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BRASIL

Voto impresso: Como o bolsonarismo consegue transformar um “não-debate” em debate?

Segunda parte do artigo sobre as ameaças golpistas

Jean Montezuma, de Fortaleza, CE
26/01/2019 Presidente da República Jair Bolsonaro conversa por
Reprodução

Quando as teias da aranha se juntam, elas podem amarrar um leão.
(provérbio africano)

No artigo anterior discutimos que do ponto de vista da estratégia bolsonarista, a campanha eleitoral e articulação golpista são partes indissociáveis de um movimento combinado. Abordamos também que a consolidação e ampliação da base governista no Congresso – escorada no Centrão e abastecida pelos bilhões de reais do orçamento secreto – mais a crise da 3° via, ajudam a criar as condições para sua campanha obter o lastro político suficiente para polarizar o processo eleitoral.

Outro tema tratado foi o papel assumido pelas Forças Armadas. A cada nova jogada fica cada vez mais explícito que ao menos uma parte da cúpula militar, que se lambuzou como há muito não fazia em cargos e orçamento no governo federal, embarcou na estratégia de desacreditar o sistema eleitoral.

Nessa segunda e última parte, trataremos da campanha de desinformação em si. Como o bolsonarismo consegue transformar um “não-debate” em debate? E como o TSE e STF, seus principais alvos, tem reagido nesse campo minado? Por fim, como nós, esquerda socialista, e todes que tem compromisso com as liberdades democráticas devemos encarar essa dupla tarefa: Vencer as eleições nas urnas e esmagar as pretensões golpistas de Bolsonaro e seus aliados.

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“Uma mentira estraga mil verdades” (provérbio africano)

De modo geral, todo nós já aprendemos um pouco sobre a forma como a extrema-direita do século XXI atua no debate público. O núcleo central da propaganda dispensa a necessidade de fundamentação teórica ou científica. Pelo contrário, tudo se desenvolve a partir de um tripé básico: Teoria da conspiração – produção de certezas – Desinformação. No caso do sistema eleitoral, Bolsonaro diz: “Queremos eleições limpas”. Ninguém razoável é contra isso. Em seguida ele insiste: “Por isso o voto tem que ser auditado”. Ok, ninguém também é contra tudo aquilo que contribui com a lisura do processo. Porém, é a partir daí que o circo começa.

É comum quando nos referimos ao fenômeno do bolsonarismo nas redes sociais nos apegarmos aos números. Por exemplo, Bolsonaro começou 2022 com 5 vezes mais seguidores que Lula nas redes sociais, o que por si só é expressivo. Todavia, isso é apenas a ponta do iceberg. O que há de qualitativo é o modo como funciona essa rede. O bolsonarismo é um verdadeiro ecossistema que o inquérito das Fake News trouxe a tona apenas uma parte. Do gabinete do ódio, passando pelas páginas de parlamentares, canais de youtube, influenciadores, até chegar nos grupos e subgrupos de Whatsapp e Telegram; há uma rede de integração espantosa que combina uma centralização na produção de conteúdo com uma distribuição e redistribuição em escala industrial.

A máquina de propaganda bolsonarista dissemina teorias da conspiração sobre a vulnerabilidade das urnas, a violação do sigilo do voto, lança suspeita sobre a existência de “salas secretas” no TSE, omite que a votação já é auditada, e um longo etc. Por meio das redes sociais, essa “produção de certezas” fragmentadas chega até os sujeitos através de um interlocutor que lhe é próximo: o pai, a mãe, um amigo, o pastor da sua igreja. É a confiança atribuída a esse interlocutor que empresta legitimidade ou, no mínimo, razoabilidade a informação. O bolsonarismo no Brasil, assim como o trumpismo nos EUA, aprendeu com Steve Bannon e outros teóricos neofascistas como atualizar para o século XXI a máxima do nazista Goebbels “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”

Recordemos, por exemplo, a fatídica votação da PEC do voto impresso. A emenda não alcançou os 308 votos necessários na Câmara, verdade. Contudo, obteve 229 votos favoráveis contra 218 contrários. E mais, uma pesquisa realizada pelo Instituto PoderData em julho de 2021 mostrou que 46% dos entrevistados eram a favor de um extrato impresso após o voto na urna. A derrota de Bolsonaro nessa ocasião, portanto, deve ser bem relativizada. A verdade é que ele conseguiu pautar o debate público e de lá pra cá esse tema só cresceu. O TSE e, por extensão, o próprio STF, estão cada vez mais na defensiva. As sucessivas declarações dos ministros da Corte sobre a integridade do sistema são mais sintomáticas do incômodo e de uma condição defensiva no debate, do que o contrário.

Na prática, o “não-debate” se impôs na agenda pública e o que se vê até aqui é o bolsonarismo, com o apoio dos militares, tomando a iniciativa e o seu alvo, a Justiça Eleitoral, fazendo movimentos defensivos. Em setembro o TSE criou a Comissão para Transparência das Eleições (CTE) e logo em seguida o Observatório da Transparência das Eleições (OTE); ambos com representantes do Congresso, de entidades da sociedade civil, acadêmicos e os militares. No artigo anterior já tratamos de como ceder espaço aos militares para o acompanhamento do processo eleitoral se configurou num erro grave do TSE. Esperava-se com essa concessão usar dos militares para conter o ímpeto do bolsonarismo, mas ocorreu justo o oposto. As Forças Armadas estão usando dessa posição para dar mais munição ao arsenal de desinformação bolsonarista.

Outro recuo, que veio a público semana passada, foi o desconvite a União Europeia, a quem o TSE tinha recorrido propondo o envio de uma delegação de observadores para acompanhar o processo eleitoral. O embaraço, pra dizer o mínimo, foi causado pela oposição pública do Ministério de Relações exteriores ao convite, o que criou um impasse e consequente recuo do TSE. Aliás, é bom que se diga, a prática de convidar observadores internacionais é recorrente no Brasil desde as eleições de 1989, sendo, portanto, algo normal. O que não é normal é um governo que se diz tão preocupado com a lisura das eleições, atuar conscientemente para barrar a vinda de observadores internacionais. O que para nós parece contraditório, para o bolsonarismo é parte da estratégia de produzir um ambiente de insegurança e tentar dele tirar proveito.

Ato em Brasília, pelo voto impresso. Reprodução/Poder 360

“O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso.”
(Ariano Suassuna)

Falar das duras condições na quais travaremos a batalha, e lançar luz sobre a força e as estratégias do inimigo, não significa curva-se perante as dificuldades. Pelo contrário, serve para reafirmar o significado histórico do movimento que devemos fazer ao redor da candidatura Lula. Não temos tempo para ter medo, nem muito menos para nos acomodar com as pesquisas de intenção de voto. Essa não é apenas mais uma campanha eleitoral, essa é a campanha eleitoral mais importante da História recente do país.

Essa campanha só será vencida nas urnas e com as ruas. Sem ocupar essa segunda, não há garantias que o resultado da primeira será efetivado. Pergunte a si mesmo: Consigo imaginar Bolsonaro entregando a faixa presidencial para Lula dia 01 de janeiro de 2023? Ou, menos ainda, consigo imaginar, na noite de 02 ou 30 de outubro (datas do 1° e 2° turno das eleições), Bolsonaro fazendo um discurso de reconhecimento da sua derrota eleitoral? Não consegue, né? Essa é a singularidade desse processo eleitoral, o que o torna diferente de todos os anteriores desde o fim da Ditadura.

Um golpe, como tudo na luta de classes, depende obviamente de correlação de forças. A preço de agora, podemos dizer que Bolsonaro, mesmo com a ajuda infame de parte das Forças Armadas, não reúne condições para uma manobra tão aguda. Porém, quem não sabe contra quem luta, não pode vencer. Se não temos dúvida sobre a natureza fascista do inimigo, se nós e até a CIA sabemos que ele joga o jogo contando com a carta da ruptura do regime democrático, temos a obrigação de nos antecipar a sua estratégia de modo a neutralizá-la no campo de batalha.

Para isso, é urgente uma mudança de atitude na direção da campanha Lula, pois o caminho da vitória não passa por Alckmin e um giro ao centro. Passa por uma campanha engajada, que mobilize a sociedade e ajude a levantar não só os votos para vencer (se possível no 1° turno), como também um muro para bloquear as pretensões golpistas da extrema-direita. Juventude, sindicatos, trabalhadores rurais, movimentos negro, feminista, LGBTQI+, indígena, quilombola, artistas, influenciadores digitais; vamos precisar de todo mundo para contagiar a sociedade, inspirar a esperança, e fazer o medo mudar de lado.

 

LEIA A PRIMEIRA PARTE DESTE TEXTO
Para Bolsonaro, não há diferença entre campanha eleitoral e golpe