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BRASIL

A revisão do plano diretor de São Luís/MA: Lutas, tensões e resistências no território

Luiz Eduardo Neves dos Santos*, de São Luís, MA
Reprodução/Lechenet.com

O Plano Diretor no Brasil é caracterizado como um relevante instrumento jurídico de planejamento urbano e ordenamento territorial, principalmente após a promulgação do Estatuto da Cidade em 2001. Nele se encontra a possibilidade de promover aos habitantes das cidades uma maior participação nos processos decisórios sobre o urbano, ensejando assim uma busca por melhorias na qualidade de vida e combate às injustiças socioespaciais.

Mas as experiências participativas em torno da criação da legislação urbana, capitaneadas pelo Estado, têm apresentado limitações e, muitas vezes, não se atrelam aos interesses dos oprimidos e marginalizados citadinos, já que ainda consistem em priorizar a cidade do mercado, os interesses privados, impedindo a construção e o fortalecimento de uma esfera pública que responda às demandas da coletividade, diluindo, nas palavras de Milton Santos, “a ideia de cidadania, formando um consumidor, que aceita ser chamado de usuário”. 

Desta forma, o espaço político se divide em cidadãos e não-cidadãos, separados pela forma como se dão os usos no território, que por sua vez, permite ou proíbe o acesso ao conjunto de objetos presentes na cidade, transformada em mercadoria, o que limita, anestesia e ajuda a impedir práticas socioespaciais por melhores condições de vida, no que Jean Baudrillard chamou de “alienação urbana”.

Pelo exposto, é sabido que espaços semiperiféricos como o Brasil e seus territórios marginais tem se tornado objeto para acumulação de capital, o MATOPIBA e suas dinâmicas, os grandes empreendimentos portuários, ferroviários e turísticos no litoral nordestino e a exploração mineral desenfreada na Amazônia são alguns exemplos de como a força hegemônica de absorção do capital para a acumulação tem alterado drasticamente territórios, causando despossessões, destruindo biomas e explorando mão-de-obra. Tudo isso comandado pelo poder da fusão Capital-Estado, que se sobressai sobre todo o resto e como pode ser observado na atual revisão do Plano Diretor de São Luís, capital do Estado do Maranhão.

No território ludovicense, o Plano Diretor tem se apresentado como um instrumento política urbana desde os anos 1970 até os dias de hoje, sempre dependente da conjuntura e dos projetos do Estado Nacional. Há em curso a revisão do Plano Diretor, aprovado através da Lei nº 4.669/06; e uma questão tem chamado bastante atenção: a ampliação substancial da zona urbana do município, proposta incluída no texto em 2018 a partir das discussões no Conselho da Cidade (CONCID) e, que serve, prioritariamente, para ampliar um território que será destinado às atividades econômicas industriais, com previsão para a instalação de mais um terminal portuário de investimentos bilionários no golfão maranhense, chamado de Porto São Luís, uma reserva territorial localizada na zona rural que poderá ser usada para objetivos de acumulação e reestruturação produtiva em múltiplas escalas, dinamizando e aquecendo também o mercado imobiliário local.

Como já foi amplamente noticiado, denunciado e debatido em reuniões do CONCID, em textos jornalísticos e acadêmicos, por pesquisadores, intelectuais, professores, movimentos sociais e moradores da zona rural, a proposta do Plano Diretor de São Luís não se mostra favorável aos interesses da maior parte dos habitantes da cidade, e como já dissemos em outras ocasiões, o principal objetivo é transformar 41% da zona rural em área urbana, justamente para favorecer os interesses exógenos de mercado, com tácito apoio das elites política e econômica local. Por isso, com o apoio do Governo do Estado, em agosto 2019 houve expulsões de moradores e a destruição de 22 casas na comunidade Cajueiro, num processo ágil, duvidoso e violento de reintegração de posse de um território que faz parte de um assentamento de 600 hectares titulado pelo Instituto de Terras do Maranhão (ITERMA) em 1998, mas que desde 2014 vem sendo objeto de investida da Empresa TUP Porto São Luís. Segundo os atingidos, nunca houve pagamento de indenizações e, ao que tudo indica, a empresa vem se apropriando de uma área de grilagem.

A pedra fundamental do Porto São Luís foi lançada em março de 2018, fruto de uma parceria entre as empresas transnacionais China Communications Construction Company, Ltda (maior estatal de construção civil da China), a paulista WPR Topografia e Projetos (Grupo WTorre) e a mineira Lyon Engenharia. Um empreendimento que ocuparia/ocupará cerca de 2 milhões de metros quadrados, em Parnauaçu, mas também nas proximidades da Vila Maranhão e de povoados como Cajueiro, Andirobal, Morro do Egito e Prainha.

 Em julho de 2018 foi criado um canal de publicidade no Youtube do Porto São Luís. De acordo com o primeiro vídeo veiculado pelas empresas, muito bem produzido por sinal, o empreendimento investirá/investiria em sua primeira fase um montante de R$ 800 milhões de reais, criando 2.500 empregos diretos e outros milhares indiretos. No vídeo é possível ver e ouvir as falas dos executivos afirmando que o porto permitirá uma maior aproximação do Brasil com a China, que por sua vez trará tecnologias novas e desenvolvimento para Maranhão e que São Luís será responsável por escoar boa parte da produção de grãos do Centro-Oeste e de partes do Nordeste e do Norte. O presidente da FIEMA, Edilson Baldez, ligado ao ramo da construção civil no Maranhão, também faz uma fala em nome da classe empresarial maranhense, se dizendo honrado e motivado com tais investimentos. 

a proposta do Plano Diretor não contempla novas delimitações das Zonas Especiais de Interesse Social, algo imperdoável para um território municipal que possui mais de 100 mil habitações (32% do total) em condições precárias, fazendo parte do que o IBGE denomina de aglomerados subnormais, unidades domiciliares em sua maioria autoconstruídas com frágeis materiais, sem regularização fundiária em terrenos insalubres, carentes de esgotamento sanitário e coleta de lixo.

É patente ainda na produção audiovisual do Porto São Luís, não somente no primeiro vídeo, mas em outros também, as imagens e o discurso humanizado do compromisso social, de que as empresas estão melhorando a vida dos moradores locais com indenizações e empregos, construção de novas vias de acesso e novas casas. Chama atenção, quase no fim do primeiro vídeo, a fala de Chang Yanbo, Presidente Executivo da CCCC, expressando seus mais sinceros agradecimentos ao Governo do Estado e à Prefeitura de São Luís, o que indica um alinhamento explícito entre a CCCC, que é a maior acionista do empreendimento e os entes municipal e estadual. Por isso, a proposta no Plano Diretor para ampliação da zona urbana, uma promessa de segurança jurídica ao empresariado. Além disso, há também as recentes e ostensivas propagandas para aprovação da proposta, expostas em blogs e outdoors, pelo Secretário Estadual de Indústria e Comércio, Simplício Araújo, a fim de fazer pressão no atual Prefeito de São Luís.

Não bastasse tudo isso, a proposta do Plano Diretor não contempla novas delimitações das Zonas Especiais de Interesse Social, algo imperdoável para um território municipal que possui mais de 100 mil habitações (32% do total) em condições precárias, fazendo parte do que o IBGE denomina de aglomerados subnormais, unidades domiciliares em sua maioria autoconstruídas com frágeis materiais, sem regularização fundiária em terrenos insalubres, carentes de esgotamento sanitário e coleta de lixo. E ainda existem questões sensíveis na proposta relacionadas a uma nova delimitação de dunas, ocupadas irregularmente desde 2007 em uma área de grande valorização imobiliária cidade, além de temas ambientais como a divisão e a mudança de vocação do Sítio Santa Eulália, que ainda é reserva florestal pela Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo.

É preciso salientar ainda o papel dos movimentos sociais e dos habitantes da zona rural que não aceitam a imposição de um Plano Diretor que não leva em consideração a manutenção de seus modos de vida. Seu João Germano (seu Joca) é um exemplo desta resistência, ele não aceita sair da sua casa, do seu território, bem como seu irmão Pedro Sírio da Silva. E é bom lembrar que em 2019 houve a assinatura de dois Decretos estaduais autorizando desapropriações na área de Parnauaçu/Cajueiro, anulados pela justiça recentemente. 

Destarte, a proposta do Plano Diretor não conseguiu ser aprovada ainda, ela foi entregue em julho de 2019 à Câmara dos Vereadores pelo então prefeito Edivaldo Holanda Junior, depois de calorosas discussões em audiências públicas promovidas pelo Executivo municipal. A proposta foi submetida no fim de 2019 a mais oito audiências públicas, então promovidas pelo Legislativo, isto somente depois de sofrer pressão dos movimentos sociais, como o papel relevante feito pelo Movimento de Defesa da Ilha (MDI). Somando forças com os movimentos sociais e os moradores da zona rural, o Ministério Público, em 27 de fevereiro de 2020, recomendou aos vereadores, com base no Estatuto da Cidade, que o projeto retornasse à prefeitura porque ele não apresenta estudos técnicos que justifiquem a ampliação da zona urbana, sob pena de ajuizamento. Com a pandemia, o projeto ficou parado no legislativo durante todo o ano de 2020 e as reuniões do CONCID esvaziaram. 

Em virtude dessas questões, o jornal Valor Econômico noticiou recentemente que a CCCC não conseguiu o financiamento de US$ 500 milhões necessários para a construção do condomínio multicargas de São Luís e que colocou à venda os 51% de suas ações. A empresa COSAN, segundo o mesmo jornal, anunciou a compra de 100% do negócio e pretende construir o porto para escoar a produção do ramo da mineração.

Desde a posse do prefeito Eduardo Braide, o tema do Plano Diretor foi apagado. O prefeito nomeou uma servidora de carreira para a presidência do Instituto da Cidade (INCID), a Arquiteta Érica Garreto, algo positivo, já que o órgão é responsável por elaborar a legislação urbana e não deve ceder às pressões do mercado imobiliário. Foi identificado, nesta gestão, que toda a documentação da proposta de revisão do PD não se encontra mais disponível no site do órgão, qual seja as atas das reuniões do CONCID, os mapas e o próprio texto da proposta de lei, além de outro documento importantíssimo, que nunca foi disponibilizado pela prefeitura à sociedade ludovicense, as atas de todas as audiências públicas. Recentemente os vereadores do Coletivo Nós (PT) afirmaram que o projeto se encontra no Executivo, mas não se sabe em que situação. O que se sabe é que no último dia 20 de agosto, o prefeito Eduardo Braide teve uma agenda pública com o presidente da FIEMA Edilson Baldez e com o presidente do SINDUSCON, Fábio Nahuz, que cobraram a aprovação urgente do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento.

Portanto, a proposta de revisão do Plano Diretor, preparada de forma mais cuidadosa pelo governo Municipal tem por objetivo precípuo atuar em favor de empresários e transnacionais com seus volumosos investimentos para a construção de um porto privado ao tentar transformar boa parte de zona rural em zona urbana e atender também os interesses do empresariado local, que em diversas audiências públicas reivindicaram a importância de terem a segurança jurídica para seus negócios, menosprezando a existência das populações locais. 

a proposta de revisão do Plano Diretor, preparada de forma mais cuidadosa pelo governo Municipal tem por objetivo precípuo atuar em favor de empresários e transnacionais com seus volumosos investimentos para a construção de um porto privado ao tentar transformar boa parte de zona rural em zona urbana e atender também os interesses do empresariado local, que em diversas audiências públicas reivindicaram a importância de terem a segurança jurídica para seus negócios, menosprezando a existência das populações locais. 

Os representantes do governo municipal nas audiências públicas em 2019 fizeram questão de apresentar os instrumentos urbanísticos que podem ser colocados em prática para atenuar desigualdades socioespaciais na cidade, a exemplo do IPTU Progressivo no Tempo, Desapropriação por Títulos da Dívida Pública, Direito de Superfície, Gestão Orçamentária Participativa, dentre outros, mas sem nenhuma garantia de que sejam postos em prática, como acontece com o PD vigente, por isso é hora de reforçar tais cobranças.

Com as mudanças nos poderes Executivo e Legislativo em nível municipal no corrente ano, não sabemos ainda a real situação da proposta, já que o prefeito ainda não se manifestou publicamente. Mas é urgente que a prefeitura retome os diálogos com a sociedade, realizando uma nova Conferência da Cidade para que seja eleito um novo grupo de conselheiros e se discuta mais profundamente possíveis mudanças na proposta, atendendo aos pedidos do Ministério Público e das reais necessidades das populações atingidas.

É urgente que o Executivo municipal, através do prefeito Eduardo Braide, se posicione em relação à proposta do Plano Diretor, esclarecendo à sociedade quais pontos podem ser melhorados e como vai agir antes de enviar novamente o projeto à Câmara dos Vereadores. Se não fizer isto, se permanecer em silêncio estará dando anuência a uma lei que expõe em seu conteúdo a cidade como mercadoria, reforçando desigualdades e comprometendo a questão ambiental no município.

É preciso denunciar e estar atento às práticas do poder público (Estado e Município) que age em conjunto com os interesses privados. O processo de revisão do Plano Diretor atual deve se aproximar, antes de tudo, da ideia política de “bem-estar comum”, expressão que Michael Hardt e Antônio Negri usam para definir as possibilidades que a metrópole e seus habitantes oferecem no atual momento histórico, a de ser um espaço do comum e do encontro com o outro, o lugar da comunicação e da cooperação, pois a política da metrópole deve ser a da organização dos encontros e isto requer que se descubra de que maneira transformar, tanto quanto possível, encontros conflitantes em encontros prazerosos e produtivos. 

Que o Plano Diretor de São Luís seja uma ferramenta, não a única, que nos ajude participar das decisões da cidade e vivenciá-la de forma a nos sentirmos incluídos, não através do consumismo, mas, sobretudo, pelo sentimento de pertencimento, que se realiza no lugar, próprio do acontecer solidário e da práxis, na rica dimensão do cotidiano.

*Geógrafo, Professor Adjunto II da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Diretor do ANDES-SN na Regional Nordeste I, Membro do Movimento de Defesa da Ilha e da Resistência PSOL/MA.

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