Desde que anunciou o Auxílio Brasil, Bolsonaro mudou “da água para o vinho” sua narrativa acerca dos programas de transferência monetária. Em toda sua carreira política sempre atacou programas dessa modalidade com posição reacionária e aporofóbica. Ainda no ano 2000, foi o único deputado a votar contra a criação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, defendendo o controle de natalidade da população mais empobrecida como medida mais eficaz para seu enfrentamento.
Acerca do Programa Bolsa Família sempre foi um crítico voraz, insistindo em que tal programa alimentaria a preguiça e criava cada vez mais um volume de pobres ignorantes “alienados” pelo PT. Mesmo no auge da pandemia, quando se criou o Auxílio Emergencial, seu governo propunha um valor ínfimo de R$ 200,00, que conforme amplamente demonstrado, foi modificado pela oposição para chegar ao valor de R$ 600,00 e a uma conformação mais ampla.
A mudança – que não foi nada repentina – veio a menos de um ano para as eleições presidenciais, numa evidente jogada política-eleitoral (praticamente chantagista). A criação do Auxílio Brasil resultava de dois processos, pelo menos: o reconhecimento do governo sobre o potencial de capitalização política de um programa dessa natureza, sobretudo em função dos ganhos de popularidade auferidos pelo presidente como Auxílio Emergencial; e a queda contínua de aprovação do seu governo, passados os efeitos do Auxílio Emergencial e dada a catástrofe dos indicadores sócio econômicos que, entre outros elementos, colocavam Bolsonaro atrás de Lula na corrida da disputa presidencial.
A partir de então, tornou-se exímio defensor do programa que ele criou para imprimir uma espécie de “marca social” ao seu governo, propalando aos quatro ventos a superioridade do Auxílio Brasil em relação ao Programa Bolsa Família, tanto em termos de valores dos benefícios como em possibilidades mais amplas de acesso e permanência.
O Projeto de Lei Orçamentária não inclui previsão para manutenção desse patamar
Após sucessivas investidas para ampliar o valor do benefício, que hoje é de R$ 600,00, e de possibilitar a tomada de empréstimos consignados pelos beneficiários, que podem comprometer até 40% do valor do benefício, Bolsonaro repete copiosamente que o Auxílio Brasil será mantido no atual valor no próximo ano. Entretanto, o Projeto de Lei Orçamentária apresentado pelo Poder Executivo não inclui previsão para manutenção desse patamar, sendo previsto um valor médio de R$ 405,00.
Bolsonaro também tem afirmado que o Auxílio Brasil teria regras de permanência que permitem que os beneficiários continuem a receber o benefício, mesmo que acessem emprego formal, com carteira assinada, ao contrário do que, segundo ele, acontecia no Programa Bolsa Família. Ou Bolsonaro desconhece os detalhes de condicionalidades, regras de acesso e critérios de permanência do programa, ou usa de má fé (possivelmente as duas opções) para camuflar a informação completa e dar contornos que o Auxílio Brasil não tem.
É praticamente a mesma regra que existia no Programa Bolsa Família, a chamada Regra de Permanência
A chamada regra de emancipação, do Auxílio Brasil, permite que o beneficiário, que começou a trabalhar com carteira assinada, continue recebendo o benefício por um determinado período de tempo (dois anos), depois do qual o benefício é cancelado. No entanto, isso somente é possível se a renda per capta alcançada pela família não for superior a duas vezes e meia o valor previsto pela chamada linha da pobreza, o que equivale a R$ 525,00. Além disso, o próprio usuário deve se dirigir ao Cadastro Único para atualização de dados cadastrais. Caso não proceda dessa forma e o sistema de cruzamento de dados identifique mudança no perfil de renda da família, o benefício é bloqueado. É praticamente a mesma regra que existia no Programa Bolsa Família, a chamada Regra de Permanência, que também permitia a continuidade do benefício por dois anos, mas neste caso, a renda per capta não poderia ultrapassar meio salário-mínimo.
Outro elemento importante de se destacar é que os mecanismos de fiscalização e controle do Auxílio Brasil, neste caso, são mais intensos do que eram no Bolsa Família, o que implica que as famílias estão permanentemente sob o escrutínio da malha fina do Estado. Além do chamado processo de averiguação cadastral – que busca justamente identificar mudança no perfil de renda das famílias por dados cruzados com outros sistemas – que era feito no PBF a cada ano e foi mantido no Auxílio Brasil, este último criou também uma estratégia de fiscalização denominada “Processo de Focalização”. Este consiste num conjunto de procedimentos mediante o qual o governo faz o cruzamento de dados do CadÚnico com outras bases de dados do governo todo mês para identificar possíveis situações “irregulares”, em que as famílias estejam acima da linha de emancipação ou da linha da pobreza. É uma espécie de focalização às avessas! Se historicamente os chamados programas focalizados de alívio à pobreza tinham por objetivo focalizar nos mais pobres para incidir sobre sua renda, o Auxílio Brasil focaliza nas famílias que ultrapassem a linha da pobreza para averiguar inconsistência e irregularidade que justifiquem o bloqueio ou suspensão do benefício.
Sua proposta orçamentária aponta para completa destruição do Sistema Único de Assistência Social
É verdade que o Auxílio Brasil tem um valor médio maior que o do Bolsa Família, mas isso não se deve à uma posição político-governamental progressista do atual governo em relação ao enfrentamento à pobreza e às desigualdades, mas tão somente ao oportunismo clientelista do presidente. Não esqueçamos que a proposta inicial do governo era tão descaradamente eleitoreira que o propalado valor de R$ 400,00 tinha previsão orçamentária apenas até dezembro deste ano e, ainda por cima, com uma base de financiamento assentada no endividamento público, já que dependia da polêmica aprovação da PEC dos Precatórios. Bolsonaro sequer se comprometeu com elementos trazidos pelo legislativo, vetando artigos que determinavam o compromisso do governo em zerar a fila de espera do Programa e adoção de medidas efetivas para constituição de uma política de combate à pobreza. Ao longo dos últimos meses temos visto o governo se desdobrar para ampliar o Auxílio Brasil este ano, mas sem perspectivas técnico-orçamentárias que sustentem sua manutenção nos termos atuais para o próximo ano, indicando tratar-se meramente de táticas eleitorais, sem perspectivas de solidificação de um programa de renda básica. E mais ainda, sua proposta orçamentária para a política de assistência social aponta para completa destruição do Sistema Único de Assistência Social e seus serviços de proteção social básica e especial, evidenciando sua concepção ultraconservadora de política social: resumir a assistência social à programas seletivos de transferência monetária, que podem mais facilmente ser manuseados para sua própria legitimação e usados para constituir uma massa de manobra política. Verdade seja dita, as tendências eleitorais em curso nesse momento indicam que o intento não vem sendo alcançado efetivamente.
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