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BRASIL

O cálculo fatal de Freixo

Ivan Dias Martins, do Rio de Janeiro, RJ

Exatos quinze dias após a segunda maior chacina da história do estado, contribuindo ao trauma permanente vivido pelos mais de 2 milhões de moradores de suas favelas, o Rio de Janeiro segue em uma crise multidimensional. O desemprego permanece em altíssimo patamar, de 14,95%, muito acima da taxa nacional de 11%1 e em crescimento. Em um ano, o rendimento médio do trabalhador fluminense recuou 13,4%, enquanto a inflação acumulada no mesmo período chega a 12,37% (INPC).2 Em 2021, 2,6 milhões de pessoas viviam em extrema pobreza no estado.3 Seria razoável supor, portanto, que tal cenário de depressão econômica e crise social gravíssima apontasse, a meses das eleições para o governo do estado, para uma rejeição ampla ao atual governador e uma vontade consolidada de mudança clara de rumos.

Mas a política do Rio de Janeiro, porém, não é tão simples. Pesquisas eleitorais recentes apontam, ao contrário, para um fortalecimento do governador Cláudio Castro (PL) e relativa estagnação do candidato mais identificado à esquerda, o deputado federal Marcelo Freixo (PSB), enquanto a terceira via segue fragmentada e muito distante de ameaçar os protagonistas. O quadro seria paradoxal se a viabilidade política de Castro não expressasse os alicerces mais sólidos da política fluminense. Oriundo da direita católica e representante desta direita conservadora, Castro foi capaz de reconstituir uma segura base parlamentar na ALERJ pela repartição do aparato governamental e distribuição de benesses, com o caixa estadual fortalecido por anos de cortes no serviço público e pelos recursos da privatização da CEDAE. Sua política de segurança pública, coroada por chacinas, reproduz e assegura o horizonte ideológico bolsonarista e as bases de poder das milícias. Castro dá mostras, assim, de que a crise social é funcional a uma determinada configuração de poder, nascida diretamente da caótica situação fluminense.

Freixo, por sua vez, traria consigo os elementos necessários para se apresentar como uma rejeição direta deste paradigma político. Sua construção como liderança da esquerda fluminense se dá justamente a partir do enfrentamento do nexo entre o estabelecimento do poder territorial e terrorista das milícias, a acomodação de interesses na máquina pública e o projeto de desenvolvimento econômico privatista e excludente então encabeçado pelo PMDB do Rio. Foi a partir dessa localização que aparece como expoente maior de um processo de renovação política que catapultou o PSOL RJ como maior partido de oposição e produziu outras figuras muito importantes, como Marielle Franco e Tarcísio Motta. Mas foi também esta posição que expôs Freixo às reações mais violentas do arranjo de poder que enfrentava na forma da ameaça permanente à sua vida e da também permanente campanha de desinformação e difamação quanto às suas posições políticas.

Desta forma, não se trata de um acaso conjuntural a precipitação de um cenário de polarização eleitoral já no primeiro turno entre Castro e Freixo, mas um desenvolvimento esperado da evolução recente da política fluminense. Entretanto, enquanto Castro parece explorar melhor sua situação de representante da continuidade para confirmar seu favoritismo, Freixo parece identificar na trajetória que constituiu seu capital político também um limite para alcançar uma vitória. Na tentativa de atrair uma base de apoio mais ampla, Freixo tem se engajado numa contínua escalada de sinalizações políticas de moderação e disposição de composição com setores empresariais e da direita. Até agora, tais movimentações têm tido resultado duvidoso, ao menos em termos eleitorais. 

Agora, porém, Freixo busca realizar num só movimento a manobra definitiva para provar seu compromisso com a estabilidade e preservação dos interesses estabelecidos da política fluminense com a incorporação de Cesar Maia (PSDB) como vice de sua chapa. Claramente inspirada na aproximação entre Lula e Alckmin (atual correligionário de Freixo), o deputado, porém, parece ignorar uma diferença crucial entre o sentido da movimentação do petista e da sua. Enquanto Lula, armado com o favoritismo eleitoral e com o enorme simbolismo que encarna sem rejeitar, traz o impopular Alckmin com olho no pós-eleições, Freixo busca desesperadamente superar a rejeição que emerge justamente do fato que sua história política representa risco concreto aos grupos de interesse mais poderosos do Rio de Janeiro. Para isso, busca César Maia, para piorar, um político em decadência, que não agrega eleitoralmente e gera profundo desconforto nos setores sociais de esquerda que sustentam hoje a candidatura de Freixo.

Despreza, assim, o elemento essencial de que numa realidade de barbárie naturalizada, ela não é percebida enquanto tal sem que esta demarcação seja feita com clareza. Se sua proposta de mitigação dos danos da devastação social e política vividas cotidianamente pela população do Rio não é percebida como mudança significativa, se todos os esforços estão em apresentar a mudança como mera preservação do que ainda não se perdeu, não há como alimentar esta proposta política vaga e indefinida de força social. 

Freixo hoje tenta se apresentar como um líder que alcançou a maturidade política e está pronto para uma nova audiência, não vinculada a expectativas claras de mudança, transformação e luta. Mas não dá hoje provas que tenha convencido alguém a se somar ao seu projeto. Seu cálculo político tenta somar forças no abstrato sem movê-las no terreno da disputa política concreta. Ou se dá conta disso e acerta o rumo da sua campanha, buscando atrair não só o voto frio, mas o engajamento e empolgação das forças políticas que podem de fato abraçar um projeto de mudança, ou vai se ver tragado e esgotado em disputas de bastidor entre figuras da velha direita lutando por seus próprios interesses. Se preferir o compromisso com bastiões do que a política fluminense sempre representou ao invés do compromisso com a luta e a transformação, não vai deixar de dar, ao seu jeito, seu contributo à preservação da barbárie que quer combater.

(Texto modificado em 07/06, às 20h34)

1  https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/13/rj-tem-a-3a-taxa-de-desemprego-mais-alta-do-pais-no-1o-trimestre-de-2022-aponta-ibge.ghtml
2  https://rj.cut.org.br/indicadores/inflacao-mensal-inpc
3  https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/09/caminhao-de-ossos-no-rio-e-disputado-por-populacao-com-fome.shtml

 

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