Pular para o conteúdo
BRASIL

Centenário do PCB: breves notas sobre seus primeiros anos

Roberto “Che” Mansilla*, de Niterói, RJ
Reprodução

Fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 25 de março de 1922. De pé, da esquerda para a direita: Manuel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrojildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva. Sentados, da esquerda para a direita: Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro

Eles eram poucos
e nem puderam cantar muito alto a Internacional
naquela casa de Niterói em 1922. Mas cantaram.
E fundaram o partido. 
Eles eram apenas nove: o jornalista 
Astrojildo, o contador Cordeiro,
o gráfico Pimenta, o sapateiro José Elias, o vassoureiro
Luís Peres, os alfaiates Cendon e Barbosa
o ferroviário Hermogênio
e ainda o barbeiro Nequete
que citava Lênin a três por dois. 
Em todo o país,
eles não eram mais de setenta. 
Sabiam pouco de marxismo
mas tinham sede de justiça
e estavam dispostos a lutar por ela. 
(…) O PCB não se tornou o maior partido do Ocidente
nem mesmo do Brasil. 
Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis
tem que falar dele. 
Ou estará mentindo. 
(Ferreira Gullar, PCB: Poema por ocasião dos 60 anos do velho Partidão, 192225 de março de 1922)

Neste 25 de março comemora-se o centenário do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Surgido em 1922, do esforço de militantes operários e intelectuais (muitos dos quais organizaram as primeiras greves da classe trabalhadora no início do século XX), o PCB, com acertos e erros e atuando em seu maior tempo na ilegalidade, cumpriu uma trajetória marcante firmando-se como uma organização que buscou impulsionar a luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista, buscando superá-la, sob a perspectiva revolucionária.

Reconhecer esse legado de abnegação militante dos comunistas brasileiros, no entanto, não significa fazer uma reivindicação acrítica de suas mais variadas análises políticas e táticas de construção/intervenção no movimento operário e na vida política nacional. Nesse breve artigo, buscamos recuperar alguns traços marcantes de seus primeiros anos de atuação, e de sua trajetória, antes inclusive da intervenção stalinista que teria terríveis consequências.

Um partido de “tipo novo”

O congresso de fundação do então PCB-SBIC (Partido Comunista do Brasil – Seção Brasileira da Internacional Comunista) – realizou-se em Niterói, entre os dias entre os dias 25, 26 e 27 de março de 1922, bem ao lado de onde funciona o clube Canto do Rio. Reuniu nove delegados, (entre os quais operários e intelectuais) do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, quase todos egressos da militância política nos meios anarquistas. Apesar da pouca repercussão do congresso de fundação, já em junho do mesmo ano, o governo de Epitácio Pessoa colocou o partido na ilegalidade, condição em que passaria a maior parte de sua existência.

Mas a primeira singularidade na trajetória do PCB é que ao contrário de seus pares, não se originou de cisões à esquerda dos antigos partidos socialdemocratas. Em primeiro lugar por que não havia uma tradição marxista e os raros partidos socialistas que existiram aqui, desde o final do século XIX, tiveram duração efêmera, quase sempre foram de expressão puramente local e ainda não contavam com um movimento operário organizado. 

Um segundo traço na história do partido é o internacionalismo, em particular o impacto da Revolução Socialista de Outubro de 1917 na Rússia. Esse evento foi saudado com forte expectativa no movimento operário e contava com profunda simpatia. E também repercutiu, como em muitos outros países, num momento de crise interna da corrente mais combativa, o anarquismo, onde até então estavam os principais ativistas, muitos do quais seriam os primeiros comunistas. 

Depois do ascenso nas greves de 1917 e 1918, no momento seguinte, o movimento anarquista começou a sofrer uma duríssima repressão estatal e tiveram enormes dificuldades em realizar um recuo organizado diante da situação reacionária que se abria. O fato é que os mais combativos ativistas do movimento operário começaram a constatar que não dispunham de instrumentos teóricos adequados para tentar preservar politicamente, ao menos uma parte das conquistas no período anterior. O divisor de águas entre anarquistas e comunistas passou a ser, como lembra Marcos Del Roio, a “questão do partido e a questão russa”. “(…) a situação se precipitou com a divisão aberta entre os que continuaram apoiando a Revolução Russa e os que passaram a criticá-la” [1].

O PCB surgia, portanto, como uma agremiação ao mesmo tempo nacional, isto é, buscando o enraizamento no país, e internacional, na esteira dos acontecimentos que sacudiam a Rússia, em outubro de 1917. Aliás, o partido perseguiu desde seu surgimento uma relação mais orgânica com a Terceira Internacional Comunista (Komintern). O envio de um militante para representar o nascido partido no IV Congresso da IC e garantir a sua inclusão como seção brasileira (não obstante esse pedido ser relegado para um momento posterior) não deixa dúvida da vontade dos comunistas brasileiros em buscarem legitimarem nessa identidade internacionalista. 

Em busca de uma “teoria-bússola”

Uma das primeiras debilidades que os comunistas brasileiros procuraram superar logo nos primeiros anos da atuação foi a constatação da ausência de uma tradição marxista, reconhecida por muitos de seus principais dirigentes, como Astrojildo Pereira:

“Os materiais dessa natureza [teóricos] eram todos ou quase todos traduzidos, recurso aliás de que se valeria o Partido por muitos anos adiante. (…) O movimento operário brasileiro não possuía nenhuma tradição marxista, razão, senão decisiva pelo menos explicável, das insuficiências teóricas da direção do Partido”. [2]

Os escassos recursos que os comunistas levantaram até meados da década de 1920, de acordo com Leandro Konder, “destinavam-se apenas à agitação, não sobrando nada para estudos e produções teóricas”. [3]

De qualquer forma, O PCB tomou a iniciativa de organizar reuniões e debates sobre as teses comunistas, sobretudo a partir da leitura do jornal A Classe Operária e algumas obras de Marx e Lenin. O problema era que tais livros praticamente inexistiam em português e, para conhecê-los, era necessário ler em francês ou espanhol. Esse foi o caso do Manifesto do Partido Comunista que foi traduzido do francês, no final de 1923 por esforço de Octavio Brandão, tendo sido publicado pela primeira vez em sucessivos números do seminário Voz Cosmopolita, no decorrer de 1924.

Apesar do significativo esforço de publicizar escritos comunistas, entre 1923 a 1930, foram poucos os títulos do marxismo existente no Brasil. Além da já citada tradução do Manifesto, estavam disponíveis em língua portuguesa apenas os livros ABC do Comunismo (1927) de Nicolai Bukharin, além de duas brochuras de Lenin: O cidadão e o produtor (1923) e o Marxismo (1930), respectivamente. [4]

Por ocasião de seu II Congresso (realizado nos dias, 16, 17 e 18 de maio de 1925) o Partido “registrava aproximadamente 300 membros” [5]. Mesmo sob as difíceis condições de ilegalidade, os comunistas ousaram atuar. E foi essa ousadia que os fizeram editar A Classe Operária, com uma tiragem semanal de cinco mil exemplares que circularia nas fábricas, sedes de sindicatos e era vendida a membros do partido, operários e simpatizantes. Depois de ter sido fechado pela polícia em julho do mesmo ano, o periódico continuou saindo clandestinamente. [6]

Aliás é no II Congresso que ocorreu o primeiro esforço de formulação própria dos comunistas brasileiros. Era àquela que defendia que a contradição fundamental da sociedade brasileira em meados da década de 1920 se dava através da “luta entre o capitalismo agrário semifeudal e o capitalismo industrial moderno”; o primeiro apoiado pelo imperialismo inglês e o segundo pelo imperialismo norte-americano. Tal tese foi originalmente elaborada por Octavio Brandão em sua brochura Agrarismo e industrialismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brazil. [7] [8]

O Brasil vivia o Estado de sítio decretado pelo governo de Arthur Bernardes e a obra de Brandão [9] tentava refletir sobre a segunda revolta tenentista de julho de 1924, na qual defendia a urgência de unificar politicamente o mundo do trabalho, a fim de que o proletariado pudesse atuar, como uma frente, em apoio a novas eclosões da revolta da juventude militar contra os desmandos do estado oligárquico-liberal, ainda que não tivesse ilusões no “militarismo” e no “golpismo” daqueles setores da pequena burguesia urbana. 

A principal originalidade da obra Agrarismo e Industrialismo é ser considerada a primeira tentativa de interpretação marxista sobre a realidade brasileira. Em que pese seu incipiente arcabouço teórico, e sua “superficialidade, cheios de equívocos e insuficiências” como reconheceria mais tarde o próprio Brandão, ela se situa num momento privilegiado e até mesmo inédito no que ser refere à produção de ideias originais na história do PCB. 

As atuações na política 

Com o fim dos tumultuados anos do governo Arthur Bernardes e a suspensão do Estado de sítio e, no marco de uma certa liberalização trazida pela eleição do novo presidente Washington Luís, a direção do PCB buscou aplicar o projeto de construção da frente única proletária (deliberada no II Congresso) e atuar em “blocos”, seja no sindicatos, seja nas eleições de 1928. 

No trabalho sindical, os comunistas desenvolveram um importante trabalho político junto aos têxteis que levou a construção da Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB).

Já na tarefa eleitoral havia maiores dificuldades que os comunistas precisariam superar, entre as quais: não terem experiências em campanhas eleitorais; permanecer na parte mais combativa do movimento operário a velha tradição anarquista de negar ou ver com enorme desconfiança qualquer participação em lutas parlamentares e também a fraude eleitoral que favorecia o clientelismo dos chefes políticos tradicionais. Espaço para uma tática eleitoral combativa e classista seria uma ousadia tremenda.

A ideia então foi a formação do Bloco Operário e Camponês, uma fachada legal para os comunistas atuarem com outras forças progressistas”. Mas mesmo assim, como lembra Del Roio, essa tática não deixou de ser fluída, ou seja causava enormes dificuldades na distinção “entre a organização política de frente única de massas e o partido propriamente dito” [10]. De qualquer forma foi a expressão inicial e mais importante da política de “ampliação das bases” do Partido Comunista e teve um grande mérito que foi eleger Minervino de Oliveira o primeiro parlamentar negro e operário no Brasil, além de também eleger o farmacêutico Octavio Brandão. Nesse período também teria as primeiras tentativas de aproximação com Luís Carlos Prestes e outros participantes da Coluna tenentista que estavam exilados, sobretudo na Bolívia e Argentina.

Stalinização e a intervenção no PCB

Importante destacar que entre 1927 a 1929, fruto de um processo cumulativo de dissensões que se manifestaram nas fileiras do PCB, tem-se a constituição da Oposição de Esquerda no Brasil, ecoando as divergências que se manifestavam no PC da URSS e na direção a IC lutas no interior do PC Soviético em torno das posições favoráveis a Trotsky que por aqui foram defendidos por Rodolfo Coutinho, Lívio Xavier entre outros. [11]

Nesse mesmo momento também ocorreu a reviravolta na atuação de certa forma autônoma do PCB: o processo de efetiva intervenção/interferência na vida dos diversos partidos comunistas, da grupo staliniano, cujo auge foi o VI Congresso da IC (17 de julho a 1º de setembro de 1928) que em termos analíticos desenvolve uma nova linha política conhecida como “Terceiro Período”, que marca um giro esquerdista vendo as raízes de uma nova crise capitalista e a a abertura de uma nova onda revolucionária no mundo [12]. Em termos políticos o VI Congresso da IC rompia com a política da frente única e adotava a tese de “classe contra classe” . O que passou a ocorrer a partir desse momento é uma imposição – de cima para baixo – que não levou em conta as particularidades das diversas formações nacionais. A consequência, de acordo com Mazzeo, é um “esvaziamento da historicidade dessas realidades, consubstanciada pelo abandono dos estudos originais que já vinham sendo desenvolvidos pelos PCs”. [13]

Em setembro de 1929, o Secretariado Sul Americano da Internacional Comunista (SSA/IC) ficou encarregada da difusão de uma “Carta aberta aos partidos comunistas da América Latina sobre os perigos da direita”. [14] Nesse momento, como atenta Marcos Del Roio, existia no PCB, três vertentes políticas, a saber:

a que girava em torno de Astrojildo Pereira e Octavio Brandão que formava o grupo original do partido, e que defendia a aliança estratégica do movimento operário com a pequena burguesia; aquela que priorizava a organização operária e o sindicalismo autônomo de base incorporando a estratégia da aliança operário-camponesa; e um outra que também combatia a linha do III Congresso do PCB, e defendia a ideia que a revolução brasileira deveria assumir desde logo um caráter anticapitalista e anti-imperialista, aproximando-se da concepção de Trotsky”. [15]

Entre 1929 e meados de 1930 os principais acusados pelos “desvios de direita” no PCB eram Astrojildo Pereira e Octavio Brandão, os dois principais teóricos do partido na sua primeira década de existência. Ocorreu portanto, uma intervenção da IC no Brasil para “proletarizar” o PCB que foi desastrosa, dando início a uma das fases mais difíceis da vida do partido. Este processo sectário ficou conhecido como o obreirismo e se centrava no argumento de que os partidos comunistas stalinizados deveriam ser conduzidos por “operários autênticos”, transformados em caricaturas. 

*Professor de História da rede municipal do RJ e militante da Resistência/PSOL

NOTAS
[1] DEL ROIO, Marcos Tadeu (1997). “A revolução socialista na Rússia e a origem do marxismo no Brasil”. In Revista Crítica Marxista, v. 1 tomo 5, São Paulo: Xamã, 1997, p.122.
[2] PEREIRA, Astrojildo. Formação do PCB. Op., cit., p. 59.
[3] KONDER, Leandro. A derrota da dialética… Op., cit., p. 142
[4] Cf. CARONE, Edgard. O marxismo no Brasil (das origens a 1964). Rio de Janeiro: Dois Pontos Editora, 1986, p. 186-187. Esta obra é de significativa importância por ser tratar de uma primeira significativa pesquisa bibliográfica sobre a difusão dos livros de teoria marxista, aspectos da vida soviética e a literatura proletária existente no Brasil e nos países de língua latina. 
[5] RODRIGUES, Leôncio Martins. “O PCB: os dirigentes e a organização”. In FAUSTO, Boris (Org.). HGCB: O Brasil Republicano – sociedade e política (1930-1964), vol. 3, São Paulo: Difel, 1983, p. 365,
[6] Mesmo depois de um longo período de ilegalidade, o Jornal A Classe Operária reapareceu no Primeiro de Maio de 1928 indo até 1929. Mais tarde foi publicado irregular e clandestinamente, tendo uma nova fase legal aberta em março de 1946.
[7] Octavio. Ver BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e Industrialismo …  São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.
[8] BRANDÃO, Octavio. Combates e batalhas, op., cit., p. 285.
[9] No artigo “Uma etapa da história política”, publicado no jornal comunista Imprensa Popular de 21.01.1957, Octavio Brandão realizou o que chamou de “autocrítica”, apontando os erros de sua brochura, na linha política do PCB entre 1925 a 1928.
[10] DEL ROIO, Marcos. “Os comunistas, a luta social e o marxismo (1920-1940)”, op., cit., p. 32.
[11] MARQUES NETO, Solidão Revolucionária: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993
[12] De uma maneira geral essa formulação dizia que a “evolução da luta de classes” desde o advento da Revolução Socialista de Outubro tinha a seguinte periodização: “Primeiro período” (1917-1924) era marcado pela crise capitalista e a erupção revolucionária e teve nas revoluções russa e alemã seus principais momentos; o “Segundo período” (1925-1928) assinalou a ofensiva capitalista frente às derrotas de várias tentativas revolucionárias como a malograda Revolução Chinesa. Finalmente, o “Terceiro período” (aberto em 1928) seria considerado intenso nas contradições do capitalismo e, por isso terminal. BUKHARIN, N. apud FILHO, Michel Zaidan. Os comunistas em céu aberto (1922-1930). Belo Horizonte: Oficina de livros, 1989, p. 44 e 45.
[13] MAZZEO, Antônio Carlos. Sinfonia inacabada: a política dos comunistas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1999.
[14] “Carta Abierta a los Partidos Comunistas de la América Latina sobre los peligros de la derecha”. Revista La Correspondencia Sudamericana. 2ª época. Buenos Aires, no 18, 20.09.1929. p. 1-4 (Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro – AMORJ/UFRJ). Essa luta contra “os perigos de direita” era uma referência as acusações que Stalin e seu grupo faziam agora a Bukharin.
[15] DEL ROIO, Marcos. “A gênese do Partido Comunista (1919-1929)”, op. cit, p. 247.