Eu canto aos Palmares
Sem inveja de Virgílio, de Homero
E de Camões
Porque o meu canto
é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!
Há batidos fortes
de bombos e atabaques
em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos…
(Canto dos Palmares, Solano Trindade)
Chegamos ao fim de uma jornada de atividades, especialmente, promovidas em novembro, mês da consciência negra. Nessa ocasião, grupos envolvidos na luta antirracista e contra a desigualdade racial de oportunidades no mercado de trabalho, no sistema educacional, político, social e no universo midiático-cultural, realizaram atividades de diferentes tipos em formatos variados.
Por isso, antes de tudo, parabenizamos a militância negra antirracista, pois somos sabedores do quanto ativistas de tantas entidades se esforçam para promover seus eventos.
Sem dúvida a organização de marchas e atos demandam grande investimento de tempo e recursos para aquisição de cartazes, faixas, carros de som e transporte para subúrbios mais longínquos. Pois, seguramente, as pessoas que vivem nas periferias espalhadas pelo Brasil, sabem que o alto preço do transporte público afeta o orçamento do desempregado e daqueles que sobrevivem distantes do centro, com um ou poucos salários mínimos.
Mas, apesar de todas as dificuldades de recursos para garantir estrutura e aparato, como transporte para que se avancem as mobilizações de rua, palco dos enfrentamentos entre os que tem tudo e os que não tem, foram grandes os feitos e os desejos nesse mês que acabou. Nele presenciamos atividades de caráter educativo, social, religioso, político, cultural, on-line, híbridas e presenciais, alusivas à história de Zumbi dos Palmares e das lutas pelo direito de nós, pretos e pretas, sermos diferentes, mas iguais. Lutarmos pelo direito de ser quem somos, vivermos com dignidade, liberdade e segurança. Por fim, termos uma vida sem medo de (res)existirmos. Uma vez que, guardadas as diferenças existentes entre toda a série de movimentos sociais negros, todos têm em comum um caráter reflexivo, crítico e transformador.
Ao mesmo tempo que parabenizamos as lutas e resistências, negras e populares, trazemos duas frases, que apesar do tempo, continuam atuais. A primeira frase foi dita por Fred Hampton, grande intelectual afro-americano, socialista, líder dos Panteras Negras, assassinado aos 21 anos de idade, em 1969 pelo FBI e pelo departamento de polícia de Chicago, nos EUA: “Nada é mais importante do que parar o fascismo, porque o fascismo vai parar todos nós. ” É importante, também, refletirmos sobre a natureza da vida e sobre a importância das resistências e lutas libertárias, como adverte a celebre frase de Leon Trotsky: “A vida é bela. Que as futuras gerações a livrem de todo mal e opressão, e possam desfrutá-la em toda sua plenitude”. Tal reflexão é necessária para entendermos o momento em que vivemos e para, ao mesmo tempo, nos encorajar a enfrentar os desafios do futuro.
Como nos lembra a Estação Primeira de Mangueira, a história que a história não conta é assinalada pela resistência indígena, negra e popular, ou seja, por trincheiras de lutas sociais e populares; por uma verdadeira democracia, a democracia dos trabalhadores. Logo, é imprescindível entendermos que a construção de uma democracia dos trabalhadores, é parte de um objetivo maior e mais completo, a ser obtido por meio da luta pelo socialismo.
Em qualquer lugar do planeta, a democracia burguesa é a democracia dos privilégios, da intolerância e do ódio. Assim sendo, não podem ser considerados democráticos países como o Brasil e os Estados Unidos, que ostentam algumas das piores distribuições de renda do mundo. Desse modo, a democracia que as elites econômicas nacionais querem é a do luxo acima de tudo, como defendido pela família Bolsonaro e CIA. Ltda, enquanto a maior parte de nosso povo padece sem trabalho, sem comida, sem-terra, sem teto! Aliás, é o contraste entre a maioria miserável e a minoria milionária, com suas mansões luxuosíssimas, tanto em terras brasileiras como em diversos outros recantos do mundo.
A propósito, a democracia que os capitalistas do mundo inteiro defendem é a do tudo para alguns e quase nada para outros. E uma das consequências desastrosas desta lógica, é a escassez de doses da vacina contra a COVID 19, das dificuldades logísticas e da forte desigualdade entre os países. Conforme informações da Organização Mundial de Saúde, 80% dos países africanos não conseguiram cumprir a meta de vacinação. Já as coberturas vacinais de suas populações, nunca foram uma problemática para a União Europeia, Estados Unidos e outras potências imperialistas.
Totalmente submissos às grandes potências capitalistas, Bolsonaro, Sergio Moro e CIA LTDA são farinha do mesmo saco, e a democracia que eles querem é a que liquida com a Petrobras –patrimônio nacional.
Não devemos nos iludir, a democracia das elites é a dos monopólios, nacionais e internacionais, bem como, a democracia onde eles podem lutar contra o povo. Assim, também, a democracia da burguesia é a democracia da exploração sexual, do desmatamento, das queimadas, da poluição, do garimpo ilegal, do trabalho infantil, da escravidão contemporânea – da perpetuação do trabalho escravo no século XXI.
A democracia da burguesia é, ainda, a democracia em que os, brancos continuam recebendo 50% a mais do que negros no Brasil. Logo, nunca houve democracia para os que foram explorados até a última gota de sangue nas senzalas, para os que vivem com medo de tiroteios ou balas perdidas nas favelas. Nesse sentido, a democracia nunca existiu para os que formam o imenso contingente de mortos em ações policiais. De tal forma que as estatísticas mais recentes revelam que negros (pretos e pardos) são oito de cada 10 mortos pela polícia no Brasil.
Por conseguinte, a democracia nunca existiu para os moradores das periferias que cotidianamente vivenciam a realidade de estações de trem, metrô e pontos de ônibus lotados, que são vitimados pela precarização da educação e saúde públicas. Enfim, os que não tem condições materiais, psicológicas e sociais, necessárias para uma sobrevivência digna. Em síntese, a democracia nunca existiu para os que vendem a sua força de trabalho, sendo cada vez mais explorados por este sistema nas periferias do Brasil e no mundo afora.
Uma das consequências da desigualdade racial, existente no país desde o período de escravização, é o privilégio branco – condicionado e, ao mesmo tempo, socialmente naturalizado. Fato este que se deveu, principalmente, à articulação entre os impactos das invasões/ escravizações mentais e físicas decorrentes das colonizações europeias nas Américas. Pois, esse mecanismo garante privilégios aos indivíduos europeus, eurodescendentes (gente de pele branca, nariz fino, cabelos lisos) e exclusões de povos africanos e de seus descendentes (gente de pele preta ou parda, lábios carnudos, cabelos crespos e nariz proeminente) espalhados por todo o globo terrestre.
Sabemos que no Brasil o racismo é um monstro enorme e poderoso. Detentor dos meios de comunicação, produção, polícia, forças armadas, política, educação, saúde, etc. Nesse país, a invisibilidade dos negros e negras nas diversas estruturas de poder nos salta aos olhos.
Somos a maioria da população brasileira, somos o maior país negro fora da África. Não temos nenhum ministro, raríssimos deputados, poucos vereadores, pouquíssimo poder político, levando em consideração o tamanho populacional negro.
Não podemos ficar a reboque das mesas de decisões. Há séculos os três poderes, executivo, legislativo e judiciário, não são representativos da população brasileira, pois são compostos em sua maioria por homens, brancos, ricos e heterossexuais. Portanto, nós negros (pretos e pardos), indígenas, mulheres e LGBTIs, estamos à margem das diversas estruturas de poder.
É fato que o fim da legislação racista, em conjunto com as ações afirmativas, contribui com a formação de uma elite econômica e intelectual negra nos Estados Unidos, sendo paradigmática a eleição de Barack Obama. Mas, é fato que, também lá, a igualdade continua sendo um sonho distante: a crescente desigualdade de renda acelerou com o advento da pandemia de COVID 19. De acordo com o último censo estadunidense, publicado no início de 2020, a desigualdade no país já é a maior dos últimos 50 anos, com 1% das pessoas mais ricas acumulando 35% de toda a riqueza local.
Apesar de os Estados Unidos serem a nação mais rica do mundo, têm os piores índices de pobreza do mundo! E os dados socioeconômicos explicitam a relação estrutural entre capitalismo e racismo: 25% dos negros americanos vivem abaixo da linha de pobreza, o desemprego entre eles é o dobro, a taxa de encarceramento é seis vezes maior. Naquele país, a polícia mata, proporcionalmente, o dobro de negros.
Nesse contexto, é importante informamos aos desavisados que não adianta se iludirem com a democracia burguesa. Uma vez que nosso papel de militantes de esquerda é disputar a consciência social. A fim de conscientizar os trabalhadores de que a conquista da verdadeira democracia, a democracia socialista, será resultante de múltiplas formas de resistências ao sistema capitalista.
Então, contribuir para a organização da classe trabalhadora negra, em um país com o perfil sócio-étnico-racial como o nosso, é fundamental para a concretização de uma política classista verdadeiramente efetiva. Desse modo, incluir demandas e formas de organização antirracistas, em uma sociedade como a brasileira, racialmente injusta e desigual, é fundamental para o fortalecimento da unidade da classe trabalhadora.
Atualmente, enfrentamos tanto em nível estadual, como em nível nacional, uma conjuntura marcada por aquilo que o filósofo e historiador negro Achille Mbembe, conceitua como necropolítica (poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer). Posto que, as políticas de morte, corrupção e mal feitos realizados por presidente Bolsonaro, apelidado como pai dos psicopatas pelo renomado psiquiatra forense, Guido Palomba, penalizam, sobretudo, às parcelas mais vulneráveis da classe trabalhadora. As necropolíticas neoliberais também são executadas pelo PSDB, cujo principal expoente é o governador de São Paulo, João Dória, eleito com o slogan “Bolsodoria”.
Conforme dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Estado de São Paulo conta com a maior população negra (preta e parda) do país em números absolutos: 12,5 milhões de pessoas, o que equivale à população de Angola.
E no que tange as mortes decorrentes da intervenção policial, conforme relatório do Comitê Paulista Pela Prevenção de Homicidios na Adolescência, 77% dos adolescentes de até 14 anos pela Polícia Militar de São Paulo entre 2015 e 2020 são negros. Como também aponta que São Paulo é um dos estados onde a polícia mais mata negros, pobres e periféricos. Aqui o risco de uma pessoa negra ser morta em uma ocorrência policial é três vezes maior do que o risco de uma outra raça/cor. Os dados para este relatório foram coletados junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, através de sua Coordenadoria de análise e planejamento.
À face do exposto, não podemos ficar a reboque das mesas de decisões. E da mesma forma que foi muito importante vermos a camarada Sônia Bone Guajajara como vice na chapa encabeçada por Guilherme Boulos na disputa pela presidência da República, entendemos a relevância de outras lideranças de minorias sociais estigmatizadas e discriminadas despontarem. Assim, será muito significativo, podermos contar com a presença de Silvio Almeida, um dos nossos principais intelectuais e ativistas negros, como vice na chapa do PSOL que concorrerá ao governo do Estado de São Paulo.
Nesse sentido, é possível afirmar que os versos contundentes do rapper Nego Preto NP traduzem bem o clamor social por mudanças efetivas na esfera política: “Não se deve mais fazer política sem nós! Para que toda a causa, as pautas, os problemas, ganhem mais espaço. Para que a gente possa crescer como uma comunidade. Para que tudo isso que merece respeito, realmente ganhe mais respeito! ”
Por fim, torna-se necessário retomarmos o famoso jargão popular: já estamos cansados de só carregar o piano. Da mesma forma, reafirmamos a questão enunciada no título desse artigo: “Somos resistência e viemos para tocar nosso tambor! ”
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