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MUNDO

Levante indígena e popular no Equador põe em xeque o governo Lasso

David Cavalcante*, de Recife

A história contemporânea do Equador deveria ser um laboratório de aprendizagens para todas as esquerdas e movimentos sociais do continente latino-americano e para quaisquer indivíduos ou organizações que almejem um mundo mais fraterno e igualitário. Dali emergem forças sociais reais da base da pirâmide de forma recorrente buscando solucionar os dilemas mais sentidos pelas grandes maiorias populares do país que se chocam com a dinâmica progressiva de desnacionalização da economia e um aprofundamento do extrativismo predatório que se apropria cada vez mais das riquezas naturais não somente daquele país, mas cuja dinâmica se percebe em todo o continente.

Desde o 21 de Janeiro de 2000, quando o movimento indígena assumiu o papel de sujeito social protagonista e dirigente político do conjunto das classes sociais subalternizadas do país, numa insurreição dirigida pela CONAIE e apoiada por segmentos sindicais e populares, o programa e a organização das grandes transformações sociais e políticas evidenciou a necessidade da fusão das pautas mobilizadoras das classes trabalhadoras e camponesas com as nações indígenas ancestrais oprimidas. Por outro lado, os maiores levantes nestes últimos 22 anos, sempre elevaram o tema das reivindicações imediatas e democráticas ao problema do poder político.

Há pouco mais de 2 anos, o Levante indígena e popular de 2 a 13 de outubro de 2019, enfrentou o sucessor e, depois desafeto, de Rafael Correa, o Governo de Lenin Moreno, que havia dado uma guinada neoliberal em relação ao período correísta. Moreno não caiu, mas deixou uma via crucis de mutilados e cadáveres para o seu cartão de visitas, pelo massacre ocorrido ante os protestos com 11 falecimentos, 1507 feridos e mais de 1,3 mil detenções arbitrárias. A pauta dos movimentos naquele momento não foi atendida, mas Moreno delegou o término do serviço sujo para o magnata, Guillermo Lasso, que por sua vez havia ganhado as eleições num cenário de colaboração da maioria do Partido Pachakutik e de uma crise na direção da CONAIE.

Eleita uma nova direção da CONAIE, com a Presidência de Leonidas Iza, e ante o balanço de um ano de desastres do governo Lasso, novamente iniciou-se um levante nacional, indígena e popular12. Neste 13 de junho, foi retomado pela CONAIE -Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador e pela FEINE – Conselho dos Povos e Organizações Indígenas Evangélicos do Equador e FENOCIN – Confederação Nacional das Organizações Camponesas Indígenas e Negras com apoio e ações em 23 Províncias

Completados 15 dias de verdadeiras batalhas abertas, barricadas, bloqueios de estradas e tomada de territórios e governos locais, apoiando-se em diversas organizações sociais, sindicais e entidades estudantis, regionais e nacionais, como a FEUE – Federação dos Estudantes Universitários do Equador, o que definitivamente pôs em cheque o poder do banqueiro presidente, Guillermo Lasso, não somente porque abriu negociações tardiamente, mas porque desencadeou uma repressão totalmente desproporcional, fato que pôs abaixo sua máscara de “gestor” do setor privado.

Embora não fosse o objetivo inicial da CONAIE e demais organizações, derrubar o governo do banqueiro, a força social das manifestações elevou o #ForaLasso a uma necessidade imediata. A pauta de reivindicações contida nos 10 pontos, que já vinha sendo apresentada ao governo desde o início do mandato atual, não foi atendida até esta data.

Tratam-se na verdade de reivindicações elementares de sobrevivência das famílias trabalhadoras e indígenas camponesas, a exemplo de congelamento e diminuição dos preços da gasolina e do diesel que afetam a toda a economia nacional e principalmente as classes trabalhadoras e pequenos e médios produtores e comerciantes, e que se deparam com taxas de inflação dolarizadas, visto que a moeda do Equador (o Sucre3) foi extinta há 22 anos e a moeda corrente do país desde janeiro 2000 é o dólar americano.

O governo baixou o preço da gasolina em 10 centavos e o Paro não para

No Equador, mais de 30% da população ativa está no desemprego ou subemprego e pobreza, sendo que a pobreza extrema ultrapassa os 10% da população. Somente 33,2% conseguem empregos formais. Nesse contexto, a crise sanitária no país assumiu proporções de filme de horror, reflexo do país ter profundado sua dependência econômica com o FMI, nos governos de Moreno e Lasso, resultando em ajustes neoliberais com cortes de gastos nos serviços públicos como saúde e educação.

Lasso que realizou um acordo com o FMI, no valor de 6,5 bilhões de dólares, em troca de redução de subsídios aos combustíveis que gerou aumento de preços. Quando tomou posse no governo o galão da gasolina valia U$ 1.99 e já subiu a U$ 2.55 , ou seja, 28% no período de 1 ano, sem considerar os aumentos que há haviam ocorrido no governo de Moreno.

Ao passo que, ante a inflação de alimentos nas cidades e no varejo, os preços pagos aos pequenos e médios produtores agrícolas são baixíssimos, a exemplo do valor para 100kg de batatas que só apuram em média 5 ou 6 dólares. Agora, num show de enrolar trouxas Lasso anunciou um desconto de 10 centavos no preço da gasolina e diesel.

O movimento estudantil liderado pela FEUE também participa do levante com a bandeira da garantia do livre ingresso à universidade pública e reivindicações de medidas assistenciais para apoiar os estudantes das famílias mais pobres que muitas vezes não tem nem o valor da passagem ou o dinheiro para se alimentar ou mesmo ausência de políticas para emprego da juventude. A mesma crise se relata da saúde pública cujos postos de saúde e hospitais faltam medicamentos e demais insumos para tratar dos pacientes, além dos baixos salários pagos aos profissionais.

Por isso, o atual levante, iniciado em 13 de junho, converteu-se num verdadeiro tsunami de aglutinação social, sem que até agora tenham sido atendidas as reivindicações dos movimentos indígenas, visto que somente 3 dos 10 temas: o congelamento dos preços dos combustíveis, a moratória das dívidas para pequenos e médios agricultores, e a imposição restrições às atividades das grandes mineradoras e petroleiras no país, exigem um enfrentamento direto contra grandes empresas e bancos multinacionais, que se traduz em necessários enfrentamentos contra os governos imperialistas, principalmente o dos Estados Unidos da América.

Neste cenário, a bancada parlamentar da Revolução Cidadã/Unes, alinhada ao Rafael Correa, apresentou uma moção, prevista na Constituição, que implicaria na chamada “morte cruzada”, ou seja, destituição do Presidente e eleições antecipadas também para a Assembleia Nacional. Esta moção, ao princípio não tinha apoio do líder e da maioria da bancada Pachakutik, mas que ante a grande pressão dos territórios e bases indígenas, parece ter invertido a posição do partido.

Espera-se que a votação se conclua ainda esta semana. Ante o agravamento da crise institucional, o governo acabou aceitando uma reunião com as lideranças dos movimentos, mediada pela representação da Assembleia Nacional, mas que resultou numa iniciativa unilateral de derrogação do Decreto de Estado de Emergência em 6 Províncias, que o mesmo havia imposto para tentar dissuadir sem sucesso o crescimento do movimento. Por outro lado, Lasso decretou baixar o valor do galão de gasolina e diesel, em 10 centavos ! Isso mesmo, 10 centavos !

Fora Lasso cresceu nas ruas e bairros populares

Não foi à toa que clamor que cresceu das ruas das grandes e médias cidades, com destaque para os bairros populares de Quito, dos diversos bloqueios de estradas, das comunidades indígenas e camponesas e dos diversos segmentos sociais plebeus indígenas e negros subalternizados, e trabalhadores e trabalhadoras precarizados e oprimidos do país foi o #FueraLassoFuera.

O “Fora Lasso” se converteu na principal reivindicação dos movimentos, pois a primeira e mais forte iniciativa do governo neoliberal foi a repressão, prisões arbitrárias e execuções perpetradas pelas forças policiais e militares sob o mando do Presidente Lasso e do seu Ministro do Interior, o general carrasco, Patricio Carrillo, que causou ao longo dessa jornada, até o presente registro, ocorridas em 23 Províncias do país pelo menos, 5 mortes, 8 desaparecidos, 145 feridos e 127 detenções arbitrárias.

Além da violência física através das invasões dos espaços de reuniões e acolhidas como a Casa da Cultura e Universidades, as prisões arbitrárias, bombas de gás, balas de borracha e disparos de perdigões (com chumbos esféricos que penetram no corpo dos atingidos), os movimentos sociais do país vem enfrentando toda sorte de campanhas de fake news, produzidas com montagens de falsos documentos e mentiras contra as lideranças da CONAIE, as quais são reproduzidas sem o menor pudor pelos grandes meios de comunicação empresariais do país, que regra geral forjam notícias contrárias e discriminatórias com narrativas criminalizadoras dos movimentos e suas lideranças.

Lasso e as forças repressivas do Estado, também contaram com ensaios de manifestações de grupos de direita e ações de grupos de civis armados compostos por elementos das classes médias brancas quitenhas que se nutrem do histórico e odioso racismo dominante das elites equatorianas contra as populações indígenas e negras, desde o período neocolonial.

Felizmente as notícias reais do levante nacional estão sendo testemunhadas e divulgadas por diversas redes sociais voluntárias, fotógrafos, rádios digitais alternativas, organizações de direitos humanos e coletivos de profissionais auto-organizados de médicos e enfermeiros socorristas em plenas barricadas e espaços de concentração e protestos.

 

*Cientista Político e Editoria Mundo do EoL

Notas:

1 https://esquerdaonline.com.br/2022/06/14/comeca-o-levante-nacional-indigena-e-popular-no-equador-contra-o-neoliberalismo-do-banqueiro-presidente/

2 https://esquerdaonline.com.br/2022/06/24/povos-indigenas-do-equador-estao-ha-12-dias-lutando-nas-ruas-sob-forte-repressao/

3 Em 8 de março de 1999, foi declarado um “feriado bancário” de 24 horas, que durou 5 dias. Todas as operações financeiras foram suspensas. O então Presidente Mahuad decretou um “congelamento de depósitos” por 1 ano, de contas de mais de 2 milhões de sucres. Os bancos “faliram” e o Estado assumiu os custos, repassando-os à população, por meio de diversos mecanismos, entre eles, a redução dos gastos sociais e o aumento do custo dos serviços. As consequências foram inflação, desvalorização, recessão, falência de empresas, desemprego, maior pobreza e indigência, mortes, suicídios e a maior onda migratória da história do país. As perdas econômicas somaram 8.000 milhões de dólares e as perdas sociais foram maiores. A moeda Sucre foi extinta, porque em janeiro de 2000 foi adotada a dolarização, à paridade de 25.000 sucres por dólar, quando na época era 4.000. Aqueles que tinham economias “congeladas” em sucres recuperaram apenas um quinto.