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MUNDO

Portugal: uma vitória do “centro” neoliberal num contexto da direita que assombra

Dez notas sobre as eleições no além-mar

Elídio Marques, do Rio de Janeiro, RJ
Valter Campanato/ Agência Brasil

Primeiro-Ministro de Portugal, António Costa, do PS, conquista maioria absoluta no Parlamento

1. O PS português, um partido caracteristicamente “de classe média” e de centro, obteve uma de suas maiores vitórias eleitorais, alcançando uma rara maioria parlamentar absoluta.

2. O primeiro derrotado é o centrodireitista PSD, partido com o qual o PS se alterna à frente do governo nos mais de 45 anos de regime constitucional e que chegou a ser apontado como possível vencedor.

3. Ambos os partidos, centrais para o regime, foram criados no processo de democratização, em tentativas de espelhamento dos partidos europeus, com bases populares e de trabalhadores existentes, mas pouco determinantes e com uma missão fundamental: conter a influência da esquerda e do tradicional PC naquele processo. São partidos com quadros burocráticos de classe média, excelentes relações com as classes dominantes e projeto vinculado à ordem europeia ocidental. Nos primeiros anos, o PS foi o mais decisivo neste processo de contenção da esquerda. Nos anos 80 a meados dos 90, o PSD foi o veículo do neoliberalismo lusitano.

4. Depois de 2008, nos arranjos pós-crise, Portugal foi submetido à intervenção ditatorial da chamada “troika”. Como parte da periferia da Europa sofreu duramente as exigências de ajuste e medidas draconianas foram tomadas, incluindo reduções salariais e perdas de direitos. O PSD foi o principal fantoche de implementação da “austeridade” num país cuja soberania, é bom lembrar, não inclui sequer a existência de uma moeda própria, com as limitações aí implícitas.

5. Em 2015 dá-se uma virada que seria importante para a esquerda portuguesa e com repercussão internacional. Num momento em que quase todos os governos europeus estavam com a direita e em que a ditadura da troika parecia invencível, Portugual teve resultados eleitorais inusitados. O PSD foi o partido mais votado, mais uma vez, mas o crescimento de partidos à esquerda, como a CDU (coligação dirigida pelo PC) e o Bloco de Esquerda (BE), permitiu que estes últimos chamassem o PS a assumir o governo. Foi a chamada “geringonça”: um governo do PS, então o 2o grupo parlamentar, viabilizado pela esquerda (PC e BE), que dele não participava com nenhum cargo, mas com base em um compromisso escrito.

6. A “geringonça” tinha um programa muito modesto, uma espécie de microrreformismo, mas que tinha o sentido político de estancar a sangria da perda de direitos imposta pela troika e restabelecer uma dinâmica de recuperação daqueles. Por improvável que parecesse o arranjo ele funcionou. O PS, cujos governos “solo” dos anos 90 e 2000 haviam sido caracterizados por um abrandamento da velocidade do neoliberalismo, agora governava ligeiramente à esquerda de si mesmo e com bons resultados. A sensação produzida em Portugal, mas também na esquerda europeia (e aqui nas nossas praias sofridas daqueles anos) foi de respiração: como se fosse uma redescoberta de que afinal era possível dar passos.

7.  Em 2019 há novas eleições e os resultados já apresentam uma mudança qualitativa. O PS foi o mais votado, sem maioria, a esquerda permaneceu importante, mas já sem a capacidade de se impôr tanto. Lá na margem, algo inquietante: um deputado abertamente da extrema-direita foi eleito e ganhou o palanque do parlamento. O ritmo das microrreformas abrandou e o PS mostra-se resistente em continuar a enterrar o legado das contrarreformas. Durante este período a extrema-direita cresce, aparece e é “normalizada” pela direita como possível aliada. Este me parece um pouco importante.

8. Ao final de 2021 o PS apostou numa crise política ao não ceder às demandas da esquerda para o orçamento. Entre se manter no governo dando mini passos em direção aos interesses populares e arriscá-lo para se restabelecer como partido “de centro”, ficou com seus princípios (à direita) e seu senso de oportunidade agudo. À memória do PSD como partido da austeridade somou-se a sombra de uma extrema-direita inflada, legitimada. Para o eleitor democrático, progressista, ficou a escolha entre seguir com o que temos (com o PS levando louros por medidas que sequer teria adotado se não fosse a pressão da esquerda) e voltar ao austericídio, potencialmente com o apoio e participação dos extremistas do Chega. Entre o “razoável” e o terrível, o voto útil esvaziou os partidos de esquerda que viabilizaram a recuperação portuguesa.

9. A extrema-direita nunca havia tido espaço significativo em Portugal como força política. É um regime erigido contra o fascismo salazarista e seu colonialismo. Forças protofascistas são constitucionalmente em tese banidas naquele país e poderiam ser dissolvidas. O conteúdo racista do partido “Chega”, agora com 12 deputados entre os 230, sendo a 3a força, é abismante e assustador. Chama a atenção, mas não surpreende, que o combate direto a eles seja assumido pelas forças mais à esquerda, com “liberais”, “direita democrática” normalizando-os e a “social-democracia” de bom senso fazendo um jogo ambíguo, ganhando votos em cima do medo que provocam, sem interesse real em derrotá-los para sempre.

10. Os resultados em Portugal poderiam ter sido piores, entregando o governo a uma coalizão tácita ou explícita entre direita austericidade e extrema-direita racista. Mas não foram bons. Significaram que aquele país caiu na armadilha que tem predominado mundo afora: a de restringir a escolha política entre o abismo à direita e o sensato conformismo “de centro”, com seu enorme risco de alimentar uma massa ressentida, frustrada e alvo fácil dos inimigos dos direitos, das maiorias e das possibilidades de democratização.
A esquerda portuguesa foi muito hábil para sair de impasses anteriores e terá que ser muito inventiva, corajosa e capaz para enfrentar este também. Para nós, haveria muito a aprender: 2025, 2026, 2027 são logo ali.