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BRASIL

25 anos sem Renato Russo: o ativismo político na obra de um roqueiro brasileiro

Romulo Mattos*, do Rio de Janeiro, RJ

Em depoimento registrado no livro Memórias de um Legionário, o guitarrista da Legião Urbana, Dado Villa-Lobos, não economiza ao falar sobre a importância do cantor da banda, Renato Russo, para a geração do rock dos anos 1980. O instrumentista compara a relevância do vocalista para os seus colegas roqueiros à de Tom Jobim para a turma da bossa nova e da MPB, nas décadas de 1950 e 1960. E se apropria da canção “Gilbertos”, de Gilberto Gil sobre o seu mestre João Gilberto, para tratar de seu parceiro de banda, transportando a sua letra para o contexto do rock oitentista: “Aparece a cada cem anos um/ E a cada vinte e cinco um aprendiz”. Embora para os espíritos conservadores esse paralelo estabelecido por Dado Villa-Lobos pareça heresia, trata-se de duas das mais marcantes gerações brasileiras na música popular – e ninguém intelectualmente amadurecido aceitaria a validade de hierarquias impostas na arte e na cultura.

Se a inusitada comparação aparece no desfecho do mencionado livro, esse é iniciado com a lembrança do guitarrista sobre a morte de Renato Russo, ocorrida a 11 de outubro de 1996. Dado Villa-Lobos recorda que recebeu essa notícia por telefone, às 2h15 da madrugada, o que o deixou “atordoado”, apesar de ter tomado consciência do precário estado de saúde do seu parceiro musical, quando se despediu dele, poucos dias antes. O músico também citou o grande destaque dado ao falecimento do cantor na edição daquele dia do Jornal Nacional, o programa de maior audiência da Rede Globo. Para convencer a jornalista Lilian Witte Fibe quanto à legitimidade de fazer daquela edição do telejornal um especial sobre a vida e a morte de Renato Russo, William Bonner ameaçou cantar a quilométrica letra de “Faroeste caboclo”, explicitando, de forma inusitada, a importância da Legião Urbana para a cultura popular brasileira. Dado Villa-Lobos também citou o caminho percorrido até o funeral, em que ouviu as músicas do recém-lançado disco da banda, A tempestade, por meio dos aparelhos de rádios instalados nos carros parados nos sinais de trânsito. E, por fim, aludiu à multidão de fãs à porta do cemitério do Caju, no Rio de Janeiro, com flores e violões; isso dava ao ambiente uma forte dose de emoção.

Por que 25 anos depois essas histórias ainda prendem a nossa atenção, como comprovam as diversas matérias que tomaram conta da internet? Elas se relacionam com o líder da banda de rock mais popular da história do país, que vendeu mais de 15 milhões de discos. Mas convém não reduzir a discussão a termos quantitativos. Se as suas letras abordam o amor, a amizade e a política com qualidade poética, as melodias elaboradas juntamente com Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá facilitaram a sua assimilação pelos brasileiros. A Legião Urbana esteve na linha de frente da renovação musical e cultural durante a redemocratização política, além de ter sido a maior responsável pela consolidação do circuito do rock nos anos 1980, quando o gênero deixou de ser maldito e se tornou valorizado pelas gravadoras. O grupo que se apresentava em boates ou danceterias, com o seu crescente sucesso, tocou em ginásios e, no seu auge, em estádios de futebol.

Em contraste com o cenário musical atual, a Legião Urbana era uma banda de rock de massas que se ocupava fortemente da matéria política. Hoje parece impensável que, poucas décadas atrás, o grande público brasileiro consumisse canções que criticavam: o machismo (“A dança”); os sistemas prisional e escolar, mordazmente comparados (“O Reggae”); o militarismo ou a guerra (“Soldados”, “Plantas debaixo do aquário” e “A canção do senhor da guerra”) e os elementos mais iníquos da ditadura militar (“Que país é esse”, “Faroeste Caboclo”, “1965” e “La Maison Dieu”); o imperialismo e a sociedade de consumo (“Geração Coca-cola”); a naturalização da violência no mundo moderno, as falhas humanas refletidas na Justiça e a alienação cultural gerada pela televisão (“Badder-Meinhoff Blues”); a burocratização do acesso aos direitos sociais (“Metrópole”); e os governos da direita na Nova República (“Teatro dos Vampiros”, “Metal contra as Nuvens” e “Perfeição”). Não obstante, ao comprar os discos do grupo brasiliense, os fãs entravam em contato com letras que: defendem a luta histórica da classe trabalhadora, sem esquecer a questão ambiental (“Fábrica”); tratam da temática gay (“Soldados”, “Daniel na Cova dos Leões” e “Meninos e meninas”); e realizam protestos políticos de forma não panfletária (“Tempo perdido” e “Índios”). Finalmente, esses muitos ouvintes podiam ter contato com trechos da “Internacional Comunista”, misturada subliminarmente a “Será”, na abertura do disco Dois, de 1986.

Vale enfatizar que o cantor odiava os militares. Com os amigos da faculdade nos bares de Brasília, ele xingava a ditadura ao microfone – certamente, uma atitude perigosa. E, além de ter sofrido fisicamente com a repressão do período, viu músicas de sua autoria vetadas pela burocracia dos governos militares, na primeira metade dos anos 1980. O apetite crítico de Renato Russo em relação à ditadura também foi manifestado em músicas gravadas por outras bandas, como “Veraneio Vascaíno”, que aparece no disco de estreia do Capital Inicial, em 1986. E ainda há um contundente depoimento seu ao programa MTV no Ar, de 1994: “E tem gente aqui no Brasil que está com esses papos de ‘ah, não, os militares têm de voltar’. (…) Será que esse povo esqueceu? (…) Será que nós esquecemos (…) como é ruim não ter liberdade?”. No mesmo programa, referiu-se ao fascismo, sobre o qual acreditava ser necessário debater:

“Eu acho que a grande imprensa está vacilando, tá pisando na bola e tem grandes jornais aqui do Rio de Janeiro dando página inteira pra fascista e pra careca (…). É nazista em tudo quanto é canto. (…) Quer dizer, são sexistas, são intolerantes, são idiotas, e o problema é que são idiotas com ideologia. E, de repente, eu, como pessoa, como indivíduo e como artista, pra manter (…) a minha consciência tranquila, seria legal dar uma resposta a isso. (…) Eu acho que o importante é a informação. E a base do fascismo, e do preconceito e da intolerância, é a falta de informação”.

Vinte e cinco anos depois da morte de Renato Russo, as suas letras e declarações públicas se mostram importantes para entender e criticar o Brasil sob o fascismo e o neoliberalismo, e esse é o principal motivo de a sua figura ter sido intensamente homenageada – apesar de vivermos um contexto de banalização das efemérides, favorecida pelo tempo acelerado da produção e do consumo de notícias na internet.

*Romulo Mattos é historiador.