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BRASIL

Atenção Primária à Saúde na mira do desmonte: qual SUS queremos?

Previne Brasil, ADAPS e Cuida Mais Brasil: Conheça três mudanças impostas pelo governo Bolsonaro

Lígia Maria, de Brasília, DF*
Marcelo Camargo / Agência Brasil

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, durante o lançamento do programa Cuida Mais Brasil.

A estatística de mortes, a negligência do governo federal e a omissão e conivência de alguns governos estaduais e municipais, o negacionismo científico e o projeto genocida são elementos constituintes das frequentes análises sobre a pandemia. Algo que não é novo, mas merece relevância em meio a esses aspectos, é a escolha do modo de condução da emergência sanitária. Priorizou-se a estratégia biomédica: ênfase nos hospitais de campanha e leitos de UTI; falta de insumos, despreparo técnico, estatísticas crescentes de mortes e eventos adversos, estafa dos profissionais. Embora importante pela gravidade de muitos casos, essa não deveria ter sido a única e prioritária aposta sob a perspectiva de eficiência, eficácia e efetividade na gestão e atenção à saúde.

Relegada ao mais baixo plano – embora seja o mais importante nível de atenção –, foi a Atenção Primária à Saúde (APS), através de sua estratégia prioritária de execução e consolidação, a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que deu conta do que foi mais eficaz na gestão da pandemia: testagem, triagem e monitoramento de casos, monitoramento de contatos e, enfim, a vacinação. As demais atividades da ESF não deram trégua enquanto enfermeiras e médicas de família e comunidade, técnicas e auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde (ACS) e profissionais das equipes multidisciplinares dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASF) se desdobraram sem financiamento adequado, orientações coesas da alta gestão e recursos materiais e humanos suficientes; consultas de pré-natal, crescimento e desenvolvimento, atenção às doenças crônicas e infecciosas e toda queixa da população continuaram sendo atendidas.

Foi nesse cenário que o governo Bolsonaro, junto às várias marionetes que alçou ao cargo de ministro da Saúde, aprofundou o projeto de desmonte do SUS adotando como fronte a APS. Desde 2019, o governo federal investe em enfraquecer o nível de atenção tido como principal porta de entrada da população no acesso à saúde, responsável pela resolução de até 85% das demandas de saúde dos indivíduos, famílias e comunidades, começando por um novo modelo de financiamento.

Previne Brasil

Baseado na captação ponderada, ou seja, no número de pessoas cadastradas em vez da quantidade de habitantes e famílias assistidas, o modelo de financiamento do Previne Brasil tem foco estritamente administrativo, contraditório e oposto aos princípios do SUS; além de não ter aval do controle social, como preveem a Constituição Federal e as Leis Orgânicas da Saúde.

O Previne Brasil é o ensaio de um sistema baseado em cobertura e não em acesso universal à saúde, permeado por contradições: enquanto fornece incentivo financeiro dependente do número de cadastros, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) definha e não alcança os territórios, bem como não há universalização da informatização das unidades de saúde nem implantação definitiva do sistema que opera na APS em todas as localidades, o e-SUS; ao passo que cobra indicadores e metas em 100% para pagamento por desempenho, com incentivo para equipes credenciadas, centenas de equipes em unidades básicas de saúde e unidades de saúde da família estão incompletas – o que é critério para suspensão do repasse e descredenciamento da equipe junto ao Ministério da Saúde (MS), atingindo principalmente territórios remotos e populações vulneráveis.

Além disso, o Previne Brasil direciona os recursos do NASF para os novos critérios de financiamento, desobrigando as gestões estadual e municipal a manter o repasse aos núcleos que garantem a integralidade da atenção à saúde através de equipes multiprofissionais. Por fim, o novo modelo fragiliza a avaliação da qualidade do cuidado na APS, rompendo com o vínculo entre ensino e serviço, uma vez que instituições de ensino sempre foram parceiras essenciais da condução da avaliação da atenção, que embasava o direcionamento dos recursos de forma qualitativa.

A nova forma de financiamento dialoga com a alteração da oferta de serviços na APS, através da mudança na carteira de serviços, que reduz o escopo da APS para um modelo clínico e individual, fazendo desaparecer a dimensão familiar e comunitária através da definição de um rol de procedimentos tido como foco – revelando o modelo assistencial que se deseja resgatar: biomédico, centrado na doença, individualizante e fragmentador, com foco na precificação das necessidades de saúde e na manutenção dos prejuízos biopsicossociais dos acometimentos. A alteração na carteira de serviços da APS, realizada em 2019, nega a abordagem coletiva e territorial e o planejamento de base populacional, subsidiando as fragilidades do Previne Brasil quanto aos critérios de financiamento. A nova carteira de serviços destitui a integralidade e a multiprofissionalidade, atendo-se à figura do médico como principal agente de solução das demandas de saúde; além de não mencionar a ação dos ACS e, tampouco, a participação social.

A proposta de financiamento do Previne Brasil, somada à nova carteira de serviços, acirra a disputa entre os modelos de saúde, permitindo que largue na frente o modelo biomédico tradicional. Esses foram os primeiros passos do atual governo em um caminho tortuoso que tem como destino a reconfiguração do SUS para a lógica de financiamento privado, desvirtuando os resultados da luta social, objeto de tentativa não só de Bolsonaro, mas de seu antecessor, Michel Temer, e da omissão dos governos de esquerda na última década, que rifaram a saúde pública como moeda de troca na política de conciliação de classes.

A criação da ADAPS

Outro passo à frente nesse caminho é a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária (ADAPS), criada em 2020 como um serviço social autônomo, na forma de pessoa jurídica de direito privado. As competências previstas para a ADAPS são amplas, abrindo espaço para privatização da execução de serviços da APS e para a realização até de ensino, pesquisa e extensão – um impacto frontal na educação para a saúde de cunho social e autônomo. Contratada pelo Ministério da Saúde para executar o programa Médicos pelo Brasil e a gestão da APS, a agência, que em nada contribui para qualquer desenvolvimento positivo no campo da saúde, reforça o novo modelo de financiamento, pois estimula a privatização da gestão e possibilita o contrato de equipes pelo organismo privado, em regime de CLT, na modalidade de cooperativa de pessoa jurídica e por meio de OSs. Isso enfraquecerá ainda mais o papel dos municípios, cujo fortalecimento e autonomia de gestão são marcos no amadurecimento do SUS.

A criação da ADAPS coaduna com a precarização do trabalho e fragilização das relações trabalhistas, uberizando a contratação, principalmente, de médicos, e em consonância com os últimos retrocessos nos direitos dos trabalhadores. Ademais, a Agência se coloca como um meio alternativo de contratação de pessoal, à margem dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, diante do teto estabelecido pela Emenda Constitucional 95. Assim, o governo arranja suas medidas em favorecimento à privatização e ao desmonte do SUS. A criação desse mecanismo foi simultânea à liberação de R$ 10 bilhões dos fundos de reserva aos planos de saúde; logo, a agência poderá funcionar como mediadora da contratação de serviços assistenciais privados, ao passo que recrudesce a privatização da gestão do SUS.

O estatuto da ADAPS foi publicado no final de 2021, estabelecendo como ênfase da finalidade da Agência a presença de médicos na APS, o que é ratificado pela estrutura do organismo: conselho deliberativo formado predominantemente por entidades de classe médicas, sem entidades de controle social. Ademais, o documento flexibiliza ainda mais a autonomia da ADAPS diante da prestação de contas e a autoriza a requerer do Ministério da Saúde servidores públicos. O contrato de gestão entre Ministério e ADAPS tem prazo de dois anos e, antes mesmo da vigência, já nos rememora a um caminho obscuro cujos degraus foram gradativamente exibidos pelo caos sanitário – as entidades médicas, corroborando em muitos momentos com o negacionismo científico e o desmonte da saúde pública, posicionam-se na linha de frente da dissolução da saúde universal em favor da mercantilização da vida.

Cuida Mais Brasil

Assim como no ano passado, quando uma das primeiras medidas do governo foi anunciar uma tentativa de privatização direta da APS – derrotada pela mobilização popular –, já nessa primeira semana de 2022 o Ministério da Saúde lança o programa Cuida Mais Brasil, ao qual serão destinados R$ 194 milhões para o incentivo à contratação de médicos pediatras e ginecologistas-obstetras, sob a justificativa do fortalecimento da atenção à saúde de mulheres e crianças.

O papel da APS na execução das políticas nacionais de saúde da criança e de atenção integral à saúde da mulher é muito bem desenvolvido através do trabalho das equipes de saúde da família, com o apoio dos profissionais do NASF. Mediante a necessidade de especialistas, como pediatras e ginecologistas obstetras, a APS segue fluxos de encaminhamento à atenção especializada – sucateada, sofrendo com a falta de profissionais, para onde o governo deveria direcionar profissionais focais ao invés da proposta de desfigurar a Estratégia de Saúde da Família inserindo especialistas para além do previsto na Política Nacional de Atenção Básica. O teor corporativo do Cuida Mais Brasil se omite diante da necessidade de médicas e enfermeiras de família e comunidade e técnicas de enfermagem em diversas localidades para propagandear uma melhoria que simplesmente não existe a partir do programa.

Defender o SUS

O signo de todas essas mudanças implementadas no âmbito da APS é desmontar o SUS a partir de sua coluna vertebral, ferindo cada estrutura a partir do menor financiamento, do enfraquecimento da multiprofissionalidade, da dissolução da lógica territorial e comunitária, do impacto frontalmente negativo nos princípios centrais da saúde brasileira: a universalidade, a integralidade e a equidade, desferindo golpes ainda mais intensos em tudo o que a luta social consolidou como Reforma Sanitária.

Tendo atravessado momentos verdadeiramente apavorantes em razão da pandemia e do projeto de morte de Bolsonaro e da extrema direita ao redor do mundo, vemo-nos frente a um ano sobremaneira decisório, em que o debate programático é medular. Assim como o secretário de atenção primária da gestão Mandetta proferiu que esse governo estava disposto a criar um “sistema de saúde liberal” e Marcelo Queiroga, atual ministro, afirmou durante o evento de lançamento do Cuida Mais Brasil que “esse governo fará reformas na saúde pública”, devemos afirmar, transformar e consolidar a nossa reforma.

A Reforma Sanitária não se concluiu entre 1986 e 1988, com a autenticidade do SUS através da Constituição Federal; pelo contrário, pouco a pouco se desfigurou pela conciliação de classes e pelas pressões neoliberais presentes desde a “redemocratização”. O movimento pela reforma sanitária, quando resgatado em suas bases, vislumbra uma mudança social radical, olhando, portanto, para as necessidades radicais do povo em todos os âmbitos, não apenas na saúde. Este movimento ainda está em disputa.

A Reforma Sanitária brasileira segue viva, suplicando pelo fôlego de quem ainda se dispõe a construir o campo da saúde coletiva e os serviços de saúde – como trabalhadores e usuários -; de quem entende a manutenção da vida como imperativo para a construção de um sistema que promova saúde em seu mais amplo conceito. Qual SUS a pandemia nos exigiu? Por qual atenção à saúde estamos dispostos a lutar? A resposta virá não só das urnas, mas de todo o caminho a percorrer até lá: combatendo o austericídio, as pressões neoliberais e o negacionismo científico, sem conciliar com quem senta nas mesas de negociação para dar preço à vida dos nossos e delimitar até onde vão os direitos que nos mantêm de pé. Parafraseando algo ao que a internet deu fama: “em 2020 e 2021 o SUS nos protegeu, que tenhamos aprendido a proteger o SUS daqui em diante”.

*Lígia Maria é enfermeira egressa da ESCS-DF.