burgueses (especialmente do agronegócio) e ampla influência nos meios militares e policiais.
Mas não é só. Há uma rede fascista que organiza dezenas de milhares de pessoas, sobretudo pequenos e médios empresários, policiais e militares. Por isso, ela consegue organizar bloqueios de estradas, acampamentos em todo país, disparos em massas de fakenews, entre outras ações.
Não existe um partido de extrema direita formal e legalizado, mas há um amplo partido fascista clandestino, composto por diversos grupos e alas e liderado pela família Bolsonaro. Ele conta com financiamento empresarial e sofisticados mecanismos de organização de seguidores e comunicação de massa, além de articulação internacional.
Cabe ressaltar o papel especial dos militares. Sem a proteção e o estímulo do Exército, não teria sido possível a existência dos acampamentos nos quartéis durante dois meses. Sem a facilitação do comando militar, não teria sido viável a invasão dos Três Poderes em Brasília.
A demissão do comandante do Exército, o General Arruda, foi um importante acerto de Lula. Representou passo inicial para reverter a conspiração golpista no meio militar. Mas ainda há muito a ser feito para desbolsonarizar as forças armadas.
Por esses motivos, deve-se considerar que o bolsonarismo, apesar do revés sofrido com o fracasso do golpe, continuará ativo e influente. Seu objetivo político é criar condições para a derrubada de Lula pelas forças da extrema direita. Sua aposta estratégica é implantar um regime autoritário com características fascistas no país.
É preciso aprofundar a ofensiva contra os golpistas, chegando ao comando
A insurreição de 08 de janeiro fracassou. Sem condições internacionais e internas para um golpe vitorioso, o comando militar não moveu tropas para a tomada do poder. Os militares sabem que os EUA, a União Européia, a China, a Rússia e a maioria da grande burguesia nacional não apoiam, nesse momento, um golpe no Brasil. Por meio da intervenção federal na segurança do Distrito Federal, o governo Lula conseguiu expulsar os invasores dos palácios. As imagens da selvageria em Brasília provocaram amplo repúdio popular. O STF e os presidentes da Câmara e do Senado repudiaram a ação golpista com firmeza. A grande mídia vocalizou a rejeição das camadas dirigentes da burguesia à ruptura institucional. A esquerda foi às ruas contra o golpe. A esmagadora maioria do povo rejeitou a virada de mesa pela força.
Com a derrota da intentona, abriu-se uma conjuntura defensiva para o golpismo. Os acampamentos foram desfeitos e há mais de mil fascistas presos, incluindo o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres. O perigo, porém, é o processo de repressão aos golpistas não chegar ao topo da cadeia de comando, a saber: Bolsonaro e seus filhos, generais, grandes empresários e políticos graúdos. É preciso confiscar seus bens e colocar todos eles na prisão.
Cumprir promessas de campanha é fundamental
É ilusão acreditar que o bolsonarismo será esmagado somente pela via da repressão. É preciso melhorar a vida do povo, entregando à classe trabalhadora, aos mais pobres e às camadas médias as promessas feitas por Lula durante a campanha. Essa é a forma mais eficaz que o governo tem para desidratar a influência bolsonarista na massa. Nesse sentido, fez bem Lula em garantir, por meio da PEC da Transição, o Bolsa Família de R$ 600 com adicional de R$ 150 por criança. Mas errou em não garantir aumento real do salário mínimo desde janeiro.
Os trabalhadores querem mais emprego e direitos, e aumento relevante dos salários, para fazer frente à inflação acumulada. Os pequenos empresários e agricultores reivindicam financiamento barato para produzir e vender. Nossas crianças e jovens demandam educação pública de qualidade em todos níveis. O povo quer um SUS com estrutura e recursos adequados, assim como gás, energia e alimentos mais baratos. A população negra demanda avanços concretos contra o racismo em todas as áreas, a começar pelo fim do genocídio da juventude negra nas periferias e favelas. As famílias pobres querem acesso à moradia de qualidade e alívio de suas dívidas com os bancos. As mulheres reivindicam igualdade no mercado de trabalho e o combate à violência machista. As pessoas LGBTIs exigem avanços em políticas públicas para enfrentar a violência e a discriminação. Os trabalhadores e a classe média querem pagar menos impostos. Os povos indígenas exigem o direito pleno às suas terras e a preservação do meio ambiente.
Nada disso será possível, contudo, sem enfrentar os privilégios das elites. Os grandes capitalistas desejam seguir pagando quase nada de imposto sobre seu patrimônio, renda e lucros. Não aceitam o aumento do salário mínimo e de recursos para as áreas sociais. Querem mais privatizações. Pretendem continuar contratando trabalhadores da forma mais precária possível e com baixos salários. Objetivam continuar usando o racismo e o machismo para manter o elevado patamar de exploração. Querem seguir ganhando dinheiro com atividades que destróem o meio ambiente. E insistem na manutenção da autonomia do Banco Central e de uma taxa de juros absurda, que faz a festa dos banqueiros, mas estrangula o crescimento econômico.
A burguesia pressiona o governo, por dentro e por fora, para ir à direita. O mercado financeiro todo dia faz chantagens e critica qualquer declaração de Lula mais à esquerda. A classe dominante, inclusive o setor que se opõe ao golpismo de Bolsonaro, exige a manutenção da política econômica neoliberal. Em resumo: não quer que Lula cumpra suas promessas sociais.
Lula é por natureza um conciliador — busca sempre agradar os dois lados. Porém, na atual situação do país, parece improvável que isso seja viável, além de ser perigoso. A economia do país está há anos andando de lado e a crise social é intensa. A projeção de crescimento do PIB é de apenas 1% esse ano e há ameaça de desaceleração da economia internacional. Assim, o governo terá que fazer escolhas difíceis.
Para cumprir as promessas com o povo trabalhador, Lula terá que enfrentar e desagradar a burguesia. Se não cumprir, cedendo à pressão dos poderosos, irá desapontar a massa trabalhadora e pobre. Frustrando o povo, sobretudo as famílias pobres que o elegeram, perderá popularidade. Nesse caso, haverá um ganhador político: o bolsonarismo, que aproveitará o desgaste do governo para executar nova ofensiva golpista. No caso positivo, cumprindo as promessas, Lula ganhará força popular, diminuindo a influência política da extrema direita na massa trabalhadora. Esse é o caminho para derrotar o bolsonarismo.
Mobilização e organização popular para vencer
O fascismo, historicamente, nunca foi derrotado somente pela via institucional e eleitoral. A luta e a organização de massas pela esquerda são estratégicos para a vitória. Em duplo sentido: tanto para esmagar a extrema direita golpista nas ruas, quanto para abrir caminho para mudanças sociais, econômicas e democráticas mais profundas, retirando as condições sociais objetivas que nutrem o fascismo.
O governo Lula, por seu caráter de frente ampla, ainda que avance em alguns pontos e medidas, terá necessariamente limites, contradições e erros. De modo que seria um equívoco um postura passiva da esquerda, dos movimentos sociais e dos sindicatos. Não devemos esperar sentados. É necessário organizar a luta nas bases e realizar um processo de disputa ideológica junto ao povo trabalhador e oprimido, partindo de suas demandas mais sentidas.
Quanto mais luta social e trabalho de base a esquerda fizer, mais força terá para enfrentar o fascismo e atuar por mudanças à esquerda no país. A burguesia se organiza com eficácia para pressionar o governo para atender suas pautas. As organizações da classe trabalhadora e dos setores oprimidos têm que fazer o mesmo.
Nesse sentido, ganha importância ainda maior a construção de um potente ato no 8 de março, dia de luta das mulheres. Para que seja uma manifestação contundente em defesa das pautas feministas e da luta antifascista, bem como da manutenção e avanço dos direitos trabalhistas e sociais.
O papel do PSOL e a defesa de um programa anticapitalista
O PSOL, que ajudou a eleger Lula, reafirmou seu compromisso de lutar contra a oposição bolsonarista e pela aplicação de um programa de medidas progressivas. Para fazer isso da melhor forma e com autonomia, o partido decidiu, corretamente, não integrar o governo, priorizando a luta nas ruas e no parlamento. Nesse sentido, consideramos equivocada qualquer ocupação de cargo no governo em nome ou por indicação do PSOL ou de suas correntes. O partido combaterá todo e qualquer golpismo contra Lula, mas preservará sua independência para lutar pelas pautas do povo.
Nós, da Resistência, corrente do PSOL, consideramos que o combate consequente contra o fascismo passa também pela defesa do programa socialista. A extrema direita se alimenta da crise do sistema capitalista e se apoia em setores da burguesia para consolidar sua força. A saída estratégica, para esmagar o fascismo e mudar o país estruturalmente, passa pela construção da organização e da mobilização da massa do povo trabalhador e oprimido, para sustentar um governo de esquerda sem alianças com a burguesia e a direita, que governe apoiado na força do povo.
Leia em inglês: One month of Lula’s government: balance-sheet and perspectives
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