Um carro médio da Volkswagen, Nissan, Ford ou Fiat Chrysler, segundo publicações dessas próprias montadoras, tem por volta de 100 a 300 chips, que compõem a rede eletrônica inteligente que opera vários sistemas, entre eles, a assistência a navegação para proteção e conforto de motoristas e passageiros, o gerenciamento do motor e do câmbio; controle de poluentes; itens de segurança e conectividade, entre outros dispositivos que estão em permanente transformação, em espaços cada vez mais curtos de tempo, no ritmo do capitalismo global da inovação concorrencial… A matéria-prima para a fabricação desses microchips são os semicondutores feitos de silício muitas vezes combinado com outros minérios para resultados cada vez mais eficientes, que são extraídos da natureza pela mineração legal e/ou ilegal.
A ofensiva do capital envolve em seu sistema predatório o destino de milhares de operários de montadoras no interior de São Paulo e a vida de índios Yanomami que lutam em suas reservas contra o garimpo criminoso, que por sua vez avança para atender a demanda mundial por todo tipo de minério. Os alertas de desmatamento na Amazônia passaram de 1 mil km² em abril e bateram recorde para o período, de acordo com os dados do sistema de alertas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Mais de 97% dos alertas de desmatamento emitidos desde 2019 não foram fiscalizados pelos órgãos responsáveis do Brasil, segundo levantamento feito pelo MapBiomas, plataforma de informações ambientais e territoriais do país.
Os semicondutores e microchips não estão presentes só em automóveis, mas são utilizados em todos os produtos eletrônicos de consumo de massas como celulares, tabletes, computadores… Quanto mais tecnologia, mais chips, mais minérios, mais garimpo/mineração, mais destruição ambiental e violência contra os povos indígenas, mais contato com patógenos e microrganismos hospedados em animais silvestres de matas profundas, mais possibilidades de outras pandemias…
O ciclo vicioso do capital consegue sem maiores dificuldades, lançar grandes empreendimentos em determinada região de um país, consumindo os recursos naturais, recebendo facilidades tributárias, desequilibrando o meio ambiente, comprometendo o tempo e a saúde das pessoas, para acumular o máximo de riqueza sobre o comando de poucos bilionários e nações. Aumentando a produtividade com inovação tecnológica e diminuindo o valor do trabalho permanentemente. Com pouca ou nenhuma responsabilidade social, ambiental ou compromisso com algum projeto de desenvolvimento econômico da cidade ou do país que se instala.
A atual correlação de forças da luta de classes vem permitindo uma ampla liberdade para o exercício da exploração abusiva sobre todo um “ecossistema social”, com o objetivo de sustentar economicamente o luxo infinito de poucas famílias. Esse vem sendo o triunfo do neoliberalismo contemporâneo. Seja pelo domínio financeiro da pauta ideológica que predomina na opinião pública, seja pela violência do estado sobre o povo. O progresso é seletivo e está a serviço de uma elite privilegiada, que por sua vez está em luta, não só para defender seus exageros e super vantagens, mas para ampliá-los! Esse objetivo só pode ser alcançado, com um salto na diminuição do valor do trabalho, em sua remuneração e em suas conquistas institucionalizadas na legislação do país.
Caoa Chery: Negócio Sino-Brasileiro sem compromisso social…
A sigla CAOA leva o nome de seu fundador, o empresário brasileiro Carlos Alberto de Oliveira Andrade, que foi seu presidente até 2021, ano de seu falecimento. Ele transformou a Chery e a Hyundai em campeãs de vendas, se associando a essas marcas, com uma rede de lojas e fabricas de automóveis. Em 2017, chegou a comprar do chineses 51% dos direitos da fabricação no Brasil, surgindo assim a marca CAOA CHERY.
A Chery Automobile é uma industria estatal da China, fundada em 1997 na região de Wuhu, na província de Anhui, com o governo sendo seu único acionista e com mais de 15 fabricas no território chinês, com razoável participação no mercado interno. Quando Xi Jinping chegou a Presidência da China, em 2013, o governo central promulgou uma política para encorajar as empresas estatais a atrair investidores privados e estabelecer uma estrutura de propriedade “mista” composta por acionistas estatais e privados. Em 2014, a Chery inaugurou sua primeira fábrica fora da China, na cidade de Jacareí, no Vale do Paraíba, no estado de São Paulo. No ano de 2017, a Caoa comprou 51% das operações brasileiras da Chery, formando então a nova empresa denominada Caoa Chery.
Na última semana, dormimos comemorando a aprovação da lei do piso para os profissionais da enfermagem, e acordamos com a notícia que a montadora Caoa Chery anuncia suspensão na produção e demissões em massa na planta de Jacarei (SP). Entre os possíveis motivos em parar a produção de uma empresa agressiva na disputa por mercados, está o processo de reestruturação produtiva que envolve a conversão da fabrica de carros/combustão para carros/elétricos, a dificuldade conjuntural em obter semicondutores e os “altos salários” dos operários que são representados por um sindicato combativo, por tanto, obstáculo para o processo predatório do capital.
As reformas trabalhista e da previdência foram aprovadas, como queria Caoa. Mesmo assim, a demissão de mais de 500 operárias e operários é parte da aplicação do novo planejamento da Caoa Chery na região de São José dos Campos. Nada garante que hoje ou amanhã, essa mesma irresponsabilidade social não se repita na cidade de Anápolis (GO), onde se encontra outra planta dessa mesma empresa no Brasil. Afinal, nos últimos três anos a lista de montadoras (que ganharam milhões em incentivos tributários) que fecharam as portas ou paralisaram a produção é fora do padrão, há crise e processos de reestruturação em meio ao impacto da pandemia, que gerou uma trágica onda de demissões. Entre 2020 e 2021, tivemos o fechamento da fábrica Mercedes-Benz, a suspensão por tempo indeterminado da produção da Audi e o fim da produção de carros da Ford, que estava no Brasil havia 103 anos.
Há um discurso hegemônico na grande mídia e nas redes sociais, pago por milionários/bilionários, que tenta nos fazer acreditar que a vida do patrão é muito difícil. Defendem que menos direitos trabalhistas é sinônimo de mais investimentos. Teríamos mais empregos, renda, e o Brasil iria decolar em relação ao crescimento econômico. Nada disso se confirmou na realidade nua e crua dos milhões de brasileiros que lutam diariamente para sobreviver! A verdade é que estamos nesse momento vivendo sob forte inflação, desemprego e juros altos de dois dígitos no Brasil.
A luta de classes e a ofensiva do Capital
Em 2018, a maioria do povo brasileiro, o que inclui aí milhões de trabalhadores e trabalhadoras, elegeram um governo que teve como uma de suas primeiras medidas o fim do Ministério do Trabalho, a precarização da fiscalização do trabalho e a aprovação da reforma da previdência.
A Pesquisa Industrial Anual (PIA) 2019, divulgada pelo IBGE, mostra a gravidade dos números da desindustrialização no país. De 2013 a 2019, o país perdeu 28.700 empresas e 1,4 milhão de postos de trabalho. Na industria extrativa, a remuneração saiu de uma média de 5,9 salários mínimos (sm) em 2013 para 4,6 sm em 2019. Na industria de transformação a redução foi de 3,3 sm para 3,1 sm. O governo Bolsonaro aprofunda o processo de desindustrialização, ao priorizar investimentos no agronegócios e commodities em geral. Ao mesmo tempo em que promove reduções nas tarifas de importação sobre bens de informática, telecomunicações e sobre bens de capital. Não há nenhuma política de investimentos estatal para fortalecer a produção industrial de alta tecnologia no Brasil, nos tornando cada vez mais dependentes da economia de outros países, como China e EUA e os da União Europeia.
O mais preocupante é que a resistência da classe trabalhadora contra essa ofensiva do capital não tem acumulado ânimo e força suficiente para enfrentar a ofensiva do capitalismo que aspira aumentar a taxa de mais valia no Brasil. Segundo o Sistema de Acompanhamento de Greves (SAG) do DIEESE, em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o numero de greves tanto do setor público como no setor privado, teve uma queda de 23% comparado com 2018, de 1453 para 1.118 paralisações. Essa tendencia voltou a se repetir drasticamente em 2020 com queda de 46% do número de greves, foram apenas 580 greves nesse ano, em sua maioria por reivindicações defensivas, como atraso no pagamento de férias e salários, representando quase 40% das paralisações. Em 2021, o número baixo de greves se manteve: de janeiro a setembro, foram realizadas 502 greves no Brasil.
Em especial após o golpe de 2016, e especificamente durante o governo Bolsonaro, esses números nos mostram que o Brasil perdeu a iniciativa soberana em relação a sua indústria, e a classe trabalhadora tem menos oportunidades de trabalho, está mais pobre, endividada e convive com uma forte perda do seu poder aquisitivo, por conta da inflação e dos juros altos.
Os desafios da luta sindical no próximo período
A correlação de forças para a luta sindical está conjunturalmente muito desfavorável, a consciência de classe, um dos requisitos para grandes mobilizações de massas vitoriosas, tem demonstrado fragilidade; a organização sindical está fragmentada, há ainda muita dispersão e desconfiança com os sindicatos e há milhões de trabalhadoras e trabalhadores desorganizados, sem instrumentos de luta, acreditando em ideologias individualistas ou simplesmente não acreditando na mobilização coletiva.
Nesse ano de 2022, estamos vendo greves importantes, como a luta dos profissionais em educação em várias cidades, as paralisações de trabalhadores em plataformas digitais, a paralisação na CSN e em algumas categorias do serviço público. Mas não se trata ainda de paralisações generalizadas e de um movimento unificado com alcance de massas, estamos muito longe ainda dessa necessidade histórica. Mas são sinais que a carestia de vida está pesando sobre a sobrevivência de milhões de trabalhadores e que há espaço para organizar lutas, paralisações e fortalecer a resistência.
Destacamos o papel das centrais sindicais, em especial o da Central Única dos Trabalhadores nesse processo de organização das lutas unitárias no Brasil. Tivemos um importante experiencia que contou com participação das centrais sindicais na campanha Fora Bolsonaro em 2021, mas que não acumulou força política suficiente para tirar o impeachment das gavetas do Congresso Nacional. Todo o ativismo sindical brasileiro precisa compreender que a derrota da extrema direita na eleição presidencial desse ano será uma importante vitória da luta de classes no Brasil, o neofascismo tem como estratégia derrotar o movimento sindical e vem avançando nesse projeto durante o governo Bolsonaro. Mas não podemos semear ilusões que um possível governo de esquerda será a solução para um tema complexo e profundo, que envolve o despertar da classe trabalhadora, assim como tivemos os levantes da década de 1980.
A direção majoritária do movimento sindical brasileiro não pode apostar tudo em saídas negociadas na superestrutura do país, num momento onde o capital não só não apresenta possíveis concessões, como também quer avançar na exploração social do trabalho para melhor se posicionar na disputa no mercado global. A luta unitária, com calendários unificados, envolvendo várias categorias e suas campanhas salariais precisa ser parte da agenda das centrais sindicais como forma de defender empregos e o poder de compra dos trabalhadores.
Os sindicatos precisam dar um salto na reinvenção do trabalho de base, romper com o corporativismo e estender a mão para os trabalhadores precarizados apoiando suas lutas, fazendo campanhas unitárias, organizando escolas populares nos bairros, entrando na disputa ideológica, não só nas categorias que representam, mas no debate publico na sociedade em geral. Aprimorando o trabalho nas redes sociais, revolucionando a forma de se comunicar, com outro tipo de agitação e uma forte propaganda das ideias anticapitalistas. De maneira que se reencontre com as massas trabalhadoras, resgatando a confiança perdida na luta coletiva organizada e convocada pelos sindicatos.
É necessário apontar a construção de outra sociedade, pois no capitalismo não haverá espaço para a solução das demandas mais sentidas da classe trabalhadora, não sabemos se haverá nas próximas décadas condições naturais equilibradas de se viver no planeta no ritmo de acumulação e destruição ambiental que está sendo promovido atualmente. Por fim, a bandeira do socialismo como ideia de dividir as riquezas produzidas socialmente, como também a liberdade como respeito aos direitos civis, democráticos, aos direitos dos imigrantes, da diversidade de cor, gênero e sexualidade, são tarefas que precisam se interseccionar na luta sindical contemporânea para acharmos o caminho da ruptura transformadora no Brasil e no mundo.
* Gibran Jordão faz parte da Coordenação Nacional da Travessia Coletivo Sindical e Popular.
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