A mundialização, de Cristóvão Colombo, Vasco da Gama e Fernão Magalhães até aos nossos dias (parte 2)
Publicado em: 5 de janeiro de 2022
Original publicado em 29 de Dezembro de 2021 em http://www.cadtm.org/A-mundializacao-de-Cristovao-Colombo-Vasco-da-Gama-e-Fernao-Magalhaes-ate-aos?fbclid=IwAR0jNwajEWTIqeNGN-ZY8QoaCeXzqFP4RPjrsxQqX0vNj69v9XLTG03u2fI#segunda_viagem_intercontinental_de_vasco_da_gama_1502
Parte II
A ascensão e o domínio do mundo pela Grã-Bretanha
A Grã-Bretanha junta-se às outras potências europeias na conquista pelo Mundo
No século XVI as principais actividades da Inglaterra fora da Europa eram a pirataria e as viagens de descobrimento tendo em vista o estudo das possibilidades de criar um império colonial. A sua jogada mais ousada foi o apoio real à expedição de Drake (1577-1580), que, com cinco navios e 116 homens, contornou o estreito de Magalhães, capturou e pilhou navios espanhóis carregados de tesouros ao largo da costa chilena e peruana, estabeleceu contactos úteis nas ilhas de especiarias das Molucas, Java, dobrou o cabo da Boa Esperança e passou pela Guiné no seu regresso. [18]
Em finais do século XVI a Grã-Bretanha marca um ponto decisivo para a afirmação definitiva da sua potência marítima ao infligir uma derrota naval à Espanha, ao largo da costa britânica.
A partir desse momento, lança-se à conquista do Novo Mundo e da Ásia. No Novo Mundo, cria as colônias açucareiras das Antilhas e, a partir da década de 1620, participa activamente no tráfico de escravos importados de África. Simultaneamente instala, entre 1607 e 1713, quinze colônias de povoamento na América do Norte, das quais treze acabam por declarar independência, tornando-se os Estados Unidos; as duas restantes mantiveram-se na esfera de influência britânica e viriam a fazer parte do Canadá.
Na Ásia, a coroa britânica adota outra política: em vez de recorrer à criação de colônias de povoamento, instaura um sistema de colônias de exploração, a começar pela Índia. Para isso o Estado britânico oferece protecção à Companhia das Índias Orientais em 1600 (uma associação de mercadores concorrente de outros agrupamentos do mesmo tipo na Grã-Bretanha). Em 1702 a Companhia das Índias Orientais obtêm do Estado o monopólio do comércio e lança-se à conquista das Índias, que acaba vitoriosa na batalha de Plassey, em 1575, o que lhe permite passar a controlar Bengala. Durante pouco mais de dois séculos, a Grã-Bretanha aplica uma política econômica protecionista pura e dura. Após tornar-se a potência económica dominante durante o século XIX, impõe uma política imperialista de livre-cambismo [19]. Por exemplo, impõe a tiro de canhão à China a «liberdade de comércio» a fim de forçar os Chineses a comprarem o ópio indiano e permitirem aos Britânicos adquirir, com os proventos da venda do ópio, o chá chinês, para depois o venderem no mercado europeu.
Entretanto a Grã-Bretanha expande as suas conquistas na Ásia (Birmânia, Malásia), na Australásia (Austrália, Nova Zelândia etc.), na África do Norte (Egipto), no Próximo Oriente, e por aí fora…
Ao nível da África Subsariana, até ao século XIX, o comércio dos escravos constitui o seu interesse dominante. Depois lança-se à conquista.
Na Índia, como noutras partes da Ásia, os Ingleses foram antecedidos pelos Portugueses, que conquistaram pequenos territórios indianos. Aí instalaram entrepostos comerciais e instauraram o terrorismo religioso. É assim que vemos aparecer em Goa em 1560 o tribunal da Inquisição, que se mantém activo até 1812. Em 1567 foram banidas todas as cerimónias hinduístas. Em pouco mais de dois séculos o tribunal da Inquisição fez 16.000 julgamentos em Goa e milhares de indianos pereceram na fogueira.
A conquista da Índia pelos Britânicos
Para se apoderarem da Índias, os Ingleses procuraram sistematicamente aliados entre as classes dominantes locais
Os Britânicos, durante a conquista da Índia, expulsaram os outros concorrentes europeus, holandeses e franceses. Estes tentaram impor-se, mas falharam. A sua derrota em meados do século XVIII, durante a guerra de sete anos que os opôs aos Britânicos, deveu-se principalmente à falta de apoio do Estado francês [20].
Para conseguirem controlar a Índia, os Ingleses procuraram sistematicamente alianças junto das classes dominantes e dos senhores locais. Não hesitaram, quando lhes pareceu necessário, em utilizar a força, como sucedeu na batalha de Plassey, em 1757, ou aquando da violenta repressão da revolta dos Sipais em 1859.
Puseram ao seu serviço as estruturas locais de poder e na maior parte das vezes deixaram os senhores locais no poder, prometendo-lhes a possibilidade de continuarem a ter uma vida de ostentação, ao mesmo tempo que lhes impunham as regras do jogo (não dispunham de poder real face aos Britânicos). Foi mantida e até reforçada a divisão da sociedade em castas, que tem um peso terrível na sociedade indiana até aos dias de hoje. Assim, à divisão da sociedade em classes e ao domínio do sexo masculino sobre as mulheres acresce uma divisão em castas baseada no nascimento.
A divisão da sociedade indiana em castas foi mantida e até reforçada pela Grã-Bretanha. Por via da cobrança de impostos e do comércio desigual entre a Índia e a Grã-Bretanha, o povo indiano contribuiu para o enriquecimento da Grã-Bretanha como país e das suas classes ricas (comerciantes, industriais, pessoal político). Mas os Britânicos não foram os únicos a enriquecer: os banqueiros, os comerciantes, os patrões das manufacturas indianos acumularam igualmente fortunas colossais. Graças a isso a Companhia das Índias Orientais (EIC) e o Estado britânico conseguiram manter durante muito tempo uma dominação que suscitava um profundo repúdio junto da população.
O exemplo da indústria do algodão
Os têxteis de algodão produzidos na Índia tinham uma qualidade inigualável em todo o mundo. Os Britânicos tentaram copiar as técnicas indianas de produção e produzir no país deles algodões de qualidade comparável, mas durante muito tempo o resultado foi medíocre. Sob pressão nomeadamente dos proprietários de manufacturas têxteis britânicas, o governo de Londres proibiu a exportação de tecidos de algodão indianos para os territórios do Império Britânico. Londres proibiu também a Companhia das Índias Orientais de comerciar tecidos de algodão indianos fora do Império. Assim a Grã-Bretanha tentou encerrar todos os pontos de venda dos têxteis indianos. Foi graças a estas medidas que a indústria britânica de algodão conseguiu ser rentável.
Embora actualmente os Britânicos e as outras potências mais industrializadas recorram sistematicamente, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, a acordos comerciais relativos ao direito da propriedade intelectual, para dominarem países em desenvolvimento como a Índia, há pouco menos de três séculos não hesitaram em copiar os métodos de produção e de design dos Indianos, nomeadamente no domínio dos têxteis de algodão [21].
Por outro lado, para aumentarem os seus lucros e serem mais competitivos que a indústria algodoeira indiana, os patrões britânicos das empresas algodoeiras foram levados a introduzir novas técnicas de produção: utilização da máquina a vapor e de nova maquinaria de fiar e tecer. Recorrendo à força, os Britânicos transformaram a Índia a fundo. Enquanto até finais do século XVIII a economia indiana era exportadora de produtos manufacturados de alta qualidade e satisfazia largamente a procura interna, nos séculos XIX e XX foi invadida por produtos manufacturados europeus, em particular britânicos. A Grã-Bretanha proibiu a Índia de exportar os seus produtos manufacturados, forçou a Índia a exportar cada vez mais ópio para a China no século XIX (tal como impôs militarmente à China a compra do ópio indiano) e inundou o mercado indiano de produtos manufaturados britânicos. Em suma, induziu a Índia ao subdesenvolvimento.
A destruição e a apropriação dos bens comunitários
Desde o dealbar do capitalismo que os bens comuns foram sistematicamente postos em causa pela classe capitalista e sujeitos à apropriação privada
Desde o dealbar do capitalismo que os bens comuns foram sistematicamente postos em causa pela classe capitalista e sujeitos à lógica da mercantilização e da apropriação privada. Entre os objetivos dos capitalistas, quando começaram a investir em manufacturas na Europa, há vários séculos: suprimir as fontes vitais de subsistência ao maior número possível de camponeses, que constituíam de longe a maior parte da população, a fim de os obrigar a migrarem para as cidades e aceitarem trabalhar por um salário miserável nas fábricas capitalistas. Entre os objetivos perseguidos nos países dos outros continentes submetidos à conquista das potências europeias: roubar as terras das populações locais, as suas matérias-primas e, portanto, os seus recursos vitais, instalar colonos e obrigar as populações ao trabalho forçado.
Nos séculos XVI a XIX, os diversos países cujas economias foram progressivamente dominadas pelo sistema capitalista viveram um vasto processo de destruição dos bens comuns. Autores como Karl Marx (1818-1883) no livro 1 de O Capital [22], Rosa Luxemburgo (1871-1919) no seu livro A Acumulação do Capital [23], Karl Polanyi (1886-1964) em A Grande Transformação [24], Silvia Federici (1942) em Calibã e a Bruxa [25] trouxeram esse facto à luz. O belo filme de Raoul Peck sobre o jovem Karl Marx [26] começa com imagens muito fortes mostrando um dos múltiplos casos de destruição dos bens comuns: a repressão brutal de pobres que estão a apanhar lenha caída nas florestas do Reno, na Alemanha, e a tomada de posição de Karl Marx em defesa das vítimas de perseguição judicial, por terem exercido um direito colectivo milenar que entrou em contradição com a lógica capitalista. Daniel Bensaïd consagrou-lhe um pequeno livro intitulado Les Dépossédés: Karl Marx, les voleurs de bois et le droit des pauvres [Os Despojados: Karl Marx, os Ladrões de Lenha e o Direito dos Pobres], no qual mostra o processo de destruição dos bens comuns. [27]
Em O Capital, Karl Marx resume certas formas assumidas pela imposição do sistema capitalista na Europa: «O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre.» [O Capital, Livro I, Cap. 24, segundo a já referida tradução de Rubens Enderle]
Pilhagem de terras comunitários, eis um dos procedimentos idílicos da acumulação primitiva capitalista
Ao mesmo tempo que se impunha progressivamente como modo de produção dominante na Europa, o capitalismo estendeu o seu reino ao resto do planeta: «A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista.» [O Capital, Livro I, Cap. 24, secção 6, ibid.]
Notas da parte II
[18] Ver Maddison, 2001, p. 110.
[19] O livre-cambismo abole ou reduz as barreiras tarifárias à troca internacional de mercadorias. É o oposto de proteccionismo. Alguns autores usam também as expressões «livre-troca» e «livre-comércio».
[20] Ver Gunder Frank, 1977, p. 237-238.
[21] Os Holandeses fizeram o mesmo com as técnicas de produção cerâmica chinesas, que copiaram e apresentaram depois como cerâmica, faiança e porcelana azul e branca de Delft.
[22] Karl Marx. 1867. O Capital, livro I. Além de várias edições impressas, portuguesas e brasileiras, estão disponíveis para consulta na rede digital, no Arquivo Marxista na Internet: Caps. I e VII, e Cap. XXIV – A Acumulação Original. Também disponível em linha: O Capital, livro 1, ed. Boitempo, trad. Rubens Enderle (consultado em 19/12/2021), embora faltem nesta edição alguns capítulos.
[23] Rosa Luxemburgo. 1913. A Acumulação do Capital. Fac-símile da ed. Zahar descarregável em linha (consultado em 19/12/2021).
[24] Polanyi, Karl. 1944. Em versão portuguesa: A Grande Transformação. As Origens Políticas e Económicas do Nosso Tempo, Edições 70, Portugal, 2021; A Grande Transformação, as Origens da Nossa Época, ed. Campus, Brasil; descarregável em linha (consultado em 19/12/2021).
[25] Silvia FEDERICI (2004), Calibã e a Bruxa, ed. Orfeu Negro, Portugal, 2020; ed. Tadeu Breda, Brasil, 2017.
[26] Le Jeune Karl Marx (O Jovem Karl Marx) é um filme biográfico franco-germano-belga realizado por Raoul Peck, estreado em sala em 2017.
[27] Daniel Bensaïd, Les dépossédés. Karl Marx, les voleurs de bois et le droit des pauvres, La Fabrique, Paris, 2007, 128 p.
Top 5 da semana
brasil
Prisão de Bolsonaro expõe feridas abertas: choramos os nossos, não os deles
colunistas
O assassinato de Charlie Kirk foi um crime político
brasil
Injustamente demitido pelo Governo Bolsonaro, pude comemorar minha reintegração na semana do julgamento do Golpe
psol
Sonia Meire assume procuradoria da mulher da Câmara Municipal de Aracaju
mundo









