“O seu inferno é culpa minha – e eu preciso expiá-la”: raça, ressentimento e identitarismo em um debate que não foi
Publicado em: 27 de outubro de 2021
Semana passada fiz parte de um “debate” e as aspas são para identificar radicalmente que aquilo esteve longe disso. Fui o primeiro a falar, na sequência um menino, estudante de medicina, que apresentou dados e a racialização da própria pandemia. Nos dados mostrava quem mais morreu, quem menos foi vacinado, etc. Dando materialidade para a questão racial. Era um menino socialista, por suposto. Muito boa exposição.
O inferno, nesse caso, é literalmente o Outro. É evidentemente que essa operação traz um gozo imediato. E a plateia encontra nisso saída para sua culpa moral.
Por fim então chegou um menino religioso. Sua intenção foi, em primeiro lugar, mobilizar o sentimento de culpa dizendo para a plateia que nos ouvia que ela era conivente com o assassinato da população negra. Nomeando a plateia de branca, o que não era toda a verdade, passou a hostilizá-la trabalhando todo o ressentimento e identificando os males sociais na culpa moral de alguns. O racismo de estrutura simbólica organizada pelo espólio do capitalismo virou, num passe de mágicas, simples dado moral. Perdeu-se de vista o imaginário excludente promovido pela ideia de raça como um dos seus estertores.
Você, cara leitora, deve imaginar o mal-estar que comecei a sentir ao assistir, pela primeira vez, essa operação. Estávamos ali num rito de culpabilização do imediato outro que abria caminhos para o ritual de sofrimento. Quem era o negro? Quem era o branco? Quem sofria mais? Quem era o culpado. Signo da impotência de uma época e símbolo máximo da decadência de horizontes políticos.
Há operações no ressentimento, como aliás mostra Fanon, que pode promover ganhos subjetivos para a luta política. Mas desde que se manifeste como tal e seja superado. Do contrário, o ressentido sai da posição de vencido para encarnar a posição de vítima inocente. É nesse lugar que o ressentido se sente em casa, suas acusações funcionam não para mudar o status de vítima mas para assegurar sua inocência e sua passividade. Suas queixas não são para acabar com a racialização do espaço social, mas para manter aquilo que orienta o sentido de sua prática e pensamento sobre a vida.
Ele ocupa uma posição passiva diante do Outro e obtém um ganho moral pois a ele devemos prestar auxílio e ter um afeto de culpa. Ouvi-lo em sua queixa e nos culpar pois ele não tem responsabilidade nenhuma pela situação. O inferno, nesse caso, é literalmente o Outro. É evidentemente que essa operação traz um gozo imediato. E a plateia encontra nisso saída para sua culpa moral. Principalmente jovens de classe-média numa universidade pública. Porque, sabemos, na vida concreta de milhões de expropriados, essa operação não dá certo.
Quando vi que de ritual de culpabilização a coisa debandava para rituais de sofrimento, dei no pé.
Pelo que soube depois, fui chamado de branco pelo rapaz… E ri.
*Doutor em Filosofia pela UNIFESP
Top 5 da semana

brasil
Prisão de Bolsonaro expõe feridas abertas: choramos os nossos, não os deles
brasil
Injustamente demitido pelo Governo Bolsonaro, pude comemorar minha reintegração na semana do julgamento do Golpe
psol
Sonia Meire assume procuradoria da mulher da Câmara Municipal de Aracaju
mundo
11 de setembro de 1973: a tragédia chilena
mundo