Defensor radical das ideias da chamada escola austríaca do neoliberalismo e do anarcocapitalismo, o economista Javier Milei é a nova cara da extrema-direita argentina, alcançando cerca de 13,6% dos votos em Buenos Aires nas últimas PASO (Elecciones Primarias, Abiertas y Obligatorias). Nessa modalidade, se definem basicamente duas coisas: quais partidos estarão habilitados para se apresentar nas eleições nacionais, e as respectivas listas de candidatos. Nas PASO 2021, a lista Libertad Avanza, liderada por Milei, ficou como terceira força política nacional depois do Juntos por el Cambio, ou JxC (direita neoliberal tradicional), e o Frente de Todos (atual coalizão no poder, de orientação kirchnerista). Milei, como pré-candidato a deputado de Caba (Ciudad Autónoma de Buenos Aires) obteve quase 300 mil votos; e por sua vez, o pré-candidato a deputado nacional José Luis Espert (também economista, e um dos candidatos da extrema-direita à Presidência nas últimas eleições nacionais) tirou o quinto lugar, com quase 5% dos votos na província de Buenos Aires.
O que mais chamou a atenção dos analistas é que votaram em Milei, até então um personagem caricato e subestimado na política, não apenas setores de classes médias e altas: também obteve significativa votação em bairros e localidades pobres e periféricas, como a Villa 31. Arrogante e polemista, Milei ganhou espaço político defendendo participando de programas de televisão e defendendo medidas como a extinção do Banco Central, a legalização da venda de órgãos (sempre mantendo, entretanto, ferrenha posição contra o aborto seguro, contra a “ideologia de gênero” etc.), embora se diga favorável à legalização das drogas e da prostituição, não seguindo uma agenda conservadora tão estrita na medida em que esta se choca com os princípios do anarcocapitalismo de Murray Rothbard.
O êxito de Milei deixou atônitos os quadros do JxC, coalizão que Milei ainda não abandonou, mas que sinaliza uma ruptura próxima. Mesmo durante o processo eleitoral, observamos que importantes nomes do JxC, como Maria Eugênia Vidal, ex-governadora da Província de Buenos Aires, elogiavam Milei e buscavam aproximar-se politicamente dele, por consequencia afastando-se de outros setores dentro dessa frente de direita, como os radicalistas da UCR (Unión Cívica Radical), que ele considera “socialistas” e mesmo setores do PRO (partido de Macri), que ele classifica como “pombos” (dizendo que estaria apenas ao lado dos “falcões” do PRO).
Entre as muitas coincidências com o bolsonarismo, Milei também realizou sua campanha “anti-política”, pretensamente outsider, basicamente nas redes socais, mobilizando uma base fanatizada, negacionista, anti-peronista, movida por sentimentos de ódio e ressentimento social, homofobia, misoginia e racismo, muitas vezes acompanhado da nostalgia da ditadura militar ou do final do século XIX, momento considerado, para Milei, o auge da “Argentina potência”.
Diferentemente de Bolsonaro, entretanto, Milei tem passagem pelo mundo empresarial, tendo trabalhado no HSBC e na Máima AFJP (administradora de fundos de pensão e jubilação). Foi a partir de 2014 que Milei, já conhecido por suas concorridas aulas de economia austríaca (as quais ele organizava como mega-eventos, sempre com financiamento empresarial), passou a participar assiduamente de programas de rádio e televisão. Sua personalidade excêntrica o tornou uma figura bastante midiática. Em 2020, foi uma das figuras mais reconhecidas nas marchas anti-quarentena e contra o governo de Alberto Fernández, as quais promoviam queima de máscaras e classificavam o governo como uma ditadura imposta através do “comunavírus” e do “marxismo cultural”, disseminando o termo “infectadura”.
Milei também ganhou fama com ataques machistas a jornalistas mulheres, como quando foi denunciado pela jornalista Teresa Frías em junho de 2018 por violência de gênero quando esta fez uma pergunta sobre a teoria keynesiana e Milei a chamou de “burra”. Em 2019, Milei investigado por vínculos com o narcotraficante Federico “Fred” Machado, por delitos de encobrimento e associação ilícita com fins de financiamento de campanha. Na lista de acusações, também figuram queixas de plágio: em sua coluna de opinião no jornal El Cronista, Milei utilizou fragmentos de textos de intelectuais da escola austríaca sem citar nem atribuir autoria; ao que Milei respondeu dizendo que tratava-se de “divulgação científica”.
O contato de Milei com Eduardo Bolsonaro é estreito: horas antes de apresentar sua candidatura em uma praça em San Telmo, o filho do presidente realizou uma vídeo-chamada para estimular e parabenizar o aliado argentino. No dia das eleições, antes mesmo de divulgados os resultados totais oficiais, o chanceler informal do Brasil publicou uma comemoração em seu perfil no Twitter. Quando da suspensão da partida pela Conmebol entre Brasil e Argentina, no dia 06 de setembro de 2021 (dia seguinte ao lançamento da candidatura de Milei), Bolsonaro aproveitou o tema para fazer propaganda do político.
“Não vim para guiar cordeiros, vim para despertar leões e os leões estão despertando. Este é o primeiro passo para uma Argentina potência”, afirmou em seu discurso de vitória, no dia 13 de setembro de 2021, na sede do hotel de luxo Grand View, em Balvanera. Em suas redes sociais, postou uma foto de um leão com um texto religioso: “Se o leão ruge, quem não temerá? Se fala Jeová, o Senhor, quem não profetizará? – Amó 3:8”. É interessante notar que a analogia com leões e cordeiros foi feita inicialmente por Mussolini, quem afirmou certa feita que era preferível “viver um dia como leão do que 100 anos como ovelhas” e foi repetida por Bolsonaro em um vídeo postado em suas redes em junho de 2020.
O fenômeno eleitoral de Javier Milei acende um alerta para um possível crescimento eleitoral da extrema-direita no país vizinho, onde existe um processo de reorganização das direitas desde 2015, com uma forte atuação de fundações, think-tanks neoliberais, canais de Youtube, espaço na mídia tradicional e a bênção da direita neoliberal tradicional, a qual torna-se responsável por naturalizar o discurso fascista no cenário político nacional. As possíveis consequências desse processo são hoje conhecidas pelos brasileiros.
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