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BRASIL

Relatores da ONU enviam carta ao governo brasileiro, denunciando violência contra candidatas e parlamentares negras no Brasil

Ana Lúcia Martins, Talíria Petrone e Benny Brioly

Relatores da ONU enviaram uma carta confidencial ao governo brasileiro, no dia 29 de outubro, denunciando a violência política contra deputadas, vereadoras, lideranças e candidatas negras no Brasil. O documento de doze páginas é assinado pelos relatores Tendayi Achiume, Irene Khan, Victor Madrigal-Borloz, Reem Alsalem, Dominique Day e pela presidência do Grupo de Trabalho da ONU sobre Discriminação contra Mulheres e foi obtido pelo UOL, sendo noticiado pelo colunista Jamil Chade.

A carta denuncia esforço para impedir que representantes de alguns grupos, incluindo mulheres afro-brasileiras, tenham acesso e exerçam cargos representativos e de tomada de decisão e mostra preocupação com a situação de opositoras e candidatas negras nas próximas eleições. “Gostaríamos de expressar nossa séria preocupação com o aumento da violência política contra as mulheres afro-brasileiras e, em particular, as mulheres afro-brasileiras transgêneros”, alertaram os signatários da carta.

Entre as vítimas de ataques racistas, sexistas e transfóbicos citadas, estão as vereadoras Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), e Ana Lúcia Martins (PT), de Joinville (SC) e da deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), com as quais os peritos mostram preocupação especial com a segurança, em função de “constantes ameaças racistas, sexistas e transfóbicas, discursos e mensagens de ódio”, como diz a carta. Benny Briolly foi ameaçada ao menos duas vezes, tendo sido obrigada a deixar o país em função dos ataques transfóbicos e ameaças à sua vida, logo após sua eleição. Ana Lúcia, primeira vereadora negra de Joinville, recebeu mensagens de grupos de ódio anunciando que iriam matá-la para “assumir o suplente, que é branco”.

“Discursos de ódio fizeram com que mulheres afro-brasileiras politicamente ativas, e particularmente mulheres afro-brasileiras transgêneros, temessem por sua segurança física, restringissem suas atividades políticas, mudassem de residência, e até mesmo fugissem do Brasil”, denuncia o documento. É o caso da deputada Talíria Petrone, que vive há quase dois anos sob forte esquema de segurança, deixando a residência em Niterói (RJ) e vivendo em endereço desconhecido. “Primeiro, eram ameaças nas redes sociais, depois foram crescendo para ligações para a sede do partido e depois interceptaram um planejamento de assassinato na deep web, assim como intimidações no comitê de campanha. Há um ano, foi descoberto um possível plano de milícias para me executar. Chegaram a um total de 7 denúncias por meio do Disque Denúncia”, afirmou Talíria, em depoimento ao site Poder 360.

O documento dedica atenção especial à vida de mulheres negras transgênero. “Esta forma de violência política contra as mulheres afro-brasileiras e particularmente as mulheres afro-brasileiras transgênero revela o racismo estrutural e institucional difundido na sociedade civil brasileira”, denunciam os relatores. A violência política contra parlamentares transgêneros aumentou, no que parece ser uma reação de grupos de ódio ao crescimento trans nas eleições de 2020, quando foram eleitos 30 parlamentares, sendo 29 mulheres e um homem. Imediatamente, os ataques começaram, tendo atingido parlamentares como Erika Hilton (PSOL), em São Paulo (SP); Duda Salibert (PDT), em Belo Horizonte; Linda Brasil (PSOL), em Aracaju (SE); entre vários outros casos. Um dos mais graves foi o ataque à tiros contra a residência da co-vereadora Carolina Iara, da Bancada Feminista do PSOL, em 27 de janeiro de 2021, e, na sequência, contra a residência de Samara Sosthenes, co-vereadora do Quilombo Periférico, ambas de São Paulo (SP).

Impunidade

O documento cita pesquisa realizada durante as eleições de 2020 na qual 98,5% das candidatas negras relataram ter sofrido pelo menos um tipo de violência política e onde expressaram que não confiam nos mecanismos de reclamação existentes – apenas 30% relataram os incidentes.

Os relatores apontam fracasso em garantir adequadamente a segurança física das mulheres afro-brasileiras e em efetivamente prevenir e remediar as ameaças de morte racistas, sexistas e transfóbicas. De fato, apesar do aumento dos casos e ameaças, as iniciativas de proteção e a identificação aos grupos de ódio ainda caminham lentamente, como mostra o episódio das ameaças à Bancada Negra da Câmara Municipal de Porto Alegre, formada por quatro vereadoras e um vereador, do PSOL, PCdoB e PT. A denúncia das ameaças recebidas e o registro na delegacia especializada não impediram que o autor realizasse uma nova ameaça, no dia 27 de dezembro, em mensagem enviada à Matheus Gomes (PSOL), chegando inclusive a debochar das autoridades e dizer que aguardava a polícia para tomar chimarrão.

Para os relatores, as atuais medidas em vigor para proteger as mulheres defensoras dos direitos humanos se mostram “ineficazes”. “Observamos com preocupação as alegações relativas à falta de clareza, instabilidade e incapacidade do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, especificamente quando se trata de casos de violência política racista, sexista e transfóbica”.

Violência institucional

Além das ação de grupos de ódio e pela internet, o documento cita o assédio por parte de parlamentares e ataques e discursos de ódio “perpetuados e instigados por atores públicos”; o que pode ser entendido como uma referência não somente a ação nas tribunas, como as que ocorreram recentemente nas Câmaras de Vitória (ES) e de Salvador (BA) mas a do próprio presidente ou de ministros e políticos próximos. “É especialmente preocupante que estes casos envolvam discursos de ódio e assédio emanados de autoridades públicas e da aplicação da lei”, diz o documento. “É especialmente preocupante que o padrão de abusos mostre tanto funcionários públicos quanto atores privados usando violência, intimidação, ameaças e assédio para impedir ou limitar a participação política das mulheres afro-brasileiras”, denunciam.

O documento cobra medidas do governo, lembrando sua obrigação permanente “de impedir tais violações tanto por parte de atores públicos quanto privados e de proporcionar reparação às partes afetadas”. E alerta para o que romperia com o “princípio fundamental da não-discriminação do direito internacional dos direitos humanos”.

O texto do colunista do UOL afirma que o documento teria chegado a causar mal-estar dentro do governo brasileiro. Ainda que tenha ocorrido, é difícil acreditar que o documento provoque alguma mudança de rumo na condução do governo Bolsonaro, principal responsável pela disseminação de discursos de ódio desde a campanha eleitoral de 2018 e vizinho do responsável pela execução de Marielle Franco, crime cujo mandante ainda não foi identificado.

Apesar da importância de iniciativas como a do documento da ONU, cada vez mais fica evidente a importância da solidariedade e de ações de defesa dos mandatos e das mulheres negras, como forma de garantir sua atuação política. E, ao mesmo tempo, como discutiu a Coalizão Negra por Direitos, em encontro nacional realizado em dezembro, é necessário estratégias para avançar na eleição de parlamentares negros em 2022, ocupando cada vez mais a política e os espaços de poder, pois “enquanto houver racismo, não haverá democracia”.