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OPRESSÕES

Do Orum ao Ayê: um olhar político em defesa das Religiões de Matriz Africana

Alexandra Reis, Gabriel Santos e Wellignton Porto*

Andre Freitas, Praça da Redenção Porto Alegre,01/10/2017

O ano de 2022 iniciou com inúmeras mensagens de “Feliz Ano Novo” e com um sentimento de esperança com o ano que se aproxima e com os desafios que teremos pela frente. Contudo, esse sentimento de alegria foi abalado logo nas primeiras horas do dia 01 de janeiro, onde as mídias foram tomadas pela triste notícia de mais um brutal atentado à nossa ancestralidade. 

Justiça para Terreiro Salinas

Este incêndio criminoso não queimou apenas um espaço religioso, queimou um espaço de vida social e política, que atuava e fazia aquilo que deveria ser papel do Estado em comunidades periféricas.

No litoral sul de Pernambuco, o Ilê Axé Ayabá Omi, também conhecido como Terreiro das Salinas, que fica no município de São José da Coroa Grande, foi surpreendido no primeiro dia do ano com um incêndio. Essa foi a terceira vez que o templo foi vítima da violência gerada pelo racismo religioso, porém nas anteriores a comunidade em volta do Terreiro contornou os problemas evitando grandes desastres.

O terreiro tem um papel social muito importante, por justamente estar localizado em um território periférico, ele efetua políticas de combate à fome, frio e intolerância, pois entre os principais ensinamentos que aprendemos estão os valores comunitários e de que “a união faz a força”.

O Terreiro de Salinas atua para além do campo religioso, realizando uma série de ações sociais, como sopão comunitário, distribuição de livros e cestas básicas, quinzenalmente nas reuniões de Jurema arrecadando alimentos não perecíveis para doação, e também com aulas de reforço escolar para crianças.

Este incêndio criminoso não queimou apenas um espaço religioso, queimou um espaço de vida social e política, que atuava e fazia aquilo que deveria ser papel do Estado em comunidades periféricas. Se queimou um espaço de resistência ancestral, que trazia em si saberes e ensinamentos diaspóricos e anti coloniais. 

Nesse momento, a cobertura de solidariedade e apoio ao templo e seus fiéis é fundamental. Uma campanha de arrecadação de fundos para a reestruturação do terreiro está ocorrendo com doações para o pix: [email protected] 

Brasil, abençoado por Deus?

Segundo Frantz Fanon a colonização não é só o domínio do território por uma potência militarizada vinda do estrangeiro. É também o domínio sobre o corpo do colonizado, sobre sua cultura e sobre sua história.

Quando crianças, achamos tudo aquilo que forma a nossa casa de religião incrível, as pessoas de branco, as comidas diferentes que fazemos para os Orixás, o dançar descalço, o cantar, o rezar, tudo isso feito coletivamente, ajudando uns aos outros. Só que também aprendemos da forma mais brutal que tudo aquilo que vem da ancestralidade negra e indigena e visto como ruim pela sociedade. As crianças que fazem parte da umbanda, do candomblé, e das demais religiões ancestrais, muito cedo tem que lidar com a intolerância e o medo.

Os terreiros das religiões de matriz africana, afro-brasileira e afro-indígena têm sido alvo constante das violências, intolerâncias e racismo religioso que tentam impedir a realização de nossos rituais, da adoração aos nossos orixás e entidades sagradas. O racismo religioso foi pedra angular da formação do Brasil enquanto país, do próprio modo de produção capitalista como sistema econômico e da própria civilização ocidental.

O sequestro de africanos da África e seu tráfico pelo atlântico foi realizado com a benção (e lucro) da Igreja Católica que afirmava que os negros não tinham alma e precisam ser salvos. Enquanto negros eram chicoteados nós pelourinhos ou forçados ao trabalho escravo, missionários rezavam missas e buscavam converter ao cristianismo os escravizados, pois sabiam que sua religião era também forma de organização comunitária e ancestral. A associação das religiões africanas e dos Orixás com aquilo que o Ocidente considera demoníaco e pecado faz parte da ideologia racista necessária para a dominação dos corpos negros e a colonização. 

Segundo Frantz Fanon a colonização não é só o domínio do território por uma potência militarizada vinda do estrangeiro. É também o domínio sobre o corpo do colonizado, sobre sua cultura e sobre sua história.

Pensamento semelhante ao desenvolvido por Georges Balandier, que apontava a situação colonial como sendo uma situação totalizante. Na visão deste autor, a colonização abarca todos os aspectos da sociedade. Atingindo o controle de corpos, o controle geográfico, o controle epistemológico e de mentes. A situação colonial impede o colonizado que ele tenha liberdade política, de suas tradições religiosas e filosóficas, de se locomover e impõe a este a visão de mundo do colonizador. Portanto a colonização seria uma situação de violência totalizante.

Podemos dizer que a desagregação cultural e destruição de saberes e visões ancestrais de mundo realizadas com a catequização e conversão  de africanos e a demonização, criminalização e marginalização de religiões de matrizes africanas e indígenas, é, e foi fundamental para que a colonização (e consequentemente o capitalismo) tivesse sucesso. 

O racismo religioso hoje

Vemos uma sistematização desses ataques racistas a Terreiros, e uma nova face do racismo religioso com a fusão do tráfico e de religiões neopentecostais.

Antigamente, como é relatado por nossos mais velhos, nossos ancestrais não podiam cultuar as vastas religiões que traziam consigo, pois era tratado como “algo que não é de Deus” e podemos dizer que pouca coisa mudou ao longo das décadas. Hoje, as religiões de matriz africana estão no topo de religiões mais discriminadas no nosso país. Estima-se que a cada 15 horas aconteceu um crime de violência e preconceito religioso contra povos de terreiros. Nos últimos anos o número de denúncias de agressões a povos de terreiro mais que duplicou, mostrando que a liberdade de culto nunca foi plena.

No país onde se popularizou a expressão “chuta que é macumba”, e no qual um presidente de extrema direita católico, com uma base eleitoral e parlamentar baseada no fundamentalismo evangélico, diz ser enviado de um Deus cristão para uma missão, não é de se estranhar que a violência contra povos de terreiros tenha crescido tanto. A tensão da violência racista contra religiões de matriz africana ainda se intensifica com a prosperidade (e lucro) da multinacional Igreja Universal do Reino de Deus, e demais segmentos neopentecostais. 

Vemos uma sistematização desses ataques racistas a Terreiros, e uma nova face do racismo religioso com a fusão do tráfico e de religiões neopentecostais. Casos marcantes têm ocorrido no Rio de Janeiro com a conversão da cúpula do Terceiro Comando Puro (TCP) a uma igreja evangélica, gerando um novo tipo de fundamentalismo religioso. Traficantes formam então o “Bonde de Jesus”, e passam a determinar horário de funcionamento de casas de religião, o que pode ou não pode ser usado nas cerimônias, e tendo casos onde obrigam mães e pais de santo a deixar as comunidades, fechando os templos ou destruindo-os. 

Vale ainda destacar como o racismo religioso se mescla e é alimentado por outras formas que o racismo se reproduz em nosso país, como o racismo institucional, por exemplo. É comum vermos em repartições públicas crucifixos ou símbolos que remetam ao cristianismo, apesar da suposta laicidade do Estado. Assim como na grade curriculares de escolas, na qual as religiões de matriz africana nunca foram tratadas com igualdade. Inclusive, na disciplina de Ensino Religioso onde vemos trabalhadas em aula assuntos que remetem exclusivamente o cristianismo.

São diversas as violências frutos do racismo que abarcam o cotidiano dos povos de terreiro. Desde a invisibilização da religião, a sobreposição judaico-cristã diante da laicidade do Estado, passando por violências como a destruição de oferendas, de templos e agressões aos fiéis. A naturalização dessas violências diante das religiões e dos religiosos de matrizes afro tende a gerar um efeito psicológico de medo e afastamento da religião. Uma violência não tão visível, mas igualmente cruel e que busca que nossas vozes sejam abafadas não nos deixando contar a nossa parte da história, mostrando como é lindo também a cultura que nos remete. 

Intolerância religiosa ou racismo?

chamar apenas de intolerância religiosa não responde a problemática que parte da inferiorização do saber do negro e do indígena, sua animalização, e desumanização, pois sua cultura passa a ser hieraquizada como coisa inferior, irracional e primitiva. 

Um fator importante foi que não escrevemos este texto com base na ótica de que os ataques e violências contra Terreiros e religiões de matriz africanas ou indígenas são atos do que se popularizou chamar de “intolerância religiosa”. Acreditamos que essa expressão por si só não abarca o problema em sua totalidade e raiz. Como deve ter ficado notado, nós utilizamos o termo racismo religioso.

Partimos do entendimento que racismo moderno não pode ser separado do sistema de poder colonial. Colonialismo e racismo se retroalimentam. A expansão colonial europeia, foi também a expansão do modo de produção capitalista sobre o globo. Samir Amin aponta que a expansão européia foi a imposição, por meio das armas e do domínio econômico, de um determinado tipo de civilização, e que essa civilização tem como base angular de sua cultura o eurocentrismo.

A lógica eurocêntrica, racista por natureza, enxerga todos os demais povos não europeus como inferiores, atrasados, sem capacidade cultural, política e racional de construírem sistemas econômicos e filosóficos. De tal forma, estes povos terceiro mundistas (Edward Said) vivem à margem do racional, em um universo onde a emoção e o místico predominam em contraste com o mundo Europeu (judaico-cristão) onde a razão e a ciência exercem o controle. Assim, os povos do Terceiro Mundo seriam atrasados quando comparados com a Europa.

Dizemos isto para apontar que as ações contra Terreiros não são ações individuais, feitas por sujeitos isolados. Mas elas respondem a um sistema de poder estabelecido socialmente no qual existe uma hierarquia entre as raças e suas culturas. De tal modo que chamar apenas de intolerância religiosa não responde a problemática que parte da inferiorização do saber do negro e do indígena, sua animalização, e desumanização, pois sua cultura passa a ser hieraquizada como coisa inferior, irracional e primitiva. 

É portanto necessário chamar as coisas pelo seu nome: Racismo. 

Terreiros como focos de resistência ao pensamento colonial

Destruição de oferendas, templos queimados, pessoas apanhando por estarem seguindo os preceitos de sua religião, e a imposição do medo. Tudo isso mexe com o nosso psicológico e com o cotidiano dos povos de terreiro. Diante dessa crescente violência racista e marginalização de faz cada vez mais necessário um projeto político em defesa dos povos de religião de matriz africana e de nossa ancestralidade. 

No momento que debatemos as táticas para a derrota da extrema direita fascista e colonial, e a construção de um novo projeto de país, a pauta racial precisa estar no centro das discussões. E é impossível falar sobre antirracismo no Brasil sem falar sobre os Terreiros, Orixás e religiões de matriz africana.

Os Terreiros são, além de espaços religiosos, locais de auto organização, resgate da memória e emancipação intelectual de comunidades negras através de saberes e tradições ancestrais. São locais que resistiram ao processo de colonização cultural e mental e que funcionam saberes que confrontam a lógica eurocêntrica da civilização ocidental. Os Terreiros são Quilombos onde o passado nos guia em tempos presentes para um futuro onde impera a lógica coletiva. 

Entendendo os Terreiros como estes espaços emancipadores fica fácil compreender o porque estes locais e as religiões de matrizes africanas e indígenas foram criminalizadas, marginalizadas e vistas como perigosas pelo Estado brasileiro.

Como dissemos acima, a colonização cultural e mental é fundamental para a concretização do processo de colonização e dominação do modo de produção capitalista. 

Era preciso ao mesmo tempo que se domina o corpo negro, marginalizar sua cultura e lhe desumanizar. Antes do chicote e da bala derrubar o corpo negro, é preciso que lhe seja tirado sua alma de humano através da alienação feita pelo racismo. 

É preciso que o negro seja visto como descartável, menos humano, um potencial criminoso, e para tal transformação ocorrer, o ato de afastar o negro de narrativas que valorizem sua cultura, seu passado, sua história, sua beleza, é fundamental.

É preciso antes de derrubar em sangue o corpo negro, matar seu potencial humano. Animalizá-lo, aliená-lo, por fim a sua cultura ancestral, exterminar sua filosofia, acabar com sua religião, não permitir que o negro se torne e se veja como sujeito epistemológico. Esses processos fazem parte daquilo que Abdias Nascimento descreveu como genocídio do negro brasileiro.

Assim a marginalização das religiões de matrizes africanas e a destruição de Terreiros tem esse papel de auxiliar a construção, e manutenção de uma relação de poder racial. Um poder identitário. Um poder branco.

A quem serve o teu antirracismo?

É mais que urgente que as organizações de esquerda abandonem a realidade colonial que as cerca e as molda. E passem a enxergar as epistemologias negras como potência e uma outra possibilidade.

De tal forma que cabe refletir e perguntar a quem serve o silêncio de figuras e lideranças da esquerda sobre a violência racista que os povos de terreiro estão submetidos. Se calar diante de tais agressões é ajudar a inviabilizar nossa condição e nossa luta, e também silenciar nosso grito contra a violência que nós aflige.

Se não podemos falar em construção de um novo Brasil sem acertar as contas com o racismo estrutural e sem um projeto estratégico antirracista. Da mesma forma, não podemos falar desse antirracismo sem a denúncia do racismo religioso e sem enxergar a importância dos Terreiros como lugares de resistência ancestral. Portanto, o silêncio das lideranças brancas progressistas e de esquerda faz coro com o status quo de violência racial que nos aflige.

O Terreiro, por tudo que abordamos nesse texto e pelo seu papel epistemológico, é uma das principais instituições antirracistas do Brasil. Não reconhecer isso é não avançar na luta antirracista. Não levar isto a sério é não avançar na luta antirracista.

Nossas lideranças brancas no combate ao bolsonarismo não serão verdadeiramente antirracistas até que deixem de serem omissas com nossas pautas. Uma esquerda que se silencia diante do racismo está fadada ao fracasso. Uma esquerda que se silencia diante do racismo religioso e da violência sofrida pelos povos de Terreiros, apenas mostra a dinâmica colonial que a rege.

Se é bem verdade que é preciso ampla unidade para derrotar Bolsonaro e a extrema direita. Também é verdade que a forma que a política de morte e genocídio de Bolsonaro não atinge a todos de forma igual ou “unitária”. São corpos negros e indígenas que mais tombam neste governo, são corpos negros e indígenas que tombam fruto do genocídio colonial do Estado brasileiro e de nossa elite racista.

É mais que urgente que as organizações de esquerda abandonem a realidade colonial que as cerca e as molda. E passem a enxergar as epistemologias negras como potência e uma outra possibilidade.

A colonialidade, seus vícios, sua cultura eurocêntrica que nos modela é mortífera, e somente confrontando verdadeiramente estas é possível que se construa um programa verdadeiramente antirracista. Com uma estratégia de emancipação negra, valorizando os espaços de luta antirracista que existem e resistem durante séculos em nosso país.

O futuro é ancestral

Oyá, dona dos ventos, do teto e da aliança. Falar dessa Yabá é trazer força e empoderamento. Oyá movimenta e transmuta o velho e estagnado e nos desafia e impulsiona para o que de novo deve surgir. Conhecida como a energia transformadora da realidade. Xangô é o orixá da justiça, da retidão, da determinação e dono do equilíbrio. Este orixá é considerado o mestre da sabedoria, gerando o poder da política e justiça. 

O casal do epô tem uma importância enorme perante as injustiças, corrupções, falsidades, e deslealdades. A imagem de Oyá e Xangô como provedores e mantenedores da justiça, do equilíbrio e das alianças trazem importantes reflexões e ensinamentos para as lutas antirracistas dos dias atuais. Trazer e retornar a lógica destes Orixás e suas cosmo-percepções tem muito a nos ensinar para lutar, resistir e avançar nos tempos de racismo e intolerância religiosa.

A ancestralidade é a certeza e a fé de que viveremos, lutaremos e venceremos!

Que Oyá e Xangô abençoe nossa caminhada de luta!

Eparrey Oyá, Kaô Kabecilê

*Alexandra Reis é militante do Afronte. Gabriel Santos e Wellignton Porto são militantes da Resistência/PSOL.