O resgate da dignidade – e também da coragem, vale ressaltar – da militância de esquerda no início das jornadas nacionais da campanha Fora Bolsonaro (sobretudo a partir do avanço de qualidade obtido a partir de 29 de maio deste ano, quando as carreatas foram substituídas pelos atos de rua) destoa miseravelmente do mal-estar instalado após o último dia 2. Passados cerca de quatro meses desde as primeiras manifestações, temos muito pouco ou quase nada a comemorar: o país atingiu a marca vergonhosa de 600 mil mortos pela pandemia; a miséria, a carestia e o desemprego destroem a classe trabalhadora; a agenda neoliberal e imperialista segue sem nenhuma resistência; a destruição ambiental acelerada já provoca danos colaterais devastadores – e, se não fosse suficiente, o núcleo fascista e autoritário do bolsonarismo se mantem vivo e forte, já que suas raízes mais profundas permanecem intocáveis… Cabe, então, uma pergunta incômoda mas necessária: onde foi que erramos?
Não é nossa intenção elaborar aqui uma tese na qual atribui-se aos vencidos a responsabilidade pelo triunfo dos vencedores, e tampouco abandonar a luta – ao contrário, a batalha está apenas começando. Sabemos que a dinâmica da luta de classes depende de múltiplos fatores, reconhecidos em diferentes níveis e cujos resultados sempre apresentam elementos mutáveis e imponderáveis. Então, o saldo para o conjunto da esquerda está longe de ser totalmente negativo, embora os limites que se impõem para a conquista de um novo patamar pareçam ser intransponíveis – pelo menos no curto prazo.
Se observarmos a natureza das forças que deram origem à campanha Fora Bolsonaro, veremos que ocorreu uma convergência natural da militância dos partidos, dos movimentos sociais e dos sindicatos, com orientações por certo variadas, para o campo da esquerda. Podemos dizer que a cabeça, o tronco e os membros da resistência eram constituídos essencialmente por parcelas significativas da militância da Frente Brasil Popular (FBP) e da Frente Povo Sem Medo (PSM), incrementada por importantes centrais sindicais. No entanto, seria um equívoco ignorar que o processo incluiu também as bases militantes dos partidos e movimentos que, embora alheios às duas frentes, inegavelmente se encontram dentro do campo da esquerda – em alguns casos, situados ou autodeclarados à esquerda da maioria das esquerdas. Dessa forma, considerando a “certidão de nascimento” do movimento que foi às ruas, falta com a verdade (para dizer o mínimo) quem tenta omitir que a campanha Fora Bolsonaro nasceu como uma frente única (de esquerda), ainda que carente de uma estratégia mais bem definida.
Sem dúvida, o evento de 29 de maio superou todas as expectativas e proporcionou um novo clima político no país. O fato surpreendente, no entanto, é que a energia social que tomou as ruas não resultava do chamamento das principais lideranças da esquerda do país. Naquela conjuntura, as bases visivelmente se mostravam à frente das lideranças, o que é um problema: embora descompassos dessa natureza sejam comuns, sabemos que o que determina os rumos de uma mobilização política é a firme posição assumida pelos principais partidos e dirigentes. E qual foi a posição?
Por mais paradoxal que possa parecer, o discurso predominante de uma parcela considerável dos líderes da esquerda (os mais reticentes ou vacilantes) mudou da “preservação incondicional da vida dos militantes” para a “necessidade imediata de ampliação do espectro político-ideológico”. Antes mesmo da segunda jornada da campanha contra Bolsonaro se concretizar, já no início do mês de junho passado, defendeu-se a incorporação ao movimento de partidos da direita dita democrática e de legendas dissidentes e aparentemente opositoras ao bolsonarismo) – uma proposta, naquele momento, fortemente rechaçada. Mesmo assim, abriu-se uma possibilidade de ação aos setores mais radicalizados da esquerda, entre eles os que encontravam no “frente-amplismo” uma maneira de colocar em marcha ensaios de movimentação divisionista no âmbito organizativo. Tais movimentações nos preocupavam, já que poderiam ameaçar a unidade do movimento. O tempo revelou que o risco de “esquerdismo” era muito menor do que a desorientação e a desagregação generalizadas provocadas pelo “frente-amplismo”.
Não cabe agora detalhar as circunstâncias e os desfechos dessa polarização. Em síntese, os defensores da manutenção da frente única, ou frente de esquerda, não desprezavam a existência da oposição de direita ao bolsonarismo, mas, por certo, desconfiavam – e com razão – dos resultados práticos de uma eventual unidade nas ruas em relação à chamada “terceira via”. O fundamento da tese encontrava lastro em dois elementos concretos: 1. o evidente conflito programático entre a esquerda e os neofascistas unidos aos neoliberais (portanto, a existência de um “fundo comum estratégico” na agenda privatista e imperialista da extrema direita e do conjunto das forças econômicas, sociais e políticas que constituem a “terceira via”); 2. a absoluta impopularidade de uma terceira alternativa, crescente a partir dos resultados do golpe de 2016 e, sobretudo, desde a ascensão meteórica do bolsonarismo entre as camadas médias e até mesmo entre parcelas expressivas dos setores populares, verificável nas eleições de 2018 e de 2020.
Havia, contudo, fortes pressões para uma eventual ampliação da campanha, em função da visibilidade alcançada pela CPI da Covid e da queda de popularidade do governo Bolsonaro, o que todas as pesquisas eleitorais mostraram. Por outro lado, as mesmas consultas indicaram o crescimento da candidatura de Lula, e, ao mesmo tempo, a inviabilidade dos candidatos da “terceira via” – e talvez esses sejam os fatos mais importantes para se entender boa parte dos problemas que surgiram. Bolsonaro passou a articular motociatas em diferentes regiões do país; tratava-se de uma preparação para o 7 de setembro (e a esquerda não conseguiu visualizar com nitidez a estratégia do fascista). Quanto à “terceira via”, vislumbrou na campanha Fora Bolsonaro não apenas uma oportunidade de resgatar um mínimo de prestígio popular, mas, especialmente, a possibilidade de minimizar a força eleitoral de Lula, tendo em vista que a incorporação e o apoio dos direitistas “democráticos” aos atos estava desde o início condicionada à afirmação do “verde e amarelo” em detrimento do “vermelho” que, desde o 29 de maio, vinha tingindo as ruas nas jornadas nacionais, seja nos grandes centros urbanos, seja nas cidades do interior (e neste caso, parte considerável da esquerda também se mostrou incapaz de compreender todas as consequências dessa movimentação).
Os resultados dessa combinação de lances oportunistas dos adversários e equívocos de interpretação e decisão entre nós são conhecidos: desmobilização no 7 de setembro, desmoralização no 12 de setembro e estagnação no 2 de outubro, sobretudo em Brasília e São Paulo. Todavia, ao negarem o chamado “nem Lula, nem Bolsonaro” no dia 12, e vaiarem Ciro Gomes no dia 2, as bases militantes da esquerda revelaram o crescimento de uma verdade: o nível de tolerância à política de conciliação de classes está diminuindo. Mas, talvez, essa tendência seja ainda mais forte no conjunto das principais lideranças da própria direita (extrema ou “democrática”) – basta analisar o engajamento do núcleo neofascista nas redes sociais, a correlação de forças no Congresso (no que se refere ao impeachment e à agenda neoliberal) e a atuação cada vez mais virulenta da mídia corporativa e dos candidatos da “terceira via” em relação a Lula e à esquerda de uma forma geral. Mais do que isso: a cada semana, Bolsonaro se afirma como a única via para o grande capital (local e imperialista), o que indica consequências ainda mais desastrosas para o futuro próximo.
Acreditamos que a preocupante conjuntura deveria levar a esquerda repensar o nível de unidade que pretende firmar de agora em diante. O camelo não passou no buraco da agulha… Quando será que a ficha vai cair? O calendário eleitoral avança e, assim, os conflitos dentro da esquerda tendem a ficar mais acirrados, repetindo velhos vícios de disputa fratricida, na qual a busca por hegemonia fica geralmente circunscrita ao eleitorado já “convertido” – insuficiente, como sabemos, para garantir sequer a eleição de Lula, quanto mais uma ampliação da esquerda no Congresso. Sem o real comprometimento em torno de um programa mínimo e comum, de caráter estratégico, que combine mobilização social robusta (capaz de aglutinar o proletariado dos setores mais estratégicos e as camadas populares mais precarizadas), plataforma política que aponte para reformas estruturais e divisão coerente e consequente de terrenos e tarefas, a campanha Fora Bolsonaro não conseguirá dar um novo salto qualitativo, isto é, não logrará a formação de um movimento de massas aguerrido que transforme a luta pela eleição de Lula no principal vetor de reorganização da luta de classes no país.
Lamentamos que essa perspectiva esteja muito longe de se concretizar. Para realizá-la, seria necessária uma capacidade de articulação e diálogo inédita na história da esquerda brasileira, além de um trabalho de base intensivo. A não ser que surjam novos fatos capazes de reconfigurar a situação confortável das classes dominantes diante das dezenas de milhões de brasileiros que sofrem calados, estamos diante de uma terrível emboscada – e a única saída viável de curto prazo é um contra-ataque unificado da esquerda, com o que resta de suas forças. A classe trabalhadora precisa de um novo estado de espírito, mas sem a atuação concreta do PT e, especialmente, de Lula, dificilmente conseguirá expulsar Bolsonaro do poder.
*Christian Tadeu Gilioti é professor do IFSP, Coordenador de Base do SINASEFE-SP e membro da Frente de Lutas das Trabalhadoras e Trabalhadores do Noroeste Paulista (FLTTN).
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