Pular para o conteúdo
BRASIL

O silêncio tem um preço alto: um debate com MRT/Faísca

O que ganha a esquerda defendendo voto nulo no segundo turno?

Por: Lucas Marques* e Milena Cicone**, de Campinas, SP
Ricardo Stuckert

Lula e Haddad em recente ato realizado em Campinas-SP

Recentemente, foi publicado o texto “Fascismo ou bonapartismo? Lições de Trótski para pensar o Brasil” no Esquerda Diário. O artigo abre uma polêmica muito importante e muito atual com a Resistência-PSOL acerca da caracterização do Bolsonarismo e da tática dos revolucionários frente ao desenrolar da luta de classes no Brasil. Os companheiros do MRT nos acusam, na figura de nosso dirigente Valério Arcary, de romper com o marxismo e adotar uma política reformista frente aos desafios colocados pela situação política no período recente.

Esse texto tem como objetivo desenvolver essa polêmica e fazer alguns apontamentos que consideramos importantes sobre a tática dos revolucionários diante dos imensos desafios colocados para a nossa classe neste momento.

Uma salada de categorias: Estado, regime e governo

Em primeiro lugar, é preciso limpar o terreno e afastar espantalhos. Os companheiros do MRT nos acusam de corroborar com um suposto terrorismo petista que impõe uma disjuntiva supostamente fantasiosa entre fascismo e democracia. Nos acusam de abandonar o marxismo, mas operam uma mistura frágil entre as categorias marxistas de Estado, regime e governo, um verdadeiro frankenstein teórico que serve ao propósito de análise justificativa de uma política abstencionista frente à conjuntura. Estas categorias estão intimamente ligadas, mas não são a mesma coisa.

Frente à análise dogmática e formal dos companheiros, queremos desenvolver um pouco a análise da realidade do Brasil atual com base nestas categorias, buscando nos ater mais aos fatos e menos aos exemplos históricos de um século atrás, sem perder de vista o rigor teórico que nos é tão caro.

O fascismo pode ser definido como uma forma ditatorial específica do Estado capitalista, um regime reacionário de massa; mas também como uma ideologia e um movimento que luta pela implantação ou manutenção dessa ditadura, um movimento reacionário de massa. O regime político vigente no Brasil atual é uma democracia burguesa, ainda que deteriorada. Por um lado, é democracia burguesa pois os governantes foram eleitos e o congresso nacional segue funcionando e tendo influência efetiva no processo decisório (o organismo de representação da classe exploradora possui capacidade governativa, de fazer política de Estado), inclusive derrubando ou limitando decretos e medidas provisórias da presidência. Por outro lado, é deteriorada pois 1) o judiciário, através da Operação Lava Jato, constituiu um aparelho que atuou para impugnar candidaturas de representações que não fossem diretamente burguesas (prisão de Lula em 2018); 2) as instituições políticas, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vem sofrendo severas pressões das forças armadas e ameaças do poder executivo.

A história demonstra que não há uma relação automática entre governo fascista e regime fascista: no caso de Hitler, um governo fascista eleito, a implantação de um regime fascista ocorreu no primeiro mês, no caso de Mussolini esse processo levou alguns anos. Um governo é fascista por seu projeto de implantar uma ditadura de tipo fascista e porque se apoia no movimento reacionário de massa que compartilha este projeto político e tem o objetivo de eliminar as organizações da classe trabalhadora. Este movimento é originário das classes médias e cooptado pela burguesia. No caso brasileiro, é possível afirmar que o governo é predominantemente neofascista e se apoia num movimento reacionário de massa gestado nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2015, posteriormente depurado para conformar o bolsonarismo. 

Dizemos que se trata de um neofascismo pela necessidade de resguardar diferenças com os fenômenos políticos ocorridos em países imperialistas na primeira metade do século XX. Sendo o fascismo uma categoria geral, o neofascismo se trata de um subtipo, com características específicas. O neofascismo brasileiro, o bolsonarismo, tem como algumas características específicas:

1) Ser originado por uma crise política menos grave do que a que gerou o fascismo original (essa crise veio a se agravar e aprofundar posteriormente), que foi marcada por uma disputa entre a grande burguesia interna e a grande burguesia associada ao capital internacional no bloco no poder, em um país da periferia do capitalismo no século XXI. 

2) O fascismo original se enfrentava com os grandes e poderosos batalhões de trabalhadores organizados dos antigos partidos socialistas e comunistas, que impunham a necessidade de uma forma político-organizativa mais sólida e um enfrentamento físico mais brutal: um partido de massa com milícias organizadas. O neofascismo se enfrenta, no Brasil, principalmente com a base do PT, que é ampla, mas possui, após anos de governos de frente popular e estratégia institucional, um nível de organização e poder de combate muito menor. Frente a isto, a forma político-organizativa do neofascismo é mais frouxa, difusa, apoiada nas redes sociais e se dá através de uma rede de agitação política reacionária permanente, mas também através de agrupamentos armados que atuam para perseguir e intimidar lideranças e representações da classe trabalhadora.

3) Existe um núcleo de ideologia conservadora comum ao fascismo original e ao neofascismo. Esse núcleo tem como parte, além do anticomunismo, o reforço e politização do machismo, do racismo e da LGBTfobia. No caso específico da LGBTfobia, o discurso adquire um caráter mais enfático e sistemático do que no fascismo original.

É preciso estabelecer que o que enfrentamos no Brasil é um governo predominantemente neofascista e genocida em sua composição política, apoiado em um amplo movimento de massas, organizado de forma difusa pelas redes sociais e através de agrupamentos locais, constituído com base na agitação sistemática de uma crítica superficial à direita da democracia burguesa e de ideologias opressoras. Este movimento de massa chegou ao centro político do governo, se utiliza do aparato estatal para difundir suas ideologias e tem o projeto político de implantar uma ditadura de tipo fascista no Brasil. 

Da mesma forma que não deixamos de ser comunistas por não deter o poder de Estado e não ter conseguido, até o momento, impor a ditadura do proletariado, os fascistas não deixam de ser fascistas por não terem conseguido, até o momento, impor seu projeto político frente à correlação de forças social. Ainda que sua estratégia não tenha logrado a vitória definitiva, vimos assistindo a uma resiliência surpreendente do movimento neofascista, com sua sólida base em torno de 25-30% do eleitorado, atendendo a chamados de mobilização e entregando uma votação surpreendente ao bolsonarismo no primeiro turno das eleições de 2022.

A implantação desse setor neofascista, em especial nas cidades médias no interior do sul e do sudeste, não apenas faz frente, como também supera, muitas vezes, a implantação do petismo. Enquanto isso, os setores à esquerda do PT contam com tímida implantação em geral e seguem extremamente marginais.

As teses sobre a unidade da frente proletária são mais do que argumento de denúncia

Nos surpreende que os companheiros do MRT reivindiquem tão ferrenhamente as teses da III Internacional que são, de fato, um legado histórico do marxismo internacional extremamente precioso. Vale dizer que, completado seu centenário, bem como qualquer outro documento histórico do marxismo, a interpretação ao pé da letra das teses é temerária. A surpresa com a reivindicação se dá na medida que os companheiros negaram de forma sistemática todas as iniciativas de Frente Única organizadas no Brasil no último período. A verdade é que, para eles, a tática da Frente Única é uma política meramente agitativa, uma vez que quando a possibilidade de sua construção é imposta pela realidade, os companheiros se negam a engrossar suas fileiras e apostam em uma linha sectária de denúncias. 

Desde o início do debate eleitoral, ainda em 2021, a Resistência-PSOL apontava a necessidade imprescindível da Frente Única como o instrumento capaz de derrotar o Bolsonaro e a extrema-direita no Brasil. Defendemos a construção de uma unidade entre todas as organizações da classe trabalhadora nas lutas e nas ruas, que impusesse o impeachment de Bolsonaro e que se refletisse também em uma candidatura de Frente Única à presidência da república. Sabíamos, desde lá, que a força do bolsonarismo – que se expressou nas manifestações do 7 de setembro e também na votação do primeiro turno – não poderia ser subestimada. Não à toa, agitamos incansavelmente a exigência de que o PT tivesse como vice de sua chapa um representante dos movimentos sociais, sem alianças com a direita ou com a burguesia. Não esperávamos, por certo, convencer a direção do PT a mudar sua política reformista de conciliação, como apontou na época o MRT, mas sim apresentar um conjunto de exigências que fizesse avançar a experiência das massas com a estratégia petista. 

Se formos mais longe e retomarmos o próprio surgimento histórico da Frente Única, fica nítida a contradição dos camaradas. As ideias iniciais da tática surgem em meados de 1921, mas se consolidam como um importante instrumento da classe trabalhadora apenas a partir da experiência fracassada encampada pelo Partido Comunista Unificado da Alemanha no mesmo ano, que rechaçou a unidade com outros partidos da classe trabalhadora e iniciou uma sequência de táticas ofensivas precipitadas, agitando um levante armado em março de 1921 que levou à prisão, à morte e à derrota de centenas de milhares de trabalhadores alemães. A base teórica que resultou nesta tragédia histórica ficou conhecida como a “teoria da ofensiva permanente”, sendo o exato oposto do que representa a Frente Única. Os dirigentes políticos que a defendiam na época partiam de duas principais ideias, sendo elas: (1) que os revolucionários deveriam forçar as condições para a revolução, sem necessidade de acompanhar ou dialogar com a consciência das massas correspondente ao seu período histórico e (2) que toda e qualquer mediação tática que não apontasse imediatamente para a revolução proletária deveria ser amplamente rechaçada. Ou seja, a negação de toda elaboração leninista de flexibilidade tática na luta política. 

Resgatamos os primórdios desse debate para demonstrar porque, para nós, a posição do MRT entra em contradição com a própria experiência histórica acumulada pela classe trabalhadora através da luta. Se, por um lado, reivindicam – em abstrato – a necessidade da Frente Única, por outro, incorporam importantes elementos da teoria da ofensiva permanente, que é, por essência, a negação da tática de unidade entre as organizações da classe trabalhadora. Embora dura a nossa crítica aos camaradas, não a tratamos de forma leviana. Nos preocupa ver tais tendências em uma organização trotskista séria. Ainda assim, não poderíamos deixar de fazê-la. Ao invés de construir os principais espaços de Frente Única organizados nos últimos anos, essa organização optou por ficar às margens da classe trabalhadora, denunciando todas as iniciativas de unidade. Vimos isso em sua política frente ao Tsunami da Educação em 2019 e novamente nas manifestações pelo Fora Bolsonaro em 2021, organizadas por uma frente de mais de 400 coletivos e organizações da nossa classe, a qual eles não integraram. 

Ao nosso ver, a explicação para essa incoerência entre a teoria e a prática do MRT é fruto de uma atuação dogmática na realidade que se nega a lidar e a intervir sobre as contradições, utilizando-se de um discurso moral sobre as ideias defendidas por Lênin, Trotsky e tantos outros no século passado. Obviamente, estar em um espaço de unidade com um partido reformista não é uma posição fácil para os revolucionários. Mas não há nada de simples ou fácil na luta histórica pela destruição do capitalismo e da burguesia. Não devemos temer as contradições. A necessidade imediata é derrotar Bolsonaro pelo movimento de massas, enquanto a consciência imediata, que ainda tem no PT uma referência majoritária, acredita nas eleições como solução para os problemas atuais. A importância da Frente Única deriva justamente desta leitura. É óbvio que o PT quer canalizar a rejeição à extrema-direita exclusivamente para a via eleitoral, não para as lutas. Mas enquanto a classe trabalhadora tiver confiança nessa direção, devemos atuar com um programa de exigências e denúncias através da unidade, ao invés de agitar caracterizações sectárias que não dialogam com a consciência média das massas. Acreditamos em nossa política, em nossa estratégia e em nossos princípios e isso nos basta para nos jogarmos nas contradições da realidade sem medo de perder o horizonte da revolução. Assistir a luta de classes às margens da classe trabalhadora nos permite o privilégio de nunca nos misturarmos com nossos inimigos e defendermos sempre o programa máximo de nossas ideias, mas certamente não nos permite disputar a realidade concreta e construir o caminho para conquistar a maioria da sociedade para o nosso projeto.

Lenin e o tema da flexibilidade tática

Uma vez mais, precisamos limpar o terreno e esclarecer as categorias em debate, já que os companheiros parecem ter problemas em definir com clareza o âmbito das categorias tática, estratégia e princípios (este problema, em especial, é mais recorrente nessa linha de diálogo).

Um procedimento típico do sectarismo é tratar os princípios revolucionários como dados tais como as tábuas dos dez mandamentos, tal qual a mais rasteira das mistificações burguesas, sem lhes conferir o devido caráter histórico. Os princípios revolucionários são decorrência das tarefas de nosso tempo histórico e fruto das lições históricas da nossa classe diante de suas experiências concretas. Tomemos como exemplo o princípio da independência de classe: ele decorre da conclusão, a partir da época do imperialismo, da possibilidade e necessidade da luta imediata (em termos) pelo socialismo, ou seja, é a conclusão da necessidade da organização independente da classe trabalhadora em seu próprio partido político com uma estratégia de tomada do poder. Isso decorre do amadurecimento objetivo das condições para a luta pelo socialismo, não de razões morais metafísicas. É fruto do desenvolvimento histórico.

Tática e estratégia são conceitos extraídos da ciência militar.  São conceitos relativos entre si, sendo a estratégia um conceito de mais longo prazo e a tática o terreno da ação imediata. A estratégia a mais longo prazo dos trotskistas é a construção de um partido de vanguarda com influência de massas e a mobilização das massas pela tomada do poder. Para este objetivo podemos nos utilizar de uma série de táticas.

Tática, estratégia e princípios são categorias intimamente correlacionadas, mas bastante diferentes. Fazendo uma analogia com o movimento de um pêndulo e seus diferentes graus de liberdade, é como se as táticas fossem a ponta do pêndulo que se move, a corda fosse a estratégia e o eixo, ponto no qual é preso o pêndulo, fossem os princípios.

Essa discussão é importante pois outro comportamento típico do sectarismo é a transposição direta dos princípios para o terreno da política, da tática, ignorando as determinações concretas da realidade e impedindo uma mediação razoável entre tática e estratégia. 

Esse comportamento é estranho ao marxismo revolucionário, caracterizado por sua flexibilidade tática, não por seu purismo cristão. 

No entanto, o princípio é uma categoria oposta à tática, embora intimamente ligada, porque a tática é um meio e o princípio é muito mais do que uma estratégia, é a base da nossa política. Toda tática tem que ser baseada em princípios e todo princípio tem que aceitar que deve ser expresso por meio de meios. Mas cada uma dessas categorias tem seu âmbito. O domínio da tática, como o do slogan, é o domínio do imediato, não do histórico; é o reino das necessidades imediatas e da consciência imediata — por mais atrasada que seja — do movimento de massa. E se a tática não se adapta a essas condições, deixa de ser meio: é a repetição dos princípios. – Moreno, Nahuel. Atualização do Programa de Transição. Tese XXXVI. Princípios, Estratégia e Tática

A luta contra o reformismo, ou seja, a luta contra a representação da política burguesa no seio do movimento operário, é parte da nossa estratégia. E como meio para essa estratégia, é acúmulo histórico dos movimentos revolucionários de que as táticas unitárias são táticas de enfrentamento e não de capitulação.

Toda tática deve ser principista e todo princípio deve se expressar em táticas, mas isso não iguala essas categorias, ao contrário, cada uma tem seu âmbito. O âmbito da tática é o terreno do imediato, da correlação social de forças, da correlação política de forças, das regras eleitorais, das vantagens e desvantagens para a construção da organização revolucionária, do possível, da consciência das massas.

O voto é definitivamente uma questão de tática. Queremos trazer dois exemplos históricos, não com o objetivo de dizer que devemos fazer o mesmo no Brasil, porque isso depende da realidade concreta do país. O critério decisivo não é a tática em si, mas qual a linha geral, qual combate político está sendo feito, dentro ou fora de qualquer frente. Queremos demonstrar a amplitude da flexibilidade das táticas aplicadas por Lenin em disputas eleitorais e a importância que esse dirigente histórico dava para o tema. Pedimos licença para algumas citações longas.

O primeiro exemplo é o da atuação dos bolcheviques nas eleições das Dumas russas:

É inegável que nas cidades, a Centúrias Negras [proto-fascistas da época] podem se eleger, aqui e ali, exclusivamente pela ausência de um “bloco de esquerda” ou porque os Socialdemocratas, por exemplo, desviaram uma parte dos votos dos Cadetes [liberais da época]. Recorde-se que em Moscou, Gutchkov [czarista, conservador] obteve 900 votos, e os cadetes cerca de 1.400 votos. Teria bastado que um socialdemocrata retirasse 501 votos dos cadetes que Gutchkov triunfaria. Sem dúvida que as pessoas comuns vão considerar este cálculo simples; terão medo de dividir os votos, e por isto votarão no candidato mais moderado da oposição. Teremos aquilo que é chamado na Inglaterra de uma luta com “três corners”, em que a pequena burguesia urbana terá medo de votar no candidato socialista por que ele tiraria votos dos liberais, permitindo assim uma vitória conservadora. Como se proteger contra esse perigo? Há apenas um caminho: chegar a um acordo na primeira fase, ou seja, uma lista conjunta em que o número de candidatos de cada partido é determinado por um acordo anterior à disputa. Todos os partidos que entrarem neste acordo chamam um voto para esta lista comum. A SOCIALDEMOCRACIA E OS ACORDOS ELEITORAIS” [II DUMA] Escrito na segunda quinzena de outubro de 1906. Publicado em novembro de 1906 no encarte pela editora Vperiod, em Petersburgo [OC, tomo 14, pág. 75-100]

Lenin dava tanta importância à intervenção nas eleições que se tornou o principal especialista do partido na complicada legislação eleitoral da Rússia czarista. Conhecia a fundo as possibilidades de manobrar e dividir os demais partidos, valendo-se das regras do regime para, inclusive, garantir a eleição de deputados. Assim, a análise concreta da situação concreta conduziu os bolcheviques a privilegiarem as candidaturas próprias no primeiro turno das eleições das Dumas. Era, portanto, uma questão tática. Contudo, a política eleitoral dos bolcheviques, tomadas como um todo as eleições das quatro Dumas de Estado, em seus diversos turnos e colégios eleitorais (cúrias), incorporou as mais diversas táticas: do boicote às eleições a candidaturas próprias e, também, acordos eleitorais com os mais variados partidos – mencheviques, trudoviques, SR’s de esquerda e, inclusive, Cadetes (liberais!) – quando se tratava de impedir a eleição de Centúrias Negras ao parlamento.

O segundo exemplo trata da discussão de Lenin com o nascente movimento comunista da Inglaterra:

Se não somos um grupo revolucionário, mas o partido da classe revolucionária, se queremos arrastar as massas (sem o que corremos o risco de não passar de simples charlatães) devemos, em primeiro lugar, ajudar Henderson ou Snowden [reformistas da época] a vencer Lloyd George e Churchill [conservadores]. Pag. 40
Agora é muitas vezes difícil aos comunistas ingleses mesmo chegarem à massa, mesmo fazerem-se ouvir. Mas se eu me apresento como comunista e declaro que convido a votar por Henderson contra Lloyd George, certamente que me escutarão. Pag. 41.
É verdade que os Henderson, os Clynes, os MacDonald e os Snowden são irremediavelmente reacionários. E não é menos verdade que querem tomar o poder (preferindo, aliás, a coligação com a burguesia), que querem «governar» de acordo com as velhas normas burguesas e que se conduzirão inevitavelmente, quando estiverem no poder, como os Scheidemann e os Noske. Tudo isso é assim. Mas daí não decorre de modo nenhum que apoiá-los signifique trair a revolução, mas sim que, no interesse da revolução, os revolucionários da classe operária devem conceder a estes senhores um certo apoio parlamentar. Pag 37.
Lenin. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. Abril de 1920. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/05/esquerdismo-doenca-infantil.pdf

Henderson e Snowden foram deputados e dirigentes do Partido Trabalhista Inglês. Desde o surgimento da organização (1900), os seus dirigentes seguiam uma política de colaboração de classe. Durante a guerra mundial imperialista (1914-1918), os líderes do Partido Trabalhista, incluindo Arthur Henderson, adotaram uma posição nacionalista, compuseram o governo do Partido Liberal e, com o seu apoio ativo, foram aprovadas diversas leis contra os operários. Lenin defendeu o voto e a unidade dos Comunistas com o Partido Trabalhista como forma de combatê-los.

Estes exemplos são importantes não pelo objetivo de operar uma transposição automática das condições históricas de um século atrás para a luta de classes no Brasil de 2022, mas para demonstrar que o tema das frentes e táticas eleitorais tem caráter político e tático, não diretamente de princípios (ainda que estes jamais devam ser deixados de lado). Estaria Lenin rompendo com a independência de classe ao propor aos comunistas ingleses que abrissem mão de uma candidatura própria para apoiar os trabalhistas? Ou ao propor compor listas conjuntas com os Cadetes para barrar a eleição dos Centúrias Negras? Por óbvio, dadas as condições, o melhor é que apresentemos nossa própria alternativa nas eleições burguesas, mas a noção de regra geral é alheia ao marxismo.

Os exemplos citados pelos companheiros do MRT em seu texto são de validade histórica incomensurável, mas é impossível traçar um paralelo direto entre a revolução espanhola e a Alemanha entre-guerras e o Brasil de 2022 por uma longuíssima lista de motivos. A abordagem dos companheiros abandona a perspectiva do marxismo como ciência viva e o transforma em dogma estéril.

O debate atual deve ser validado sobre seus termos políticos: qual é a melhor saída para a classe trabalhadora na atual conjuntura e qual é a melhor localização para a atuação dos revolucionários, sob pena de condenar a classe trabalhadora brasileira a mais 4 anos de um governo que já deixou um rastro de mais de 700 mil mortos atrás de si.

O fato é: existe a possibilidade de impor uma derrota política importante à extrema-direita e livrar a todos nós de mais 4 anos desse governo genocida, além de criar condições muito superiores para a luta política revolucionária. No entanto, em lugar de cacifar os revolucionários como intimamente ligados aos anseios e necessidades da nossa classe, a política do MRT tem a infeliz consequência de jogar os ideais revolucionários na lama da inutilidade política. Mais do que a ruptura com o marxismo, é a ruptura com o bom senso.

Qual o medo do MRT em chamar voto em Lula no segundo turno?

Como bons marxistas, sabemos que o debate teórico e histórico deve se desdobrar em uma política concreta para a realidade, que dialogue com as reivindicações imediatas da classe trabalhadora e construa as pontes necessárias para o avanço da consciência de classe. Por isso, não podemos nos abster diante de um dos principais processos políticos da nossa geração: a eleição presidencial que pode impor uma importante, ainda que não completa, derrota ao bolsonarismo depois de 4 anos de governo. Se os companheiros do MRT acreditam que a Resistência prioriza a disputa eleitoral frente à luta nas ruas por chamar voto em Lula, os colocamos uma pergunta: para vocês, tem diferença se quem governa o país é Bolsonaro ou o PT? Nos jogamos de cabeça na campanha eleitoral porque, para nós, essa resposta é muito simples. Não se trata de defender o projeto político de conciliação de classes representado por Lula, tampouco de acreditar que é nas urnas que se derrota o fascismo. Trata-se, simplesmente, de compreender o impacto que uma vitória política de Bolsonaro nas eleições tem para as mulheres, as LGBTI+, a população negra, os povos indígenas e a classe trabalhadora de modo geral. Sabemos que as eleições não resolverão a profunda crise hoje vigente, mas a derrota objetiva e subjetiva que uma possível reeleição de Bolsonaro vai impor à esquerda e ao povo brasileiro não é menor. O que ganha a esquerda radical – além da consciência tranquila por não se enfrentar com as diversas contradições da realidade – se abstendo desse processo? 

Se realmente acreditam que a melhor política para o momento atual é o voto nulo, por que então não fazem uma ampla campanha de agitação a defendendo? Em 2018, os companheiros do MRT optaram por fazer uma tímida e confusa campanha, sem somar nas mobilizações da juventude e da classe trabalhadora para eleger Haddad. Agora, trilham o mesmo caminho, porém num cenário ainda pior. Votarão nulo no segundo turno, mas não defendem essa linha de forma aberta e transparente. Nós, que votamos criticamente em Lula no primeiro turno e votaremos novamente no segundo, não temos vergonha de gritar nas ruas a nossa posição. Isso porque, como revolucionários, sabemos que uma política que não se defende nas ruas serve tanto quanto o mais absoluto silêncio. Quando não disputamos na realidade a nossa linha, a política deixa de ser um instrumento de intervenção na luta de classes para se tornar um discurso vazio, de nós para nós mesmos, sobre quem tem razão. Os camaradas vão organizar panfletagens pelo voto nulo nas cidades do país? Ou vão se contentar em dizer à vanguarda que não votam em Lula por seus princípios inabaláveis, mas na agitação pública seguirão escondendo das massas sua verdadeira posição?

A defesa do voto nulo no segundo turno, caso encontrasse respaldo nas massas, seria absolutamente desastrosa para o futuro da luta de classes no país. O que impera na parcela da população que não quer mais 4 anos de governo Bolsonaro é a correta prioridade de eleger Lula e de avançar na desmoralização e na derrota da extrema-direita. Isso significa que as eleições bastam e que não devemos ocupar as ruas? Óbvio que não. Por isso mesmo temos defendido uma campanha militante, combinada a um calendário de lutas, que organizou não só os atos pelo Fora Bolsonaro em 2021, mas que agora também incendeia as universidades na construção das manifestações do dia 18 de outubro, contra os cortes na educação. 

Vamos, ao lado do povo, com Lula no segundo turno e seguiremos construindo as bases necessárias para um alternativa independente e revolucionária no país. No dia 01 de janeiro estaremos, sem dúvidas, na oposição de esquerda ao governo, seja ele qual for. Defendemos que o PSOL não seja parte da composição de um eventual governo do PT e seguiremos travando essa batalha até as últimas consequências. Até lá, estaremos nas ruas disputando os votos da classe trabalhadora, sem medo. Não nos abstemos de uma das principais tarefas políticas da nossa geração: derrotar Bolsonaro e a extrema-direita, nas ruas e nas urnas. Esperamos poder contar com os companheiros do MRT nesse grande desafio.

1 Para entender melhor esse processo histórico, indicamos a leitura da série da Frente Única, publicada no Esquerda Online em comemoração aos 100 anos de surgimento da tática: https://esquerdaonline.com.br/tag/serie-frente-unica/
* Lucas Marques é militante da Resistência-PSOL e do Afronte e Secretário de Formação do PSOL Campinas
** Milena Cicone é mestranda em Ciência Política na Unicamp, compõe a APG Central, é representante discente no Conselho Universitário e militante da Resistência-PSOL e do Afronte!