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TEORIA

Atuação parlamentar no século XXI: De onde partimos?

Primeiro texto da série sobre a atuação revolucionária no parlamento

Glória Trogo e Vinícius Zaparoli

Reflexões a partir da leitura de O partido comunista e o parlamentarismo, tese da Terceira Internacional (leia a tese na íntegra)

O parlamento é produto do desenvolvimento histórico. Não é possível abolir o parlamento burguês antes de se ter força o suficiente. Apenas sendo membro do parlamento é possível combater a sociedade burguesa e o parlamentarismo no atual momento histórico. Os mesmos meios que são aplicados pela burguesia para garantir seu domínio também devem ser aplicados pelo proletariado, naturalmente com fins bem diferentes. (…) É preciso combater através da ação no parlamento e ensinar a verdade às massas através dos fatos. As massas atrasadas não podem ser ensinadas pela teoria. Elas precisam de experiência. (…) Como explicitar a verdadeira natureza do parlamento às massas atrasadas enganadas pela burguesia sem entrar nele? Como expor uma manobra parlamentar ou uma atitude de um partido sem estar no parlamento? Se você é marxista, deve reconhecer que a relação entre as classes da sociedade burguesa e a relação entre os partidos estão fortemente conectadas. E repito, como mostrar isso sem entrar no parlamento, rejeitando a atuação parlamentar? A história da Revolução Russa mostra que as massas não teriam sido convencidas por argumentos se não tivessem feito sua própria experiência.

Discurso de Lênin no 2º Congresso da Internacional Comunista, 1920

O que são as teses da III Internacional sobre parlamentarismo ?

O texto O partido comunista e o parlamentarismo é um conjunto de teses que foi aprovado, na forma de resolução, no 2º Congresso da Internacional Comunista, que ocorreu em 1920. O documento buscava estabelecer uma compreensão comum para orientar a atuação parlamentar dos partidos nacionais que estavam construindo a recém-fundada III Internacional, uma organização mundial centralizada, sob a direção dos bolcheviques russos. 

Portanto, as teses, embora sejam resoluções congressuais, têm uma dimensão programática e são uma referência para os marxistas. Além do estudo e da popularização do texto, cabe aos revolucionários do século XXI sua atualização diante de uma realidade distinta daquela do início do século XX. No entanto, essa atualização exige tempo e reflexão, deve ser produto de debates maduros e não apressados. Convém lembrar que os próprios bolcheviques demoraram alguns anos para refletir e elaborar sobre atuação parlamentar revolucionária e eles eram, sem sombra de dúvidas, um grupo de militantes mais capazes e mais completos. O presente artigo não é, portanto, uma proposta de atualização. Ele é tão somente reflexões iniciais para serem discutidas coletivamente.   

O contexto

Para compreender melhor o documento em questão, é necessário contextualizá-lo em dois sentidos. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que as teses foram formuladas no marco de uma ofensiva do comunismo, aberta com a Revolução de Outubro, na qual a tomada do poder era uma possibilidade em vários países da Europa (como Alemanha, Hungria, Itália etc.). Em vários outros países, existiam partidos revolucionários com influência de massas. 

Desse modo, não só as condições objetivas para a revolução socialista estavam colocadas, como também, em alguns países importantes, as condições subjetivas. A preparação política e técnica da insurreição proletária era uma atividade prática do momento. A crise do capitalismo, do regime democrático burguês e a possibilidade de superação do sistema pela revolução socialista eram, ao mesmo tempo, uma perspectiva histórica e um elemento político da realidade concreta.

Em segundo lugar, é preciso conhecer qual era a grande tarefa do 2º congresso da Internacional Comunista, que foi precedido por um crescimento abrupto da organização, produto do deslocamento de muitos partidos e correntes nacionais, impactados com o sucesso dos bolcheviques russos. Muitos grupos e quadros, oriundos do reformismo ou do centrismo, ingressaram nas fileiras da III Internacional e, assim, a direção precisava estabelecer critérios rígidos para não diluir o programa e a estratégia da organização que estava sendo criada. Entra também nesse cenário de delimitação as Condições de admissão dos partidos na Internacional Comunista (texto conhecido como “21 Condições”).

Questões para a atualização da teses 

Diante do exposto anteriormente, acreditamos que uma das chaves para atualizar hoje em dia as teses é verificar quais os elementos são estruturais, quais correspondem à estratégia marxista de superação da democracia burguesa e de destruição do Estado, e quais são conjunturais, ou seja, quais refletem a dinâmica do momento da luta de classes no início do século XX. Em outros termos, por um lado, em que pontos as orientações das teses estão relacionadas à época histórica imperialista e, portanto, permanecem válidas. E, por outro, em quais aspectos as teses estão vinculadas à realidade do momento em que foram elaboradas e, consequentemente, precisam de revisão. 

Ademais, é fundamental respondermos se a crítica feita pelo próprio Lênin às Teses sobre a Estrutura, os Métodos e a Ação dos Partidos Comunistas, aprovadas no 3º congresso da Internacional Comunista em 1921, também cabe às teses sobre parlamentarismo. Lênin afirmou em 1922 que a resolução do ano anterior era muito ligada à experiência bolchevique na Rússia e, portanto, não levava em consideração as especificidades de cada país.

A estrutura do texto das teses

As teses são divididas em três partes. A primeira, escrita por Trotski e intitulada “A Nova Época e o Novo Parlamentarismo”, pode ser entendida enquanto os “considerandos” da resolução, nos quais está contida a visão de mundo da Internacional Comunista, sua compreensão da época histórica aberta com as guerras imperialistas e a vitória da Revolução Russa, bem como das transformações impostas por essa nova realidade na atuação parlamentar dos revolucionários.

A segunda parte, escrita por Lenin e Bukharin, é o início daquilo que podemos entender como os “resolves” das teses. Intitulada “O Comunismo, a Luta Pela Ditadura do Proletariado e Pela Utilização do Parlamento Burguês”, ela aponta qual é a estratégia que os revolucionários devem ter em relação ao parlamento antes e depois da tomada do poder. Essa parte é, por sua vez, separada em três: I) o parlamento enquanto instituição burguesa, que deve ser destruída e superada pela democracia operária; II) a relação entre a atuação parlamentar e a intervenção extraparlamentar; III) a crítica ao antiparlamentarismo e, principalmente, as condições para participar das eleições, do parlamento e para se fazer o boicote a ambos. 

Por fim, a terceira parte das teses, o final dos “resolves”, também escrita por Lenin e Bukharin e intitulada “O parlamentarismo revolucionário”, trata mais precisamente das medidas políticas que devem ser tomadas para garantir uma intervenção comunista no parlamento burguês.    

Os pontos teórico-programáticos que passaram pela prova da história

Alguns pontos, entre os quais estão as principais conclusões teórico-programáticas do texto de 1920, estão relacionados a uma compreensão marxista sobre o Estado burguês. A história do século XX confirmou a falência política das teorias gradualistas e dos projetos que apostaram na revolução pela via da maioria parlamentar ou no uso dos mecanismos do Estado burguês como um fim, como uma estratégia em si mesma, e não como um meio para destruição do Estado. Podemos sintetizar esses pontos em: o caráter de classe do parlamento e a estratégia dos revolucionários no parlamento. 

Além disso, há pontos que tratam das medidas políticas que os bolcheviques julgavam necessárias para garantir uma atuação revolucionária no parlamento, como a escolha dos parlamentares, o controle político da direção partidária, as prioridades do partido e a atitude do parlamentar revolucionário. Com certeza, tais questões precisam ser mediadas pela situação política e pelo estágio de construção dos partidos socialistas, porém, em nossa opinião, o sentido geral das orientações presentes nas teses são um guia ainda útil. 

Os argumentos de polêmica com os chamados “antiparlamentaristas por princípio” também trazem reflexões interessantes. A esquerda revolucionária no mundo hoje é marginal e, por conta de tal condição, ainda existem muitos grupos e correntes pressionados por ideologias anarquistas e anarcossindicalistas, ou mesmo propagandistas, que desprezam a atuação política parlamentar. Esse fenômeno não pode ser entendido de modo separado da atuação parlamentar oportunista e reformista, que marca a grande maioria dos partidos e correntes de esquerda. A repulsa ao que parece ser uma máquina de transformar ativistas honestos em burocratas, de domesticar correntes políticas valorosas e de capturar energias para uma lógica puramente institucional é justa. Por isso, nos parece um grande desafio utilizar, como disse Lênin no discurso supracitado, “os mesmos meios aplicados pela burguesia com fins bem diferentes”. 

O exercício de rigidez teórica e de flexibilidade tática, do qual as teses da III são uma excelente expressão, é um desafio de primeira hora. Reconhecer de modo categórico que o parlamento “constitui uma das principais engrenagens do aparelho de Estado da burguesia”, que “o comunismo recusa-se a ver no parlamentarismo uma das formas da sociedade futura”, que “o centro de gravidade de uma organização revolucionária deve estar na luta extraparlamentar” e, na mesma resolução congressual, polemizar duramente com aqueles que secundarizavam a atuação parlamentar, afirmando categoricamente que é preciso “fortalecer todas as posições legais”, é um exemplo do bom uso da teoria, da mente aberta daqueles líderes e do quanto temos a aprender estudando. 

Nos próximos textos, vamos comentar cada uma dessas conclusões, com o objetivo de refletir sobre as elaborações dos revolucionários do começo do século XX a partir da experiência prática de nossa intervenção parlamentar na atualidade.