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BRASIL

A educação integral e a necessidade de um projeto de educação socialista

Lucas Marino, de Osasco, SP
Marcelo Camargo / Agência Brasil

Nas eleições de 2020 grande parte dos representantes da esquerda, principalmente os que atuam e se interessam pelo campo da educação, defendiam com unhas e dentes o projeto de educação em tempo integral, como grande proposta de campanha, as chamadas escola PEI. Essa pauta estava presente em falas de candidatos para prefeitos e vereadores, da militância e nos programas dos partidos. Hoje, em 2022, ano de eleição, o discurso volta a aparecer, nos discursos dos candidatos do campo da esquerda, dos campos mais progressistas, mas também nos candidatos da direita e de centro.

Precisamos, portanto, refletir: a quem interessa o projeto de escola de tempo integral? Para pensarmos nessa resposta, devemos relembrar que este projeto ganha força após implementação da atual BNCC – apesar de uma Base Nacional Comum (BNC) ser uma reinvindicação e uma luta antiga dos campos progressistas, bem anterior a Constituição. Essa BNCC atual, construída a partir de uma agenda neoliberal, não representa o fim e nem o projeto de educação socialista que queremos. Basta apenas olharmos quem são os representantes do Movimento pela Base Nacional Comum (formado em 2013): as fundações Lemann, Roberto Marinho e Maria Cecilia Souto Vidigal; os institutos Ayrton Senna, Unibanco, Natura e Inspirare; o movimento Todos pela Educação; o Itaú BBA; o Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação) e a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação); agentes públicos ligados ao MEC; economistas e consultores educacionais de bancos; representantes de grupos produtores de materiais didáticos; e especialistas em avaliações em larga escala.

A própria Fundação Lemann, que criou o site “Nova Escola”, que oferece “dicas” de como os professores e professoras devem conduzir sua aula, disponibilizando planos de aula prontos e práticas prontas, minando a criatividade e capacidade criadora dos educadores, até chegar um momento que não somos mais capazes de realizar sozinhos, no discurso de promover “facilidades” no trabalho docente. Assim, os planos de aula prontos e genéricos “atenderiam” escolas de diversas realidades de ensino.

A partir dos dados disponíveis do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e compilado no artigo dos professores Girotto e Cassio (2018) podemos perceber que, para a capital de São Paulo, a escolha das escolas tornarem-se PEI está concentrado em regiões de maior nível socio econômico – 75% ficam em regiões cuja renda média familiar é superior a R$ 1.600 – ou seja, nas regiões centrais; já nas periferias a distribuição é baixa ou nula destas escolas. Os estudantes em sua ampla maioria são brancos, oriundos de famílias com maior acesso ao ensino superior completo. Os dados do censo escolar de 2011 a 2018 também não nos deixa tão otimista, pois mostram que as matrículas na modalidade EJA sofreram queda de 75,3% e no Ensino Médio de 46,1%, em escolas que aderiam ao PEI.

O PNE prevê na meta 6, no mínimo, 50% das escolas públicas de tempo integral até 2023, portanto impossível de ser cumprido.

Mas não é apenas esse recorte que chama atenção, as escolas PEI servem a um objetivo de apresentar um grupo de escolas dentro da rede que tenha indicadores melhores, vendendo isso como uma política pública, como se o aumento da variável “jornada escolar” pudesse levar a uma melhoria nos indicadores de avaliação, e o que vemos na implementação das escolas PEI, é justamente o contrário, hoje já temos dados suficientes que mostram, diminuição de cargos docentes, privilégios de áreas de baixa vulnerabilidade social e, talvez o pior, devido ao custo de implementação de uma Escola de Tempo Integral ser alta, não é possível tornar todas as escolas, seja de uma cidade ou até mesmo do Estado, de ensino integral, sendo portanto um projeto antidemocrático por natureza, excludente e elitista. O próprio PNE (Plano Nacional de Educação) que estipula metas que devem ser alcançadas para a educação brasileira, prevê na meta 6, no mínimo, 50% das escolas públicas de tempo integral até 2023, portanto impossível de ser cumprido.

Para termos um exemplo prático, no ensino fundamental integral o valor médio de custo por estudante é de R$ 4.402,79/mês, em contrapartida um estudante “custa” R$ 1.500 por mês (R$ 18 mil por ano) em tempo parcial. No Estado de São Paulo temos 14.405 escolas que atendem essa etapa do ensino, totalizando, portanto, mais de 63 milhões de reais para manter esse projeto. O fato é que essa experiência escolar só é acessível a 5% da população. Além disso, os entusiastas do PEI paulista se acostumaram a evocar Anísio Teixeira e o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova para defender um modelo de escola de jornada ampliada que é competitivo, discriminatório e excludente. Qualquer comparação do PEI com os ideários de Anísio são, no mínimo, mal intencionados ou perversos. Atualmente, escolas das periferias do Estado de SP estão aderindo ao PEI, mas com um orçamento menor e um tempo de escola que não chega ao ensino integral, ou seja, uma “meia escola de tempo integral”. Esse atual modelo PEI já está apresentando menor repasse de dinheiro, maior evasão escolar e consequente seleção de estudantes devido a saída de alguns estudantes que não acompanham a carga da escola. Grande parte dessas escolas que estão aderindo ao projeto não apresentam laboratório de ciências e/ou informática, não ampliam as possibilidades de práticas docentes, propondo apenas mais tempo de sala de aula, voltados para uma educação neoliberal, e não correspondem as ideias iniciais do século passado, dos antigos CEUs.

Escolas das periferias do Estado de SP estão aderindo ao PEI, mas com um orçamento menor e um tempo de escola que não chega ao ensino integral, ou seja, uma “meia escola de tempo integral”.

Voltando ao início desse texto, o que mais se ouve dos defensores das escolas PEI, é que as famílias de baixa renda, trabalhadores informais, de jornadas duplas e triplas, devem ter um espaço de tempo integral para deixar seus filhos e filhas, assim as escolas PEI atenderiam essa demanda (o que já vimos que na prática ela não atende). É claro que isso é importante, seja pelo aumento da exploração e precarização da classe trabalhadora, em especial das mulheres, que são responsáveis, por conta do machismo, da maioria ou de quase todo o trabalho doméstico. Uma escola integral é importante ainda mais em um cenário de pandemia e pós pandemia, no qual parte dos estudantes, em especial negros e pobres, permaneceram sem conseguir um ensino de qualidade. Mas, junto com a defesa de uma escola com maior carga horária, é necessário também melhorar as condições de jornada, garantir o vínculo formal, os direitos e remuneração dos trabalhadores, para que as escolas PEI não sejam apenas um local para “deixar” os filhos e filhas, mas sim um local de apropriação de vivência das comunidades locais.

Nós, que lutamos por uma educação pública, democrática, de qualidade, não podemos aceitar repetir um discurso da escola de tempo integral como projeto e “carro chefe” de campanhas oportunistas, que se chocam com os baixos investimentos na educação e com mecanismos como a lei do teto de gastos. Precisamos ir além, e pensar e propor um projeto de educação socialista, que seja inclusivo e transformador. Esse projeto deve incluir uma educação democrática e plural, que seja para todos, e não nos modelos PEI atuais que são inalcançáveis e descolados de uma educação emancipatória e critica.