Para compreender o alcance do chamado Novo Ensino Médio (Lei 13.415/2017) e a prioridade estratégica da luta por sua revogação é imperioso considerar os rumos do padrão de acumulação do capital no Brasil e na generalidade do modo de produção capitalista. Seria um sério erro conceber a dita reforma como uma medida com repercussão estritamente educacional. Seria equivocado, contudo, entendê-la como mais uma medida genericamente neoliberal, um grão de areia no universo da ofensiva do capital contra o trabalho.
Neste pequeno texto sugiro, inicialmente, que existem particularidades no padrão de acumulação do capital que, no caso brasileiro, exigiram um golpe contra o governo legítimo (2016) para impor retrocessos aos pequenos avanços logrados na década anterior, confirmando descontinuidades: é irrefutável que 2016 recalibra a relação capital-trabalho, notadamente com a contrarreforma trabalhista de 2017 que institucionaliza o trabalho precário, debilitado de direitos trabalhistas efetivos, e enfraquece abruptamente o financiamento dos sindicatos. Coetaneamente, o golpe de 2016 instaura um novo regime fiscal que busca uma rápida queda nos gastos sociais do Estado (EC 95/2016). A imagem de Marcio Pochmann de que está sendo implantado um sistema “jagunço” de acumulação do capital, baseado na brutal exploração, nas ferozes expropriações, e na universalização crescente do trabalho aviltado ajuda a dimensionar o que está em curso no Brasil. É possível propugnar, por conseguinte, que embora a acumulação neoliberal siga em curso desde o final dos anos 1980, o que é verdade, não decorre desta afirmação a tese de que o neoliberalismo é um processo fora da história da luta de classes e das correlações de forças. O golpe de 2016 contou com apoio unânime do Estado Maior do Capital e teve como objetivo forçar a elevação da taxa média de lucros e, o que é indissociável desse processo, alargar a extração de mais-valor: sem impingir derrotas aos trabalhadores tais propósitos seriam inalcançáveis.
Existem diferenças entre o neoliberalismo dito neodesenvolvimentista ou da terceira via – no qual, no caso brasileiro, a educação básica foi ampliada, ocorreu elevação da massa salarial em relação ao PIB e relevante aumento real do salário-mínimo – e as novas medidas econômicas, educacionais e sociais advindas da ruptura de 2016, abrangendo os períodos de Michel Temer (que pode ser sumarizado na agenda da Ponte para o Futuro) e, com novas particularidades, o governo Bolsonaro.
No atual governo de cariz neofascista a referida agenda é amalgamada pelos preceitos da guerra cultural que, imbuída do objetivo de extirpar a esquerda, os sindicatos classistas e os movimentos antissistêmicos, se lança em um movimento de larga envergadura contra os direitos sociais, os preceitos socioambientais, os direitos trabalhistas e, de modo acentuado, contra a educação pública, a ciência, a arte e a cultura. As investidas não se restringem às representações mentais e ao mundo das ideias, ao contrário, possuem real materialidade por meio de uma peculiar associação entre estrangulamento orçamentário, ameaças aos trabalhadores destes setores, ao intento governamental de desmoralizar as instituições educacionais, científicas e culturais, e pelo incentivo a medidas afins aos objetivos das forças que sustentam a guerra cultural, como os ajustes fundamentalistas na BNCC, a implementação das escolas cívico-militares e o homeschooling.
A conquista da educação básica, incorporando a educação infantil e o ensino médio, por meio da EC 59/2009, abriu um novo campo de disputa sobre a formação da classe trabalhadora. A ampliação da escolaridade e a inclusão do ensino médio permitiria enfrentar um problema de grande envergadura: a crise sobre a função do ensino médio, até então concebido como uma etapa desprovida de características educacionais próprias que permite acesso, após o exame vestibular do ENEM, ao ensino superior.
Com o conceito de educação básica, potencialmente, o ensino médio poderia sofrer uma radical mudança, pois inserido na educação geral, comum, permitindo, desse modo, retomar, em novas bases, um objetivo que historicamente moveu as lutas pela educação pública, como na Comuna de Paris, em prol da escola unitária que, nas lutas, mira uma educação integral, omnilateral, capaz de assegurar uma formação científica, cultural, artística e tecnológica, sempre interpelando o mundo o trabalho, capaz, por conseguinte, de formar trabalhadores-dirigentes.
Os Aparelhos Privados de Hegemonia empresariais desde logo compreenderam que um novo campo de embates estava aberto (como nas lutas dos estudantes que realizaram ocupações de escolas contra o novo ensino médio) e organizaram um imenso aparato político para fazer esse enfrentamento. Duas organizações se destacaram. O holding Itaú-Unibanco impulsionou a grande coalização burguesa, capitalista dependente, adepta da modernização reflexa a que se refere Darcy Ribeiro, denominada Todos pela Educação que já havia logrado, desde o final da primeira década deste século, a direção intelectual e moral da quase totalidade dos secretários estaduais (CONSED) e municipais (UNDIME) de educação, sustentando a necessidade de estilhaçar o ensino médio e, deste modo, inviabilizar as bases da escola unitária. O grupo Lemann, por sua vez, criou espaços formativos, financiou experiências modelo para implementar, ao mesmo tempo, os cinco itinerários formativos, convencer os gestores locais sobre a pertinência dessa via e ganhar estudantes e famílias para o projeto do novo ensino médio.
As atuais iniciativas que ganham corpo para articular os sindicatos, os coletivos estudantis, partidos, movimentos sociais, universidades e entidades acadêmicas, nesse prisma, respondem a uma exigência da luta de classes, a despeito das motivações específicas de cada uma destas entidades e coletivos.
A oportunidade da intensificação dessas lutas, por parte da classe trabalhadora, assume escala estratégica. Se a frente ampla hoje tem como objetivo prioritário, correto, a derrota de Bolsonaro e a eleição de Lula da Silva, preferencialmente no primeiro turno, cabe à esquerda manter suas agendas e pautas, de modo autônomo diante da frente ampla. Será crucial avançar nas bases que permitam coesionar a classe trabalhadora para disputar os rumos da educação básica, como hegemonia sobre o conjunto da sociedade, instaurando com o tempero das experiências insubmissas, em curso em todo país, os fundamentos da escola unitária do trabalho.
Rio, 20/09/22
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