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MUNDO

Campanha Lula Presidente na Argentina revela uma comunidade brasileira politizada e apoio das forças locais

Camila Maia*
Lula na Argentina
Poder360

A campanha do Lula na Argentina está mobilizando tanto brasileiros residentes no país quanto argentinos ansiosos pelo fim do governo Bolsonaro. Ela revela dois fenômenos: por um lado, um salto de politização e organizativo da comunidade brasileira na Argentina nos últimos anos, com origem nas reverberações internacionais dos protestos de junho de 2013. Por outro, a forte expectativa de diversos setores políticos e sociais argentinos em torno da eleição de Lula em 2022. 

Eu tinha 25 anos quando explodiram os protestos de junho de 2013 no Brasil. Morava na Argentina desde 2010 trabalhava em um organismo de direitos humanos fundado na ditadura militar. Admirava muito a capacidade argentina de mobilização e protesto, que abrangia desde os atos de memória do golpe de 76 até as frequentes mobilizações sindicais, passando pela defesa de leis como a do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Um espírito que parecia não existir no Brasil, onde a política – e os direitos humanos – se discutiam em universidades e gabinetes. 

Os protestos de junho de 2013 mudaram esse estado de coisas. Esses atos, que começaram em São Paulo contra o aumento das passagens, passaram a abarcar muitas outras pautas e se disseminaram não apenas por todo o país, como também por cidades no exterior com presença de população de brasileira. Em Buenos Aires surgiu um evento no Facebook convocando para um ato no Obelisco que seguiria em direção à Embaixada do Brasil, também localizada na Avenida 9 de Julio. Os organizadores eram um grupo de estudantes jovens sem trajetória de militância. Logo se juntaram também algumas pessoas que, como eu, tinham um pouco mais de trajetória, incluindo uma ativista do Movimento Passe Livre de Brasília. Esse grupo disputou a redação do manifesto para construir um texto menos anti-política e mais baseado na ampliação democrática e de direitos. O ato, no entanto, foi um microcosmo do junho de 2013 brasileiro:  já no Obelisco, três militantes com camiseta e bandeira vermelha do MST, partido de esquerda argentino foram imediatamente cercados aos gritos por pessoas com camisetas do Brasil que fizeram com que se retirassem. Enquanto puxávamos gritos sobre os 20 centavos, outros xingavam Dilma Rousseff. 

Entre 2016 e 2018, período em que morei no Brasil, um grupo de brasileirxs de esquerda residentes em Buenos Aires formou o Coletivo Passarinho. Tiveram um primeiro objetivo de disputar aqui a narrativa sobre o golpe de 2016 contra Dilma. Assumiram também com muita energia, desde 2018, o compromisso com o caso do assassinato de Marielle Franco, amiga pessoal de algumas das integrantes do Coletivo. Marielle, negra, favelada, LGBT tornou-se conhecida na militância argentina, e diversos grupos e lideranças locais se solidarizaram com o pedido de verdade e justiça sobre o caso. O Passarinho organizou ano a ano, no mês de março, atos pelo aniversário da sua morte, combinando expressões culturais brasileiras com práticas aprendidas do movimento argentino de direitos humanos. Em 2021 Marielle foi homenageada pela Legislatura da Cidade de Buenos Aires, que instalou uma placa na estação Rio de Janeiro do metrô. 

Ao longo de 2018 e 2019, o Passarinho realizou debates e atos de denúncia do governo Bolsonaro. Também impulsionou o debate ainda bastante incipiente no progressismo argentino sobre o racismo estrutural, traçando importantes alianças com coletivos migrantes, afroargentinos e “marrones”. Essa construção em pequena escala formou uma espécie de diplomacia militante paralela, feita de baixo para cima e de maneira constante por pessoas com trajetória e formação política no Brasil que, por razões pessoais, profissionais ou políticas escolheram morar e permanecer neste país irmão.  

É nessa linha de tempo que deve ser localizada a campanha pela eleição do Lula na Argentina. Embora o Passarinho não seja partidário, e coexistam nele pessoas que nem sempre compartilham uma única preferência eleitoral, alguns dos principais líderes do Núcleo do PT na Argentina foram e são também membros ativos do coletivo. Esse processo de politização e organização de uma parcela mobilizada da comunidade brasileira na Argentina permitiu formar quadros que, formados em outra cultura política e trazendo uma agenda própria, aprenderam transitar na política argentina e a construir com ela. 

Uma campanha informada e estratégica

Existe hoje um total de 82.330 brasileiros/as residentes, maiores de 16 anos, na Argentina – os dados são de abril deste ano. Na eleição de 2014, apenas 6.018 pessoas estavam inscritas para votar no consulado. Na eleição de 2018, foram 7.143. Esse número cresceu para 12.746 em 2022, um aumento de 79% que deve ser atribuído, em grande medida, ao trabalho que a campanha de Lula na Argentina fez entre março e abril para que os brasileiros fizessem o pedido de mudança ao TSE. 

O Núcleo do Partido dos Trabalhadores na Argentina, integrado por militantes do partido que moram no país, foi criado em meados de 2021 e teve seu primeiro ato público em dezembro. Conseguiu agrupar mais de 60 filiados ao Partido dos Trabalhadores residentes na Argentina – aproximadamente 20 dos quais se filiaram para esta campanha. Estabeleceu como a sua primeira meta garantir que mais brasileiros residentes na Argentina regularizassem o título de eleitor e comunicassem a mudança de residência ao Tribunal Superior Eleitoral antes do prazo máximo, dia 4 de maio de 2022. 

Desde o início montou-se uma campanha informada e estratégica. No início do ano o Núcleo fez um pedido formal de informação ao RENAPER – Registro Nacional de las Personas, órgão nacional encarregado do registro civil, que permitiu obter informação geral sobre a idade, sexo e distribuição territorial das pessoas de cidadania brasileira, maiores de 16 anos, com residência temporária ou permanente no país. A maioria se encontra em Buenos Aires capital (42%), seguida da Província de Buenos Aires (20%). Algumas das cidades com maior concentração de brasileiros, além de Buenos Aires, são Rosario, La Plata, General Pueyrredón (onde fica a cidade de Mar del Plata), Morón, Córdoba e La Rioja. Também se destaca a prevalência de população jovem – 43% têm entre 16 e 34 anos. 

Segundo Renata Codas, integrante do Núcleo, “os dados confirmaram a hipótese que tínhamos de que boa parte dessas pessoas são estudantes universitários. Uma das nossas principais estratégias de campanha foi mapear e criar comandos de campanha em centros universitários das cidades com maior concentração de brasileiros residentes: Buenos Aires, Rosário, La Plata”. 

Os estudantes brasileiros na Argentina não são intercambistas típicos, com recursos financeiros ou simbólicos para estudar no exterior: são pessoas de classe média ou média baixa que não conseguiram acessar a universidade pública ou privada no Brasil, com predominância daqueles que queriam estudar medicina. A existência de um amplo sistema universitário público, de qualidade e gratuito – inclusive para não-argentinos –; e de um sistema privado bom e barato, somadas ao baixo custo de vida na Argentina e a facilidade para obter uma residência permanente pelo critério Mercosul são fatores que tornam a alternativa de morar aqui mais viável do que frequentar uma universidade privada ou passar nos processos seletivos ultracompetitivos do sistema público do Brasil. 

Essas pessoas não necessariamente estão organizadas ou politizadas – a maioria não realiza o pedido de mudança de local de votação para poder votar no consulado brasileiro, primeira meta assumida pela campanha. Essa entrada nas universidades não teria sido possível sem o apoio das agrupações estudantis argentinas, que ajudavam na organização e convocatória para encontros que permitiam chegar aos estudantes brasileiros. Dos encontros surgiam grupos de Whatsapp para a coordenação da campanha em cada cidade ou universidade. Outra aliança fundamental foi com os centros culturais progressistas das cidades em que a campanha esteve focada, que na Argentina estão organizados em rede e que aderiram com muito interesse à campanha. As atividades incluíram de jogos de futebol em Rosario e La Plata, produção de material como camisetas e adesivos, panfletagens, presença em atividades culturais da comunidade brasileira, rodas de samba. 

Em Buenos Aires, foram organizados também encontros setoriais com o movimento feminista, antirracista, de imigrantes, LGBT e juventudes. Viajaram para alguns desses encontros não apenas quadros do PT, como também o próprio presidente do PSOL, Juliano Medeiros, e Guilherme Boulos, cujas presenças em um grande e encontro organizado com os Barrios de Pie em Buenos Aires ajudaram a inspirar e atrair novos militantes de esquerda para a campanha. Foi organizada também uma grande feijoada de arrecadação de recursos. 

A potência da campanha do Lula na Argentina passa pela construção com uma diversidade de movimentos políticos locais de tradição fortemente territorial. O princípio de solidariedade regional sempre foi muito forte nos setores progressistas argentinos. Operou de forma fundamental em situações como o golpe na Bolívia. O interesse que suscita a campanha do Lula entre os argentinos envolve, no entanto, também um sentimento de urgência. O país que vive uma crise socioeconômica grave e uma situação de forte endividamento externo, e atribui grande importância à volta, no Brasil, de um governo potente e comprometido com uma América Latina desenvolvida, soberana e justa, que melhore os termos da inserção internacional da Argentina. 

A primeira importante vitória do Núcleo já é clara, e se expressou no aumento em quase 80% do número de pessoas aptas a votar na Argentina. Para o dia da eleição o PT registrou por volta de 30 fiscais eleitorais, uma lista que incluiu militantes filiados e pessoas não filiadas, como esta autora. É o consulado com mais fiscais registrados pelo partido, uma função não menor em um momento em que o presidente ameaça contestar a eleição e o funcionamento das urnas eletrônicas. Resta observar o impacto da campanha no resultado eleitoral. Esses 12 mil votos podem ser pouco significativos para o resultado final das eleições brasileiras, mas expressam muito sobre o vínculo entre os dois países. 

* Camila Maia é formada em Relações Internacionais, Ativista em direitos humanos na Argentina e integrante do GT de programa Internacional do “Direito ao Futuro” do PSOL