Os meses de maio e junho nos ofereceram um trágico mosaico da violência que permeia a vida cotidiana no Brasil. Apenas nessa limitada janela de tempo, presenciamos a tortura de Genivaldo de Jesus Santos, resultando em sua morte em uma câmara de gás montada em um camburão da Polícia Rodoviária Federal (PRF); a chacina de 23 pessoas na favela da Vila Cruzeiro em uma operação da mesma PRF em cooperação com o BOPE da PMERJ; os brutais assassinatos seguidos do esquartejamento dos corpos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips; a tentativa da juíza Joana Ribeiro Zimmer de impedir uma menina de 11 anos, vítima de estupro, de realizar um aborto; e a forte repressão da PM do Mato Grosso do Sul aos indígenas Guarani Kaiowá que lutam pela retomada de suas terras usurpadas pelo agronegócio, ferindo nove pessoas e causando a morte do Guarani Kaiowá Vítor Fernandes, dentre outros casos de menor repercussão midiática.
Sem dúvida, o contato com essa sequência de retratos do horror tende a produzir um forte sentimento de indignação. Ao mesmo tempo, a percepção da profundidade e da onipresença de tal violência, por vezes, resulta em desorientação e, até mesmo, uma profunda sensação de impotência. Por vezes, ganham terreno as saídas ilusórias, como a tentação de supor que ao não olharmos para esse aspecto da realidade, ele deixará de existir. Um caminho mais realista e promissor – ainda que, eventualmente, mais doloroso – passa, necessariamente, por encarar a realidade, buscando extrair dela algum sentido que fundamente ações para transformá-la. É para contribuir com esse esforço, que necessariamente deve ser coletivo, que as quatro notas abaixo se destinam.
1- A violência, no Brasil, não é aleatória
A generalidade e a variedade das formas de violência que testemunhamos não deve nos conduzir à conclusão de que a mesma atinge a todas/os da mesma maneira, como fruto da aleatoriedade. Por mais que todas/os estejam sujeitos a eventualmente serem objeto de distintas formas de violência, estatísticas e sólidos trabalhos de pesquisa demonstram claramente que mulheres, população LGBTQIA+, negras/os, moradoras/es de favelas e periferias, pobres, indígenas e militantes ligados às classes subalternas são seus alvos preferenciais.
A violência que tem focos definidos tem, também, agentes prioritários. De um lado, há o aparato de Estado, principalmente por meio das forças policiais e militares, que conduz operações organizadas, mas também pratica formas variadas de violência em meio às interações cotidianas com os grupos mencionados. O peso dessa lógica repressiva resulta não apenas nos casos de violência diretamente praticados por agentes estatais, mas também no fomento à generalização de um padrão violento de relações entre os agentes sociais e destes com o próprio Estado. De outro lado, destacam-se igualmente os zeladores privados dos interesses das classes dominantes – dos jagunços que sustentam o latifúndio aos traficantes que gerenciam o comércio de drogas ilegais no varejo. Longe de constituírem grupos contrapostos ou separados, os operadores públicos e privados da violência possuem tipos diversos de laços, fundamentados em omissão, parceria ou, até mesmo, simbiose.
Trata-se, portanto, de uma violência estrutural, que desempenha papel decisivo na garantia das condições de reprodução do capital no Brasil e na manutenção da dominação sobre as/os exploradas/os e oprimidas/os.
2- A dominação violenta possui profundas raízes históricas
O papel estrutural desempenhado pela violência nas formas contemporâneas de dominação no Brasil resulta de um longo percurso histórico. Evidentemente, tal percurso se inicia já no período colonial, com o genocídio dos povos indígenas e a estruturação de um regime escravista baseado no trabalho de africanos. Ao longo do período republicano, as formas e mecanismos da violência passaram por sucessivas rodadas de atualização, incorporando novas práticas e assumindo novas formas institucionais. Destacam-se, nesse sentido, as duas ditaduras que marcaram a vida política do país no século XX: o Estado Novo varguista (1937-1945) e a ditadura empresarial-militar (1964-1988/9). Essa última, em especial, nos interessa em função de seu papel na condensação, intensificação e organização da violência legada pelas formas anteriores de dominação social. É desse período que datam, por exemplo, o modelo de polícias militares e a explosão da atuação dos grupos de extermínio, que continuaram amplamente operantes no regime estabelecido pela Constituição de 1988.
Importante salientar, ainda, que esse longo itinerário de dominação violenta não se fundamenta unicamente na dinâmica interna da formação social brasileira. Pelo contrário, a sua trajetória de mais de 500 anos de subordinação internacional – seja como colônia, economia exportadora ou país capitalista dependente – condiciona fortemente o padrão de relações sociais aqui desenvolvido.
3- O bolsonarismo alimenta a violência e dela se alimenta
A percepção de um papel estrutural e de sua longevidade histórica não deve, entretanto, nos impedir de perceber as periódicas modulações nos graus da violência da dominação a que assistimos. Não é mera casualidade que os exemplos mencionados no início desse texto estejam se acumulando precisamente agora. Parte importante da resposta capitalista à profunda crise social que atravessa o país nos últimos anos – expressa nos elevadíssimos índices de pobreza, miséria, desemprego, informalidade, insegurança alimentar, etc – passa pelo recrudescimento das respostas repressivas aos setores que já identificamos como alvos preferenciais da violência da dominação.
Essa dinâmica vem sendo fartamente alimentada, em especial, pelo bolsonarismo, principalmente, a partir do momento em que essa força política assumiu o governo federal, no início de 2019. Sua própria arquitetura ideológica se sustenta, centralmente, na afirmação da violência como forma principal de mediação das relações sociais nos mais diversos âmbitos, gerando uma gama de efeitos concretos. Com efeito, Bolsonaro e o projeto neofascista tanto incentivam e legitimam a exacerbação da violência estatal, quanto acobertam e fomentam a crescente organização violência privada, seja com fins mais imediatamente econômicos (caso das milícias e da expansão do agronegócio sobre terras indígenas), seja a partir de um perfil ideológico de extrema-direita mais delineado (como as centenas de células neonazistas espalhadas pelo país).
A produção dessa espiral de violência, por sua vez, é eficaz na produção de uma situação de caos permanente, que é sempre instrumentalizada para defender a necessidade de mais violência. Assim, infundindo o medo em seus adversários, instigando sua base social e influenciando a sensibilidade do conjunto da população o bolsonarismo não apenas alimenta a violência, como tem nela seu principal nutriente. Nesse cenário, a perspectiva de derrota eleitoral no pleito de outubro inscreve uma ameaça palpável no horizonte do bolsonarismo, ao qual esse tem respondido sempre com a elevação de sua aposta na truculência.
4- É preciso organização para enfrentar a violência da dominação
Impor um bloqueio a essa aceleração da difusão e da intensificação da violência na sociedade brasileira constitui uma tarefa emergencial. Por isso, desde um ponto de vista imediato, é fundamental fortalecer a resistência ao projeto de golpe que Bolsonaro coloca em marcha, visando deslegitimar, tensionar e/ou subverter o processo eleitoral. Em termos eleitorais, a força alcançada pela candidatura de Lula expressa, precisamente, o desejo de amplos segmentos das/os exploradas/os e oprimidas/os de interromperem esse processo, constituindo a ferramenta mais imediata para alcançar esse objetivo.
Entretanto, cabe também lembrar que o bolsonarismo constitui a exacerbação de importantes tendências presentes no desenvolvimento histórico da formação social brasileira: uma forma aberta e apologética de dominação pela violência. Longe de acidente, a sua força política resulta de opções das classes dominantes a partir das condições oferecidas pelo lugar do país na divisão internacional do trabalho sob o capitalismo. Sendo assim, na melhor das hipóteses, constitui mera ingenuidade supor que possa ser derrotado centralmente por sucessivas concessões aos mesmos setores (variadas frações burguesas, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, imprensa empresarial, etc) que pavimentaram o caminho para sua ascensão. Apelos abstratos à paz tampouco podem nos conduzir muito adiante.
As brechas abertas pelas disputas no interior do aparato estatal e entre diferentes frações das classes dominantes precisam ser alargadas pela ação organizada e unificada das/os exploradas/os e oprimidas/os. Sem uma forte e decidida movimentação desses setores – isto é, sem uma campanha amplamente mobilizada –, não há qualquer garantia de que mesmo os resultados eleitorais sejam respeitados à risca.
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