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CULTURA

Piedade: o ciclo da vida que resiste

Lucas Ribeiro Scaldaferri, de Porto Alegre, RS

Josué de Castro utilizou o caranguejo para explicar a pobreza e a miséria do Recife da primeira metade do século XX. Ao contrário das análises hegemônicas da época que apontavam no determinismo e na mestiçagem a culpa das nossas mazelas, o pernambucano mostrava como a pobreza era um projeto, um ciclo onde a intenção dos donos do poder era manter os de baixo atolados na lama. Mas do mangue também se tirava o sustento e o de comer.

Claudio Assis, em seu filme “Piedade”, nos apresenta o drama de uma família e a resistência ao “ciclo do tubarão”. Uma constelação de grandes artistas como Fernanda Montenegro (Dona Carminha), Irandhir Santos (Omar), Matheus Nachtergaele (Aurélio) e Cauã Reymond (Sandro) se entregou em atuações de rasgar carne e alma, junto com uma crítica profunda do modelo econômico neodesenvolvimentista e os grandes empreendimentos que prometem riqueza à custa da natureza, incluindo o bicho homem.

A praia de Piedade, famosa pelos ataques de tubarão, é o cenário principal onde uma família, chefiada por Dona Carminha, dona de um bar que resiste aos desastres ambientais e ao assédio financeiro que visa a expulsão dos locais por uma empresa petrolífera. O mar de onde se tira o sustento e local de diversão se vê escasso de peixes e mariscos e impedido de banho com perigo de ataques de tubarão.

O processo de alienação entre seres humanos e natureza é expressa em três atos muito fortes. Em uma delas Dona Carminha explica que os mariscos ali servidos já não são pegos no mar em frente ao bar. Na outra Omar explica ao seu sobrinho que ele nunca mais poderá entrar no mar por causa dos ataques de tubarão. O desejo de aniversário da criança, entrar no mar, é materializado por um simulador virtual dado pela empresa predatória que permite ao boyzinho se encontrar com os peixes.

Os impactos do “progresso” sobre aquele território eram de destruição do meio ambiente e das relações sociais. Os corais, responsáveis pelo equilíbrio marinho, precisam dar lugar para os gafanhotos de metais, uma praga de apetite insaciável. São ações humanas que trazem o tubarão para beira da costa e para o ataque aos seres humanos. Nesse sentido, o “ciclo do tubarão” é fruto de um projeto político-econômico destrutivo e que tem como algoz não o peixe, mas sim as grandes corporações e governos.

Mas a Recife não se entrega. Ela sempre está lá, pronta como uma noiva a espera do casamento com a revolução e a resistência popular, como nos ensinou o sociólogo Francisco de Oliveira. E Assis traz a cidade rebelde, das mobilizações do Cais de Estelita, que não se sujeita às vontades do capital.

No centro da capital pernambucana, um cinema pornô com o sugestivo nome “Mercy”, com suas cabines privê e com muito cheiro de sexo, é onde encontramos os outros subalternos que resistem. Numa sociedade cada vez mais plastificada e virtualizada o contato entre corpos numa explosão de orgasmos é transgressão. O Mercy torna-se palco para belas cenas de sexo entre Sandro e Aurélio.

É o filho de Sandro, Marlon Brando, que junto com seus amigos inicia uma série de denúncias públicas e ataques virtuais contra a empresa. O tubarão torna-se símbolo da resistência popular e o animal passa a ser considerado uma vítima assim como os moradores de Piedade.

“Piedade” é mais um belo filme de Assis (“Amarelo Manga”, “Baixio das Bestas” e “A Febre do Rato”) e da escola pernambucana de cinema. Chega em boa hora nos cinemas nacionais, não só porque novos ataques de tubarão na praia de Jaboatão dos Guararapes voltaram ao noticiário nacional, mas por ser urgente a necessidade de debatermos o que queremos como progresso. A pandemia do novo coronavírus mostrou que precisamos repensar as relações entre seres humanos e natureza.

 

PIEDADE (Brasil, 2019)
Direção: Cláudio Assis
Sinopse*: Praia da Saudade, Piedade. O bar Paraíso do Mar é reconhecido por sua deliciosa moqueca de cação e cerveja sempre gelada. O lugar, construído por Humberto Bezerra há mais de 30 anos, hoje é gerido por sua viúva Dona Carminha e pelo filho mais velho, Omar. O cotidiano dessa família será abalado com a chegada de Aurélio, um executivo de São Paulo que irá trazer à tona segredos há muito tempo escondidos e que, inusitadamente, conectam a família de Dona Carminha a Sandro, dono de um cinema pornô do outro lado da cidade.
Roteiro: Hilton Lacerda, Anna Francisco, Dillner Gomes
Elenco: Matheus Nachtergaele, Fernanda Montenegro, Cauã Reymond, Irandhir Santos, Gabriel Leone, Mariana Ruggiero, Francisco de Assis Moraes, Denise Weinberg
*Dados e sinopse de https://cinemacomrapadura.com.br.
Filme está sendo exibido em salas de cinema e em sessões online.