Em 1937, a derrota das heroicas jornadas de maio na Catalunha pelas balas da polícia local, a mando dos líderes stalinistas, entre eles Juan Comorera, marcaram o começo do declínio da revolução espanhola, aquela que havia sido a maior esperança de libertação para o proletariado espanhol, catalão, galego, andaluz, basco e das colônias africanas.
De fato, a nova fase aberta com a derrota das jornadas de maio foi o momento mais oportuno que tiveram as lideranças contrarrevolucionárias do governo da Frente Popular para eliminar os “incontroláveis”, ou seja, aqueles segmentos revolucionários considerados indesejados porque não queriam se sujeitar ao pacto burguês de preservação da ordem capitalista nas zonas republicanas do Estado Espanhol, no marco da guerra civil.
Foi nesse contexto que se desatou uma onda de repressão contra a CNT, o grupo Los amigos de Durruti, as Juventudes Libertárias e os segmentos mais radicalizados do POUM. Para essa tarefa suja, foi utilizado um corpo policial recém-reconstituído e leal à Frente Popular depois dessa instituição reacionária ter sido destruída pelo levante revolucionário de julho de 1936. E claro, também foi utilizada bastante munição e carros de combate fornecidos pela URSS diretamente ao controle do governo da Frente Popular.
O historiador britânico Andy Durgan, um dos principais estudiosos da guerra civil espanhola, conta que, nos dias subsequentes às jornadas de maio de 1937, as grandes vias de Barcelona estavam mais cheias de cadáveres anarquistas do que de cadáveres fascistas.
Foi nesse contexto que Andreu Nin, dirigente marxista catalão e líder do POUM ao lado de Joaquim Maurín, foi sequestrado e assassinado. Nin tinha apenas 45 anos e, não muitos meses antes, havia sido sumariamente expulso do governo da Frente Popular na Catalunha, do qual foi Conselheiro de Justiça, por orientação do cônsul soviético Antonov-Ovseenko.
Revolucionário marxista, catalão e internacionalista
A biografia de Nin é de um militante que lutou como um internacionalista abnegado, desde jovem até o fim da vida. Foi, sem dúvidas, um dos personagens mais interessantes do comunismo no século XX
Nascido na província catalã de Tarragona, Nin era filho de proletários: o pai sapateiro e a mãe, camponesa. Depois de alguns anos cursando a escola normal em sua cidade natal, Nin transferiu-se para Barcelona, onde foi trabalhar como professor.
A capital catalã era o coração industrial e proletário do estado espanhol e, naquele momento, vivia um intenso processo de efervescência política e cultural. Na virada para a década de 20, não só o sindicalismo ganhava força, mas também o catalanismo, ou seja, a ideia de independência nacional catalã.
Nesse contexto, Nin foi profundamente influenciado pela revolução russa, pelas ideias do catalanismo e pelas batalhas sindicais travadas pela CNT, a Central Nacional do Trabalho que, em seu auge, chegou a agregar dezenas de milhares de trabalhadores de distintos ramos. Assim, em 1918, Nin imergiu na luta sindical, seja ajudando a organizar sindicatos, período em que pôde aproximar-se de lideranças como o lendário anarco-sindicalista catalão Salvador Seguí, assassinado por pistoleros em 1923, seja como parte da redação de El Poble Català e La Publicitat, periódicos catalanistas e de esquerda.
No segundo congresso da CNT, realizado em dezembro de 1919, Nin teve um papel de destaque. Os mais de 450 delegados ali presentes, representando quase 700.000 trabalhadores, debateram várias questões de natureza organizativa, bem como a atitude da CNT diante da UGT e da III Internacional Comunista. O Congresso acabou decidindo-se pelas propostas de Nin, defensor da aproximação da CNT com o Komintern.
No ano de 1921 Nin foi eleito, junto com Joaquín Maurín, Hilario Arlandis e Jesús Ibáñez, delegado para o congresso de fundação da Profintern, a Internacional Sindical Vermelha. Acabou estabelecendo-se em Moscou, onde trabalhou como secretário-geral adjunto da Profintern por muitos anos e passou a dominar o idioma russo.
Na URSS, Nin também pôde acompanhar a luta empreendida pela Oposição de Esquerda Internacional, de cujas ideias foi signatário, contra a consolidação da burocracia stalinista no partido bolchevique, na internacional comunista e no estado russo. Contudo, embora tenha tomado essa atitude, chegando até mesmo a ser secretário de Trotsky, Nin nunca foi exatamente um trotskista.
Inevitavelmente, a consolidação do stalinismo na URSS impediu a permanência de Nin no país, o que o forçou a retornar à Espanha em outubro de 1930, quando a monarquia estava em plena crise. Como parte da liderança da oposição de Esquerda Internacional na Espanha Nin liderou o grupo Esquerda Comunista que, em setembro de 1935, ou seja, na fase final do período político conhecido como bienio negro [1], fundiu-se com o Bloco Operário e Camponês, liderado por Joaquín Maurín, dando luz ao Partido Operário de Unificação Marxista, o POUM.
Operação Nikolai: o plano macabro para eliminar Andreu Nin
Depois da derrota das Jornadas de Maio de 1937, quando um levante espontâneo em Barcelona se opôs à tomada da Central Telefônica então controlada pela CNT, a Frente Popular conseguiu eliminar um dos mais simbólicos vestígios de controle operário na Catalunha. Nesse contexto, os stalinistas do PSUC e do PCE aproveitaram o ensejo para desatar uma operação com o objetivo de destruir o POUM, a começar pelo seu principal dirigente, Andreu Nin, culpando-os pelas jornadas de maio. Batizada de Nikolai, essa operação foi encabeçada por vários agentes da NKVD stalinista.
Quando da chegada do Cônsul soviético Antonov-Ovseenko em Barcelona, na Espanha, já atuavam dezenas de agentes da NKVD enviados por Moscou, todos investidos de atribuições políticas e policiais à frente dos quais se destacava a figura do general Alexandre Orlov (foto).
O plano funcionou assim. O stalinista húngaro Ernö Gerö, emissário de Stalin na Catalunha e assessor do PSUC, enviou um informe a Moscou no qual implicava o POUM como responsável pelas jornadas de maio de 1937, qualificando este partido como fascista.
Na sequência, o agente da NKVD, Alexander Orlov (foto), foi encarregado de endossar tais acusações contra o POUM forjando documentos que “demonstravam” a existência de uma suposta rede de espionagem franquista recém-desarticulada pela inteligência republicana. Ao “descobrir” essa suposta rede de espionagem, a inteligência também “descobriu” a cumplicidade do POUM com os franquistas. O complô estava então armado.
Uma vez dispondo de “provas”, o Diretor-Geral de Segurança, o stalinista Antonio Ortega, emitiu ordens de prisão contra centenas de militantes do POUM, dentre os quais estava praticamente todo o seu Comitê Central. Na lista dos intimados estavam, inclusive, Julian Gorkin, editor do jornal La Batalla, e Andreu Nin, o principal dirigente do partido. Nin foi detido em Barcelona, no dia 16/06/1937. Na prisão, Nin foi interrogado continuamente e até torturado. Os torturadores buscavam a todo custo arrancar-lhe confissões que comprometessem a si mesmo e a seus camaradas poumistas. Todavia, ao se negar a confessar o que os stalinistas queriam, Nin foi assassinado. Possivelmente, no dia 20/06/1937, há 85 anos. Até hoje seu cadáver segue sem paradeiro.
A segunda morte de Andreu Nin
O historiador francês Pierre Broué foi, sem dúvidas, um dos principais estudiosos do movimento operário do século XX e particularmente da guerra civil espanhola, tendo dedicado dois livros ao tema. Um deles, La revolution espagnole (1931-1939), chegou a ser lançado no Brasil em 1992 pela Editora Perspectiva com o título A revolução espanhola, um livro que, a bem da verdade, merecia uma nova publicação. Nele, Broué assim descreve a atmosfera de calúnias e provocações que havia em meio às zonas republicanas e nos círculos da esquerda, na sequência do assassinato de Andreu Nin: “Logo estourou um enorme escândalo: Andreu Nin, capturado junto a seus camaradas, desapareceu. Os stalinistas insinuam que ele fugiu e, diante da pergunta marcada nos muros, ‘Onde está NIN?’, respondem com esta rima imunda: Em Salamanca ou Berlim”.
Ou seja, a versão falsa sobre o paradeiro de Nin que começou a circular pelas ruas de Madrid, Barcelona e demais cidades foi que, em vez de ter sido assassinado, o revolucionário Catalão desaparecido, na verdade, havia sido libertado pela Gestapo alemã e levado para abrigar-se nas zonas franquistas ou mesmo na Alemanha nazista. Uma evidente calúnia contra um dos nomes mais honestos e mais respeitados do comunismo espanhol.
Jesus Hernandez e Henrique Castro Delgado, dois ex-dirigentes do PCE, anos depois revelaram que essa calúnia foi armada por Vittorio Vidali (foto), um bandido de longo currículo contrarrevolucionário que gozava da mais alta confiança de Moscou e que havia sido deslocado para a Espanha junto a outro stalinista italiano, Palmiro Togliatti, a fim de colaborar com o plano de desmonte da revolução.
O stalinismo tem as mão sujas de sangue comunista
Os arquivos do NKVD, que passaram a ser acessados no fim dos anos 80, endossam a versão sustentada por militantes do POUM de que agentes de Stalin estavam envolvidos neste crime. Foi com base nestes arquivos, bem como em base a depoimentos de diversos historiadores, jornalistas, veteranos do POUM, além do historiador anti-stalinista Anton Antonov (filho do cônsul soviético na Espanha, Antonov-Ovseenko) e de Nora Nin (filha de Andreu Nin), que se produziu o documentário Operación Nikolai. El secuestro y asesinato de Nin, de Maria Dolors Genovès. Este documentário, produzido e lançado em 1992, não deixa dúvidas quanto à conspiração montada pela polícia política de Stalin para sequestrar e assassinar Andreu Nin.
O documentário cita diversos nomes de agentes stalinistas que, direta ou indiretamente, tiveram participação nesse crime. Além do próprio Antonio Ortega, que havia sido empossado no cargo de Diretor Geral de Segurança da república por indicação do PSUC, e do agente Alexander Orlov, estiveram envolvidos, Yusik (pseudônimo de José Escoy, agente brasileiro do NKVD encarregado de forjar documentos que tentaram associar o POUM e os fascistas da Falange), o húngaro Ernö Gerö (posteriormente um dos responsáveis pela repressão ao levante antiburocrático de 56 na Hungria), o italiano Vittorio Vidali (um dos responsáveis pela repressão aos operários de Aragão e posteriormente partícipe de um dos atentados à residência de Trotsky no México [2]) e três espanhóis.
O documentário também mostra que, mesmo alguns chefes da Frente Popular como, Federica Montseny e Largo Caballero, rechaçaram a acusação contra Nin e os demais militantes do POUM. Azaña chegou a qualificar como “novelesca” toda aquela trama. Um Tribunal Especial Central de Espionagem e Alta Traição chegou a ser montado para julgar os militantes do POUM, no entanto, ele terminou por rejeitar as absurdas acusações de cumplicidade com os fascistas e os militantes do POUM receberam pequenas condenações pela sua participação nas jornadas de maio de 1937. Essa operação contrarrevolucionária contra os líderes do POUM correspondeu, cronologicamente, aos chamados Processos de Moscou que também perseguiram e condenaram milhares de comunistas honestos e inocentes ao redor do mundo.
Em seu livro Stalin’s agent: The Life and Death of Alexander Orlov (2015), o historiador Boris Volodarsky confirma o papel do agente da NKVD, Alexander Orlov, como principal figura à frente da repressão ao POUM: “Na Espanha, todas as liquidações foram planejadas e executadas sob a direção de Orlov. […] parece que a principal preocupação de Orlov agora era a caça às bruxas. Em outras palavras, ele se engajou principalmente na perseguição daqueles que, por diferentes razões, foram declarados inimigos por Stalin e Yezhov” [3].
Se os stalinistas tardios ainda assim duvidam que esse assassinato tenha sido perpetrado por agentes soviéticos sob orientações expressas de Moscou, que também busquem o livro de Jesus Hernandez, um dos principais dirigentes do PCE durante a revolução espanhola. Anos mais tarde, ninguém menos que este indubitável ex-dirigente stalinista haveria de escrever em seu livro de memórias, cujo categórico título, La Grande Trahison, não deixa margem para questionamentos sobre qual foi o papel do seu partido ao longo daqueles anos: “Nin teve que suportar a dor das torturas mais refinadas. Depois de alguns dias, sua face não era mais que uma massa de carne tumefacta. Orlov, frenético, aterrorizado pelo escândalo que podia significar sua própria liquidação, rugia de raiva ante esse homem enfermo que agonizava sem ‘confessar’ e sem denunciar seus camaradas de partido.”
A remuneração dos carrascos
Com o êxito do plano de Stalin na Espanha, Antonov-Ovseenko [4] foi convocado de volta à URSS e, como pagamento pelos serviços prestados, foi acusado de “pertencimento a organização terrorista trotskista e por espionagem” e fuzilado em 1939, mesmo tendo cumprido fielmente sua missão de orientar a Frente Popular a desmontar a revolução. Assim, Stalin pôde jogar sobre o colo de seu agente toda a responsabilidade pelo desastre espanhol.
Depois de executada a operação Nikolai, Alexander Orlov também foi convocado de volta à Rússia no ano seguinte, mas, ciente de que havia se convertido em um verdadeiro arquivo vivo dos terríveis crimes de Stalin na Espanha, temia que lhe ocorresse o mesmo que ocorreu a outros stalinistas como o embaixador Marcel Rosenberg, os generais Vladimir Goriev e Yan Berzin, ou mesmo Ovseenko. Assim, Orlov ignorou a convocação de retorno à Rússia e resolveu tomar o caminho para os EUA, junto com sua família. Orlov ainda chegou a enviar uma carta para Stalin prometendo manter em segredo tudo o que sabia, com a condição de que Stalin mantivesse a sua família incólume. Somente quinze anos depois da morte de Stalin é que Orlov publicou seu livro de memórias cujo título é The Secret History of Stalin’s Crimes.
Em memória de Andreu Nin, assassinado pelo stalinismo
A intervenção de Moscou na revolução espanhola em nada pode ser confundida com a tradição internacionalista de Lênin, Trotsky e da Internacional Comunista dos velhos tempos, mas sim como uma clara ingerência externa, através do PCE e do PSUC, além de uma rede de agentes secretos, cujo objetivo era tão somente a preservação de interesses diplomáticos da casta governamental soviética, que não necessariamente correspondia aos mesmos interesses do socialismo e da classe trabalhadora mundial [5].
Trotsky, que nunca poupou nem Nin e nem o POUM de críticas implacáveis quando este partido subscreveu o programa burguês da Frente Popular em 1936, jamais se absteve de reconhecer no revolucionário catalão um militante honesto e denunciou todas as calúnias lançadas pela ala stalinista da Frente Popular sobre a memória de Nin.
Todo jovem militante, que busca conhecer a história do socialismo, deve estabelecer em sua consciência de forma honesta as seguintes questões: como o assassinato de dirigentes revolucionários, como o de Andreu Nin, pode ser considerado algo útil à causa da revolução? Qual o sentido de torturar e executar alguém, ainda mais sendo um homem de trajetória honrada e de postura inquestionável no movimento comunista internacional, como Nin? Que condições tão excepcionais na conjuntura espanhola justificavam que Moscou operasse um plano tão sinistro de perseguições contra o POUM, a começar por Nin? No marco da luta contra os fascistas de Franco, o que ganhou a revolução espanhola com esse assassinato?
Ao fim e ao cabo, é inescapável admitir que o pacto burguês consubstanciado na Frente Popular, defendido por Stalin a custo do derramamento de muito sangue comunista, não esteve à altura de esmagar o fascismo, porque, para essa tarefa, eram e são necessárias os instrumentos de combate do socialismo, e não da conciliação de classes. Por mais que berrem, que mintam e que falsifiquem a história, os “stalinistas sem aparato” de hoje em dia jamais conseguirão explicar por que Stalin, o suposto gênio da estratégia política, advogou em defesa de um governo de conciliação de classes que, para todos os efeitos, não fez mais que cometer um combo de medidas estúpidas cujos resultados, invariavelmente, levaram ao triunfo de Franco.
A memória dos cúmplices, torturadores, mercenários e assassinos que tomaram parte nessa traição impagável ao socialismo e à revolução, cujos nomes foram citados ao longo deste artigo, jamais será reabilitada, façam o que fizerem.
À memória de Andreu Nin e dos tantos lutadores honestos do POUM e da revolução espanhola, honra e respeito.
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