O jovem negro Hiago Macedo de Oliveira Bastos, 21, estava todos os dias nas barcas e nas ruas do Centro de Niterói (RJ), vendendo balas. Foi morto no final da manhã desta segunda, 14, diante de centenas de pessoas, na frente da estação, atingido com um tiro à queima-roupa por um policial de folga: Carlos Arnaud Baldez Silva Júnior.
Quem chegava para atravessar a baía de Guanabara assustou-se com a quantidade de policiais militares, que depois da barbárie cometida por um dos seus, estavam ali para impedir uma nova revolta popular, como a que incendiou o lugar em 1959. Quem chegava, não tinha como não avistar o corpo estendido perto dos guichês. Não tinha como não ver Hiago.
Pouco se sabe sobre ele, mais um jovem negro disputando a atenção das milhares de pessoas que circulam nas barcas e no terminal rodoviário. O que se sabe agora é o que sua família e amigos contam. Jovem, com filhos, vendia balas para sobreviver, tentando juntar o suficiente para uma festa de aniversário da filha de 2 anos.
Sabe-se, através de seu primo, que Hiago havia “escolhido o caminho certo”. E talvez por isso não tenha admitido ser chamado de ladrão pelo homem que estava na fila, ou pelo policial à paisana. “Pode puxar nas câmeras, ele foi abordar uma pessoa para vender bala e no momento o rapaz chamou ele de ladrão e disse que os meninos da bala abordavam as pessoas para roubar celulares. O policial que estava do lado se envolveu. Meu primo é sujeito homem, debateu com ele, e ele [o policial] meteu a mão na arma e deu um tiro só”, disse Jonathan César, primo da vítima, em depoimento ao portal G1.
Pouco se sabe sobre Yago. Mas, em 2019, em dois momentos, ele poderia ter sido visto.
Em 28 de março de 2019, Hiago foi espancado por seguranças do Shopping Bay Market, a alguns minutos dali, por estar vendendo balas dentro do shopping. Em um vídeo que circulou nas redes sociais e chegou a repercutir na imprensa, Hiago aparece caído, sendo espancado pelos seguranças em um corredor do shopping, que não se pronunciou à época. Não se sabe o que deu, mas provavelmente nada foi feito, pois, como disse hoje seu primo, “era só um vendedor de balas”. “A bala dele uma custa R$ 3 e duas é R$ 5, e a vida do meu primo pra ele custa quanto?”, perguntou.
Pouco depois, em junho de 2019, centenas de pessoas foram despejadas do Prédio da Caixa, no centro de Niterói. No despejo, nas primeiras horas da manhã, a Avenida Amaral Peixoto amanheceu cercada, por dezenas de carros e um forte aparato policial. Os últimos moradores foram expulsos, sem conseguir tirar suas coisas, e a porta do prédio foi lacrada, com uma parede de tijolos, e permanentemente vigiada por PMs. Yago estava ali. Morava no prédio, saiu com crianças, o que conseguiu levar e, como tantas famílias, foi se abrigar em um casarão semi-destruído na Rua Dr. Celestino, também no Centro, onde as paredes destruídas pelo tempo servem de abrigo para dezenas de pessoas sem moradia. E para escapar do destino de Dona Suely, ex-moradora do prédio, cujo corpo foi encontrado na rua, perto do antigo edifício.
Em pelo menos esses dois momentos, Hiago poderia ter sido visto. Mas não foi. No shopping, ele foi o “criador de confusão”, que teve a ousadia de resistir aos seguranças, que não aceitou ser derrubado e dominado, sem reagir. Mas não teve seu nome divulgado no RJ TV, não passou de mais uma violência, que ocorreu no lugar errado, mas que alguém conseguiu filmar e denunciar.
No despejo do Prédio da Caixa, ele era um número. Muitos moradores ainda estão por aí. Nas ruas ou em habitações precárias, após passar por casa de parentes ou ter conseguido o aluguel-social. Estão aí, mas não são vistos. No despejo, os gatos que ficaram presos dentro no edifício, abandonados na saída forçada, sensibilizaram mais a classe média da cidade, uma das mais ricas do país, do que os rostos cansado e as histórias das centenas de moradores.
Nas poucas vezes em que foi visto, Hiago chegou a ser acompanhado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Niterói, pelo mandato do então vereador Renatinho do PSOL, vítima da covid. “Acompanhamos Hiago desde então. Apoiamos quando foi atacado no shopping, e em várias ocasiões em que ele foi detido. Hiago sempre foi preso pela cor de sua pele, por ser negro e por se recusar a aceitar as violências e a humilhação”, diz Paula Mairan, jornalista, ex-assessora do vereador.
O tempo todo, Hiago esteve ali, mas não foi visto. Encontrou pela frente o racismo, o ódio e a violência do Brasil de Bolsonaro e Claudio Castro, que o vê não como gente, mas como uma ameaça que precisa ser eliminada, como os da Vila Cruzeiro, do Jacarezinho, do Salgueiro, o jovem Moise na Barra da Tijuca ou Durval, morto pelo próprio vizinho. Hiago nunca foi visto, a não ser como um inimigo a ser abatido ou alguém que estava atrapalhando o caminho.
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