Nós dias 18 e 19 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) aprovando o homeschooling como uma modalidade de ensino no Brasil. O homeschooling é uma proposta conservadora no Brasil e se tornou uma bandeira do presidente Jair Bolsonaro na sua cruzada contra a suposta “doutrinação marxista freiriana” nas escolas brasileiras.
O STF já havia considerado o homeschooling ilegal no país, por considerar que existe a necessidade de frequência da criança na escola modo a garantir uma convivência com estudantes de origens, valores e crenças diferentes, por exemplo. Porém, o projeto aprovado na Câmara abre novo episódio nessa disputa ao afirmar que “educação básica domiciliar, por livre escolha e sob a responsabilidade dos pais ou responsáveis legais pelos estudantes”.
Para além das questões legais precisamos entender as concepções e ideologias por trás do homeschooling .
Histórico
Essa ideia tem origem no pensamento do escritor e professor estadunidense John Holt, que, na verdade, defendia a ideia de underschooling (desescolarização), ou seja, de que os alunos não necessitavam do espaço formal da escola para desenvolverem seu aprendizado e que a aprendizagem deveria acontecer de forma natural e espontânea. A criança deveria, portanto, ter a liberdade de escolher quais atividades educativas deveria fazer a cada dia.
Baseados nas ideias de Holt, surgiram os primeiros homeschoolers e, posteriormente, pais e mães começaram a desenvolver o processo de educar seus filhos em casa. Essa prática ganha força a partir dos anos de 1980, por incentivo de grupos religiosos protestantes, principalmente para evitar que seus dogmas fossem questionados nas escolas ao se confrontarem com questões cientificas. Mas, entre os argumentos desfavoráveis nesse contexto, estavam a violência no ambiente escolar e questionamentos à qualidade do sistema de ensino.
Apesar de a ideia surgir nos EUA, o homeschooling ganhou adeptos em todo o mundo. Países como França, Alemanha, Japão, México, Taiwan, Suíça, Espanha, entre outros possuem algum tipo de iniciativo nesse sentido.
No Brasil, o debate sobre homeschooling só começa ganhar força a partir de 2010, com o surgimento da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED). Porém, como a prática, é ilegal no Brasil os números sobre os adeptos ainda são difíceis de serem aferidos, estima-se, segundo dados da própria ANED, que sejam cerca de 7.500 famílias e mais de 15.000 alunos utilizando o sistema.
A argumentação
O principal argumento utilizado pelos defensores do sistema de homeschooling é o da liberdade dos pais em escolherem que tipo de ensino querem que os filhos tenham acesso, com direito a controlar quais conteúdos e com quais abordagens terão contato.
Além disso, outros argumentos aparecem para fortalecer a ideia, como a ineficiência do sistema de ensino, as violências como o bullying que os filhos podem sofrer no ambiente escolar, dificuldade de professores conseguirem dar um atendimento individualizado tendo mais de 30 crianças ou adolescentes para atender ao mesmo tempo, entre outros.
Em suma, quem defende esse modelo de ensino busca ter controle sobre o conteúdo e o método pelo qual seu filho terá acesso ao conhecimento, bem como o conforto de não precisar deslocá-los até uma instituição de ensino, mantendo-os na segurança do ambiente domiciliar e garantindo a qualidade do ensino segundo seus padrões.
Algumas reflexões
Mais do que questões meramente legais, existem alguns pontos que estão em disputa nesse debate acerca da regulamentação ou não do homeschooling no Brasil. É sobre elas que precisamos olhar com mais atenção ao analisar as propostas.
Em primeiro lugar, temos uma disputa sobre o próprio conceito de direito à educação. Afinal, o direito à educação é o direito dos pais educarem seus filhos ou o direito de cada cidadão receber uma educação que lhe permita ter acesso ao conhecimento historicamente acumulado pela humanidade, independentemente dos dogmas e concepções da sua família?
Este é o centro da argumentação a favor do homeschooling: ao afirmarem que querem ter a liberdade de escolher o ensino que quiserem para seus filhos, de acordo com suas convicções, estão afirmando que querem ter o controle sobre quais conhecimentos os alunos podem ter acesso e quais não. Nesse momento, não é mais o aluno que tem direito à educação: são os pais que passam a ter o controle e limitar as possibilidades de desenvolvimento intelectual dos filhos. Uma criança cujos pais acreditem que a Terra é plana, ou duvidem da evolução das espécies, deverá ser condenada a obter somente “verdades” inquestionáveis em sua formação acadêmica?
Está em disputa também a própria concepção da educação enquanto ciência, isso é colocado em xeque ao admitir que o processo de ensino aprendizagem possa ser mediado por qualquer pessoa, independentemente da formação, e ao afirmar que não há necessidade de profissionais com recursos metodológicos desenvolvidos a partir de pesquisas cientificas.
Não se trata aqui defender que a transmissão de conhecimento seja monopólio de profissionais da educação ou dos espaços formais. Trata-se de defender que a apropriação do conhecimento historicamente acumulado pela humanidade, e sua utilização no sentido de desenvolver uma análise crítica sobre a realidade, passa, entre outras coisas, por um processo de ensino aprendizagem cientificamente desenvolvido.
Um debate importante também a ser feito é qual a nossa concepção sobre o papel da escola. É apenas um local de transmissão de informações que pode ser substituída por uma prova anual que verifique quais informações o aluno apreendeu? Ou a escola é um espaço de construção coletiva do conhecimento, construção de sociabilidades e desenvolvimento humano? Aceitar o homeschooling é reforçar a primeira ideia.
Outros argumentos a favor do homeschooling não se sustentam à luz de dados concretos, como por exemplo em relação a ser mais seguro para a criança ficar em casa. Dados oficiais apontam que 70% dos casos de abusos contra crianças ocorrem em casa e, na maioria das vezes, é justamente no ambiente escolar que a violência doméstica é identificada.
A questão da crítica à qualidade das escolas também pode ser questionada, haja vista que, mesmo não havendo dados oficiais sobre o homeschooling no Brasil, se analisarmos as informações do próprio site da ANED e os relatos apresentados em algumas reportagens, vemos que o perfil socioeconômico de quem adere é justamente dos que possuem condições de pagar pelas melhores escolas do país. Não há entre as dezenas de fotos nas galerias do site da ANED famílias negras adeptas ao homeschooling, simbolizando bem o recorte social.
Trata-se de um projeto que tem por objetivo um controle ideológico sobre quais conhecimentos os estudantes terão acesso ou não
Enfim, podemos verificar que existe todo um discurso ideológico construído para justificar a utilização do homeschooling como sistema de ensino. Ele se baseia em críticas ao sistema de ensino, defesa da liberdade de escolha, preocupação com a violência que as crianças são expostas e benefícios de um atendimento especializado ao estudante. Porém são argumentos que, em sua maioria, ao serem confrontados com dados da realidade concreta, não se sustentam e revelam o verdadeiro projeto por trás do homeschooling.
Trata-se de um projeto que tem por objetivo um controle ideológico sobre quais conhecimentos os estudantes terão acesso ou não, garantindo que informações, por mais que comprovadas cientificamente e por mais que sejam fundamentais para a compreensão do mundo em que vivemos, caso confrontem dogmas professados pelos país, será sumariamente excluído do conteúdo. O centro da ideia do homeschooling é a família ter um controle ideológico sobre o que os filhos vão aprender ou não e isso pode ser verificado tanto pelo discurso de seus principais defensores no Brasil, quanto pelo fato de verificarmos quem na grande maioria dos países o homeschooling se difunde a partir do incentivo de igrejas fundamentalistas.
* Vinícius Prado é historiador, mestre em Educação pela UFPR, pesquisador de políticas educacionais e militante da Resistência/PSOL.
Comentários