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O caçador que virou caça: conexões e tensões entre a guerra global à corrupção e o ascenso protofascista

O bonapartismo de toga, insuflado pela guerra global à corrupção, regou as raízes do protofascismo e o protegeu durante seu crescimento, mas agora está sendo devorado pela própria criatura

Sérgio Moro e Jair Bolsonaro desfilam juntos na manifestação do 7 de setembro de 2019. Imagem: Folha.

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Os governos protofascistas na Guatemala, El Salvador e Honduras, que foram alçados ao poder pelo bonapartismo de toga insuflado pela guerra global à corrupção (Global War on Corruption – GWC), se voltaram contra aqueles que os sustentavam e expulsaram dos seus países as agências da GWC +

 

Fissuras entre lavajatistas e fascistas expressam tensões entre frações burguesas de diferentes escalas, territórios e funções. De modo geral, a direção hegemônica da guerra global à corrupção é dos gigantescos conglomerados transnacionais, que buscam remover as proteções estatais de mega monopólios nacionais +

 

Mesmo com tensões, a GWC unifica as tendências burguesas ao ter como objetivos centrais a garantia da previsibilidade para o capital e o convencimento do senso comum de que só o mercado pode salvar o Estado da corrupção +

 

Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”, disse Bolsonaro respondendo às acusações de que ele queria acabar com a operação. Se afastando do lavajatismo, Bolsonaro tentou reviver o mito de que na ditadura não tinha corrupção. Essa separação entre Bolsonaro e Moro gerou, como analisamos em “Os bandos armados e a pata lavajatista”, fissuras na própria família lavajatista, pois parte dela resolveu ficar com Bolsonaro. Esses lavajatistas bolsonaristas tem como novo messias o juiz da Lava Jato carioca Marcelo Bretas, que mesmo depois da fala do presidente sobre o fim da operação, saiu em sua defesa.

Lembremos que desde o início da operação, em 2014, lavajatistas e fascistas formaram um bloco, sob a direção dos primeiros, para derrubar Dilma e promover ataques à classe trabalhadora mais brutais do que os que o PT tentava negociar. Mas, em grande parte como consequência da desestabilização gerada pela atuação bonapartista dos togados, os fascistas conseguiram vencer as eleições de 2018, e assim tomaram dos lavajatistas a direção do bloco. A balança da aliança se alterou, mas o bloco permaneceu unificado, o que é simbolizado pela submissão de Moro a Bolsonaro ao aceitar o Ministério da Justiça (MJ). No desenvolvimento dessa disputa pela direção do bloco, o protofascismo – proto, pois embora o objetivo dele seja a implantação de um Estado fascista, ainda não teve êxito – agiu para anular o lavajatismo. Isso se acentuou principalmente quanto mais impossível ficava para os procuradores fingirem cegueira frente às rachadinhas e relações milicianas dos Bolsonaros, o que culminou com a, na prática, demissão de Moro em abril de 2020.

Dois meses depois da saída de Moro, 4 dos 7 procuradores da Lava Jato de Brasília se desligaram da força tarefa. A demissão coletiva foi um protesto contra duas ações do governo: 1) a solicitação de informações sigilosas da força tarefa de Curitiba realizada pela coordenadora da Lava Jato em Brasília Lindora Araújo, nomeada pelo Procurador Geral da República (PGR) Augusto Aras e, portanto, fechada com Bolsonaro; 2) a reabertura, por Aras, da investigação sobre as acusações de corrupção contra colegas de Moro. Três meses depois desse racha, em setembro, o procurador que coordenava a Lava Jato Deltan Dallagnol abandonou a força tarefa e dias depois foi punido pelo MPF, comandado por Aras, por interferir politicamente em outros poderes através das suas redes sociais. Provavelmente, Dallagnol já sabia que seria punido e por isso decidiu também deixar a força tarefa. Vale lembrar que a mesma acusação de fazer propaganda política nas redes sociais também havia sido feita pelo MPF ao procurador da Lava Jato Carlos Fernando dois anos antes, por conta de ataques dele ao STF no Facebook. E, como revelou a Vaza Jato, Dallagnol agiu junto com o diretor da Transparência Internacional (TI) no Brasil para defender o procurador acusado e impedir que a acusação fosse feita posteriormente contra o próprio Dallagnol. No dia seguinte à saída de Dallagnol, outros 7 procuradores da força tarefa de São Paulo também pediram demissão.

Desde o ano passado brotaram tensões entre a PGR de Bolsonaro e a equipe da Lava Jato. O caso com mais repercussão foi em agosto de 2019, quando Bolsonaro tirou Ricardo Saadi do comando da polícia do Rio de Janeiro porque o delegado estava investigando o bolsonarista Hélio Lopes. Como revelou a Vaza Jato, Saadi era visto com bons olhos por Dallagnol. Em abril de 2019, um procurador já havia pedido demissão para protestar contra o veto da então PGR Raquel Dodge à criação de uma fundação pela Lava Jato – aquela que Dallagnol planejou junto com a TI para administrar os 2,5 bilhões da multa paga pela Petrobras aos EUA que o Departamento de Justiça norte-americano “devolveria”. Pelo mesmo motivo, o coordenador da força-tarefa da Lava Jato que operava dentro da PGR saiu em julho, e 6 procuradores da PGR em setembro.

Tal avanço protofascista contra a casca institucional que ainda resta dos Estados latino-americanos gerou tensões com parte dos próprios togados, pois ele atinge as próprias agências estatais moldadas e ocupadas pelos aparelhos da guerra global à corrupção. O rompimento de Bolsonaro com Moro e as fissuras dentro da própria Lava Jato simbolizam esse processo.

Cada vez mais consumada a polarização do lavajatismo entre Moro e Bretas, a estratégia de Moro parece ser denunciar o assassinato da Lava Jato por Bolsonaro e assim prometer a refundação da operação nas eleições de 2022. Enquanto isso, como disse Eduardo Pinto, Bolsonaro começa a perseguir Moro com as mesmas armas do caçador que virou caça.

Como discutimos na parte 1, ao promover perseguições jurídico-políticas pelos países da periferia, a chamada guerra global à corrupção (Global War on Corruption – GWC) não desmoralizou apenas os partidos à esquerda, os alvos preferenciais dos juízes, procuradores e policiais formados pela ideologia liberal do capital-imperialismo, mas os sistemas políticos de modo geral. A desestabilização institucional na América Latina, que tem como um dos seus componentes centrais o avanço desse bonapartismo de toga desenvolvido e insuflado pela GWC, abriu espaço para a ascensão de políticos fascistas. Nesse processo, vários quadros do lavajatismo aderiram integralmente à estratégia fascista, como discutiu o episódio sobre a Lawfare do podcast Granma.

Tal avanço protofascista contra a casca institucional que ainda resta dos Estados latino-americanos gerou tensões com parte dos próprios togados, pois ele atinge as próprias agências estatais moldadas e ocupadas pelos aparelhos da guerra global à corrupção. O rompimento de Bolsonaro com Moro e as fissuras dentro da própria Lava Jato simbolizam esse processo. Prevendo isso, o Aparelho Privado de Hegemonia Empresarial (APHE) Global Risk, alinhado à GWC, já se preocupava, em 2017, que políticos “populistas”, que focavam no discurso da anticorrupção, poderiam ascender na esteira dos escândalos da Odebrecht.

Neste texto, analisamos diferentes cenários da Lava Jato na América Latina e observamos que enquanto em alguns contextos o bonapartismo de toga permanece fechado com o protofascismo, outros estão marcados pelo acirramento das tensões entre as duas tendências.

 

Conexões e tensões dos protofascistas com a GWC na América Latina: os casos da Guatemala, Honduras, El Salvador e Peru

Na Guatemala, em Honduras e em El Salvador, foco da guerra global à corrupção da política externa norte-americana, a promoção do discurso anticorrupção abriu caminho para a ascensão de políticos bonapartistas ou fascistas que acabaram se descolando do controle direto dessas agências e entrando em atritos com estas.

Além do caso brasileiro, há outros três processos históricos na América Latina onde o protofascismo subiu ao poder nos ombros do bonapartismo de toga: Guatemala, Honduras e El Salvador. Os três países são categorizados pela geopolítica estadunidense de “triângulo norte”, uma área estratégica para os interesses norte-americanos tanto em questão de defesa, quanto de imigração. Como veremos, a política externa norte-americana investiu pesado na agenda anticorrupção para a região, gestando a formação de entidades irmãs nos três países: a Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (CICIG), a Missão de Apoio Contra a Corrupção e a Imunidade em Honduras (MACCIH) e a Comissão Contra a Impunidade de El Salvador (CICIES). No entanto, a promoção do discurso de combate à corrupção abriu caminho para a ascensão de políticos bonapartistas ou fascistas que acabaram se descolando do controle direto dessas agências e entrando em atritos com estas.

A CICIG, que coordena a GWC na Guatemala, foi a primeira ser fundada, a partir de uma parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006. Um dos juízes que a comandou foi o peruano José Ugaz. Ligado umbilicalmente aos APHEs da GWC, Ugaz foi presidente da TI de 2014 a 2017 e é um dos homenageados de honra do think tank estadunidense Conselho das Américas (AS-COA). Vale notar aqui como a eleição de Ugaz, no ano de lançamento da Operação Lava Jato, iniciou um ciclo de presidências latino-americanas da TI, afinal, isso é mais um indício do deslocamento do centro da guerra global à corrupção para a América Latina.

Já em 2003, Ugaz formulava, junto com Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas do APHE Human Rights Watch, e em conversações com a Embaixada norte-americana, o esqueleto da CICIG. Ela era então projetada como CICIACS, como aponta também o relatório da Open Society. Durante a disputa eleitoral de 2015, a CICIG começou a investigar a candidata Sandra Torres, da Unidade Nacional da Esperança, que em 2007 elegeu Alvaro Colom, marido de Torres, o primeiro presidente à esquerda em meio século no país. No evento do CICIG de 2015 que denunciou a candidata, os apresentadores do CICIG foram Philip Chicola, ex-Embaixador dos EUA no Brasil (2005-2006) e Catalina Soberanis, da direita liberal guatemalteca, ex-integrante da extinta Democracia Cristiana, oposição moderada ao regime militar.

Sob acusações de corrupção, Torres perdeu as eleições de 2015 para Jimmy Morales, o “Bolsonaro guatemalteco”, eleito pela Frente de Convergência Nacional, partido da extrema-direita anti-globalista fundado em 2008 por veteranos da luta contra o comunismo do regime militar guatemalteco (1954-1985), a AVEMILGUA. No entanto, Morales, que se elegeu na onda da caça aos corruptos, expulsou a CICIG e seu representante Iván Velásquez, destacado como um dos principais “caçador de corruptos” pela AS/COA, quando se tornou alvo das suas investigações.

A MACCIH, irmã hondurenha da CICIG, foi fundada dez anos depois, em 2016. Dessa vez através de um convênio com Washington e a Organização dos Estados Americanos (OEA), e não com a ONU. Outro vínculo da MACCIH é com o Democracy Lab, a filial costa-riquenha do APHE estadunidense Atlas Network, conhecido por sua participação no golpe que derrubou Dilma. Como aqui, a agenda anticorrupção serviu como uma das bases para o golpe de Estado que derrubou o governo de Manuel Zelaya em 2009. O Poder Judiciário teve papel protagonista emitindo a acusação contra Zelaya, e ONGs de combate à corrupção também desempenharam um papel importante no golpe. A Asociación para una Sociedad más Justa (ASJ), uma filial hondurenha da TI, foi uma das principais organizações que denunciavam escândalos de corrupção do governo. E foi, logo depois do golpe, a organizadora de encontros entre a Embaixada norte-americana e entidades da sociedade civil hondurenha, onde afirmou que a “crise deveria ser usada como uma oportunidade para reformas” e enfatizou que era contra Zelaya.

Instalada a crise política, Honduras teve eleições em contexto de guerra que não foram reconhecidas por diversos organismos internacionais em 2009, 2013 e 2017, que levaram ao poder o direitista Partido Nacional, impulsionado pelo discurso de caça aos corruptos. O primeiro ato do presidente eleito em 2014, Juan Orlando Hernández, foi a assinatura de um convênio com a Transparência Internacional, costurado pela ASJ, para adequar o país às normas de combate à corrupção. A MACCIH foi fundada dois anos depois como um desenvolvimento desse processo, mas quando ela chegou nos crimes de Hernández, ele decidiu não renovar o convênio em 2019 e, como seu vizinho guatemalteco, também expulsou a entidade.

Em El Salvador, a CICIES foi criada em 2019 pelo empresário Nayib Bukele, eleito presidente nas eleições de 2019 se negando a participar dos debates, discursando no Twitter contra os políticos e os partidos e prometendo acabar com a corrupção e a violência. Nos dez anos que o antecederam, o país foi governado pelo partido de centro-esquerda Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). A FMLN transformou El Salvador no primeiro país do mundo a proibir a mineração em seu território, reestabeleceu relações com a China e tentou, sem conseguir derrotar a direita no Congresso, legalizar parcialmente o aborto – em El Salvador, o abordo é condenado por pena de 30 anos mesmo em casos de estupro. Como desdobramento da Lava Jato, o ex-presidente salvadorenho da FMLN, Maurício Funes (2009-2014), foi condenado à prisão em 2018 por sua campanha supostamente ter sido financiada pela Odebrecht. Funes se exilou na Nicarágua, onde o governo sandinista de Daniel Ortega também enfrenta denúncias de corrupção de organismos da GWC, e deixou para trás uma FMLN desmoralizada, que não fez mais de 13% dos votos nas eleições presidenciais de 2019. Com o ex-presidente salvadorenho do partido de direita Arena Antonio Sacas (2004-2009) também condenado por corrupção, abriu-se espaço para a ascensão de Bukele.

Desde que foi eleito, ele vem conduzindo um processo de fechamento do regime. Em fevereiro de 2020, com o apoio dos militares, ele invadiu o Congresso, onde não tinha nenhum deputado que o apoiasse, ameaçando aplicar o artigo 87 da Constituição salvadorenha para fechar o parlamento caso este não aprovasse os recursos que ele exigia para o combate ao crime organizado. O método, notemos, é o mesmo do bolsonarismo, que evoca o artigo 5º para defender o fechamento do STF. Enquanto ameaçava um golpe de Estado, Bukele ainda disse que estava “amparado pelo direito divino”.

Mas com a explosão da pandemia, Bukele adotou uma tática diferente da de Bolsonaro. Ele destacou a gravidade da pandemia e aproveitou para avançar com medidas autoritárias. Uma delas foi a criação de Centros de Contenção para pessoas acusadas de furar a quarentena. Em março de 2021, o partido de Bukele, Nuevas Ideas, conseguiu conquistar maioria parlamentar nas eleições legislativas, e com isso sua investida contra os outros poderes se acirrou, culminando na demissão dos cinco juízes da Suprema Corte e do Procurador-Geral da República (PGR), Raúl Melara, que investigava a relação de Bukele com gangues. Eles foram demitidos após decidir pela ilegalidade dos Centros de Contenção, que recebem denúncias de abuso policial e falta de água e comida. Os novos juízes foram escoltados à Suprema Corte pelo Diretor Nacional da Polícia, Mauricio Arriaza, acusado de obstruir uma investigação anticorrupção contra o governo de Bukele. O presidente salvadorenho, seguindo os passos de Bolsonaro, aparelhou a Polícia, mas já o ultrapassou e usou essa estrutura para fazer o mesmo com o Judiciário. Buscando legitimar uma investida contra o STF no Brasil, Eduardo Bolsoanro aplaudiu a intervenção de Bukele.

Como esse avanço fascista contra a Suprema Corte foi recebido pelos aparelhos capital-imperialistas da GWC, que tem o Judiciário como a instituição burguesa primordial para a reprodução do capital? Até então, Bukele, como Bolsonaro, identificava os EUA como o principal aliado de El Salvador, e era visto como um aliado importante pelo governo estadunidense: foi elogiado por Trump e sua equipe em encontro em 2019 por auxiliar no combate à imigração, e foi convidado à fazer a fala de encerramento no Fórum de Doha.

É verdade que a reação do capital-imperialismo estadunidense à dissolução do Judiciário salvadorenho simboliza sua política de “um peso, duas medidas”. Em 2002, colocou a prêmio a cabeça do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez quando seu partido expulsou, através do Congresso, os juízes do STF venezuelano que consideraram constitucional a tentativa de golpe, apoiada pelos EUA, contra Chávez. Hoje, a Casa Branca informou que iria se engajar com o governo de Bukele para “encorajar um comportamento mais construtivo”, e não respondeu quando questionada se El Salvador enfrentaria alguma consequência. Ricardo Zúniga, enviado especial do presidente estadunidense Joe Biden para o Triângulo do Norte (Guatemala, El Salvador e Honduras), relatou que teve um “encontro muito cordial” com Bukele para tratar do assunto, a quem disse que “o melhor seria voltar a uma situação condizente com a Constituição”. No entanto, sua maior preocupação é a presença do “poder autoritário” chinês na região, um desafio para as “democracias”.

Mesmo sendo uma reação totalmente diferente à resposta que veríamos caso Bukele fosse um “populista de esquerda”, é perceptível, como em Honduras e na Guatemala, uma tensão. Antony Blinken, o Ministro das Relações Exteriores de Biden, manifestou sua preocupação com a destituição do procurador-geral Raúl Melara, “um parceiro efetivo na luta contra a corrupção e a impunidade”. E vale lembrar que o governo Biden já havia recusado um convite de reunião com Bukele, e o diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, Juan González, já havia comentado, em entrevista com o jornal da oposição salvadorenha El Faro, que Biden tem suas diferenças com Bukele e que “um líder despreparado para combater a corrupção não será aliado dos EUA”. A troca de governo nos EUA gerou uma mudança ao menos na aparência da relação.

Mais relevante para compreender a tensão entre os agentes da GWC e Bukele é a condenação das demissões pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Bukele se elegeu tendo como carro chefe da agenda anticorrupção a promessa de criar, em conjunto com a OEA, uma entidade irmã da CICIG e da MACCIH, a CICIES. A Comissão foi criada logo após sua eleição em 2019, e até março de 2021 estava agindo junto aos ministros de Bukele para impulsionar reformas neoliberais no país. Mesmo próxima dos ministros de Bukele, as parcerias mais sólidas da CICIES parecem ser com a Corte Suprema e com a PGR, como estamos vendo as instituições centrais dos programas da GWC. Tanto é que, depois da investida do governo contra os bonapartistas de toga, a existência da CICIES passou a ser ameaçada pelo novo PGR, que disse que irá revisar os acordos de cooperação com a entidade. Uma deputada do Nuevas Ideas ameaçou expulsar também o Procurador de Direitos Humanos, Apolonio Tobar, após o posicionamento do Procurador contra as demissões.

Como no Brasil, os caçadores de corruptos viraram caça dos protofascistas. Com a MACCIH e a CICIG desativadas e a CICIES em vias de ser também, quadros da GWC na região, Juan González e Ricardo Zúñiga, planejam a criação de uma força-tarefa anticorrupção para a América Central. Na já citada entrevista de González para El Faro, ele avisa que os governos não serão as únicas parcerias do programa, que também buscará cooperações com organizações da sociedade civil.

Por fim, vale observar também a atuação do bonapartismo de toga no Peru, onde a Lava Jato assumiu papel político central na definição dos rumos políticos do país. Um dos cases de sucesso do mural da ILEA – a Escola para juízes, procuradores e policiais latino-americanos dos EUA que analisamos na parte 2 – é o da advogada e congressista peruana Yeni Vilcatoma de la Cruz. Ela é militante do partido direitista Fuerza Popular (FP), herdeiro do legado do ex-ditador neoliberal Alberto Fujimori (1992-2000). A página dos melhores alunos da ILEA se orgulha ao dizer que foi “em função das técnicas e estratégias fornecidas pela escola” que Cruz dirigiu o início das investigações sobre os esquemas de corrupção da Odebrecht em 2014, quando era procuradora do Escritório Anticorrupção do Ministério Público do Peru. Mas foi em 2016, a partir da publicação de um documento do Departamento de Justiça dos EUA que detalhava o financiamento ilegal de campanhas políticas pela Odebrecht, que a operação avançou.

Em 2016, Cruz se elegeu deputada federal e passou a dirigir o apoio parlamentar às investigações sobre os esquemas de corrupção da Odebrecht. Estas levaram à prisão dos cinco presidentes adversários da FP que sucederam Fujimori: Alejandro Toledo do Partido Peru Possible (2001-2006), Alán Garcia do Partido Aprista (2006-2011), Ollanta Humala do Partido Nacionalista (2011-2016), Pedro Pablo Kuczynski, do Partido Peruanos Por el Kambio (2016-2018), e Martín Vizcarra (2018-2020), sem partido. Mas também começaram a investigar a candidata presidencial da FP Keiko Fujimori, chegando a prendê-la preventivamente diversas vezes desde 2018, quando começou a entrar e sair da cadeia de acordo com a disputa de forças no Poder Judiciário.

Um movimento emblemático do avanço do bonapartismo de toga no Peru é a atuação de Cruz para derrubar o então presidente Martín Vizcarra. Ela tentou, em setembro de 2019, mobilizar diretamente o Judiciário alterando a correlação de forças no Tribunal Constitucional ao indicar magistrados sem a aprovação da presidência. Frente a essa tentativa de golpe, Vizcarra decidiu dissolver o Congresso e chamar novas eleições parlamentares. Cruz tentou votar o impeachment de Vizcarra antes do Congresso ser fechado, mas não conseguiu maioria parlamentar, pois os partidos da esquerda, como a maioria Frente Amplio, segunda maior força do Congresso, e também do Nuevo Peru, racha à esquerda da Frente Amplio, apoiaram o fechamento do Congresso e a chamada de novas eleições parlamentares contra a investida bonapartista de toga. Naquele momento, também as Forças Armadas respaldaram Vizcarra. No entanto, depois das eleições parlamentares extraordinárias de 2020, novas provas do envolvimento de Vizcarra no caso Odebrecht surgiram e dessa vez a esquerda liderou um processo de impeachment, que se consumou em novembro de 2020.

Mesmo nesse cenário de desestabilização institucional, 70% do eleitorado peruano foi às urnas nas eleições gerais de 2021 e elegeram como presidente o professor e camponês Pedro Castillo, do partido de esquerda Peru Libre. Vale observar que Castillo conseguiu se apresentar como uma alternativa mesmo com o presidente do seu partido, Vladimir Cerrón, sendo acusado de diversos casos de corrupção. A reação, no entanto, tentou impedir a posse do presidente eleito. De um lado, os militares da reserva pressionaram o comando das FFAA a romper com a institucionalidade. Agora que a vitória de Castillo foi confirmada, o comandante das FFAA renunciou. E o empresariado, organizado na Confederação das Indústrias do Peru (CONFIEP), pressiona o governo para que afaste os quadros mais radicais e abra espaço para os mais moderados.

Junto ao empresariado e aos militares, o bonapartismo de toga também é um agente fundamental da reação, tendo agido para anular as eleições “dentro da legalidade”. Como fez nas eleições de 2016, a FP se negou a reconhecer o resultado eleitoral. Yeni de la Cruz está denunciando crimes na campanha de Castillo e defendendo que as eleições foram roubadas pelos “comunistas terroristas”. Ao mesmo tempo, o procurador da Lava Jato José Domingo Pérez, na direção inversa da de Cruz, pediu novamente a prisão preventiva de Keiko. Essa situação caótica parece mostrar que, como no Brasil, o lavajatismo peruano passa por fissuras.

Para tentar anular o resultado das eleições, a FP teve ao seu lado um pelotão de grandes escritórios de advocacia peruanos. Estes estão articulados à malha de aparatos da rule of law capital-imperialista, como mostram os relatórios do tanque de pensamento francês Leaders League, especializado em análises sobre o mercado da advocacia. O relatório de 2015 não tem pudor em louvar a formação de monopólios no setor, introduzindo o estudo com o título “Globalize-se ou morra tentando”. Nele, é analisada a entrada da estadunidense Baker & McKenzie no mercado peruano através da incorporação, em 2012, de um dos maiores escritórios do país, a Echecopar, empresa que está dirigindo o trabalho da equipe de Fujimori para anular as eleições. Também é destacada a entrada das empresas espanholas através da abertura de filiais ou de fusões. E mesmo nas firmas que ainda permaneciam sob o comando de peruanos, a Leaders League se orgulha ao dizer que “todos os sócios viveram e trabalharam nos EUA, na Inglaterra ou na Espanha”.

Vendo isso, iluminamos mais um dos fios do processo de incorporação do setor de advocacia ao capital-imperialismo e seu papel na reprodução dos imperativos econômicos do mercado capitalista, quer dizer, garantir a livre circulação do capital impedindo nacionalizações e desvalorizar o valor da força de trabalho impedindo direitos trabalhistas. Se for necessário, para isso anula eleições, enterra as liberdades democráticas e assume feições fascistas.

 

Tensões entre o capital transnacional e monopólios locais na GWC

Ao servir para apassivar as organizações populares, estabelecer a rule of law e garantir a previsibilidade necessária ao capital a longo prazo, a GWC tem um caráter essencialmente estratégico, e não imediatista.

As tensões entre bonapartistas de toga e protofascistas tem sua expressão política na oposição entre lavajatismo e bolsonarismo e suas outras variantes latino-americanas. Mas quais são as raízes dessas tensões? Neste tópico, vamos analisar quais tensões burguesas contribuíram para a formação desse quadro político.

Ao analisar a economia política da Lava Jato, a pesquisa de Luís Fernandes traz elementos fundamentais dos clássicos do marxismo pós-Segunda Guerra, que iremos citar neste parágrafo, para pensar como a indústria do compliance é parte do processo de transformações do capital-imperialismo. Identificando essa nova etapa do imperialismo como o “capitalismo tardio”, Mandel argumenta que a 3º revolução industrial da década de 1940, aquela da automação dos processos produtivos e da energia nuclear, engendrou uma concentração e centralização ainda maior dos capitais, o que levou a um aumento correspondente da quantidade de capital necessário para mover indústrias tão gigantescas. Para financiar tamanhos recursos sociais de produção, uma malha de bancos foi forjada, como analisou Magdoff, e nesse processo o capital monetário assumiu o predomínio sobre os outros capitais. E como analisou François Chesnais, os dirigentes banqueiros passaram a financeirizar a própria lógica dos quadros da indústria, através de suas empresas de consultoria que fiscalizam a administração das indústrias. O ponto destacado na revisão de Fernandes que é mais fundamental para nossa reflexão é como, de acordo com a leitura de Baran e Sweezy, esse processo culminou na revolução gerencial do capitalismo, quando os CEOs, executivos e gerentes, que não são necessariamente os principais proprietários do capital, assumiram papel dirigente no capital-imperialismo.

Dessa revisão, Fernandes conclui que a implantação da agenda da anticorrupção atende aos interesses de curto prazo atribuídos ao capital monetário. No entanto, nos parece justamente o contrário: a preocupação com a previsibilidade econômica dos quadros do capital-imperialismo que formulam a agenda da GWC demonstram a sua visão estratégica.

Para refletirmos sobre uma suposta lógica imediatista por trás da GWC, retomamos o conceito de capital-imperialismo de Virgínia Fontes, que sintetiza todos elementos apontados – nova escala de concentração e centralização de capitais, predomínio do capital monetário e separação entre propriedade e gestão (managers) – mas acrescenta um aspecto essencial ao analisar como a revolução gerencial não foi restrita às secretarias empresariais, mas foi implementada também no âmbito das lutas de classes, onde as burguesias, através da expansão gigantesca da sua malha de APHEs, investiu em cooptar e enquadrar toda luta em uma perspectiva gerencial, podando suas reivindicações antisistêmicas para que caibam na institucionalidade burguesa. Como discutimos na parte 3, a GWC nasce em parte como uma reação dos APHEs às lutas populares contra a corrupção empresarial. Ao servir para apassivar as organizações populares, estabelecer a rule of law e garantir a previsibilidade necessária ao capital a longo prazo, a GWC tem um caráter essencialmente estratégico, e não imediatista.

A tensão não parece estar, portanto, na disputa entre a “saúde econômica das empresas a médio e longo prazo”, de um lado, em detrimento do interesse do capital monetário em lucrar no curto prazo, de outro. Oposições entre o capital industrial e o monetário muitas vezes esquecem que os gerentes do capital sabem muito bem que o dinheiro precisa ser aplicado no processo produtivo para se valorizar nas poupanças. Tal esquecimento chega a levar autores do campo marxista, como David Harvey, a oporem uma forma de acumulação baseada no roubo, associada ao capital monetário, a outra baseada na extração de mais-valor, associada ao capital industrial. Como lembrou Fontes, perdem de vista a análise marxiana sobre como as expropriações, quer dizer, a expulsão de camponeses de suas terras ou de operários de suas casas hipotecadas, não são uma forma alternativa de acumulação, mas um mecanismo para obrigar cada vez mais pessoas a venderem sua força de trabalho. Ou seja, elas estimulam a extração de mais-valor, não sendo uma forma de acumulação separada.

Com base nessa reflexão teórica, não nos parece haver uma tensão entre a “lógica de cassino” atribuída ao imediatismo do capital financeiro, causador das crises, e a visão estratégica de longo prazo atribuída ao capital industrial. A explicação de Bratsis sobre existir uma tensão entre transnacionais e monopólios nacionais, tensões de escala influenciadas por configurações regionais, parece mais adequada do que a tese da tensão setorial entre frações financeiras e industriais. O autor argumenta que a agenda anticorrupção internacional foi promovida pela fração mundializada do capital transnacional contra as preferências de frações domésticas. Se burguesias nacionais são coisa de um passado distante, argumenta ele, “os Estados continuam sendo produto de lutas nacionalmente referenciadas”.

Bratsis converge, portanto, com nossa análise sobre a existência de uma burguesia brasileira, mas não de uma “burguesia nacional”, visto que esta foi forjada como, nas palavras de Florestan Fernandes, uma fronteira interna e vanguarda do imperialismo total. Mesmo assim, vínculos dos Estados-nação com interesses locais não foram completamente quebrados, como a relação das grandes construtoras com o governo Lula deixa nítido. E esses vínculos são um problema para o capital transnacional, pois falta a autonomia relativa do Estado para contrariar os interesses locais e garantir a necessária livre concorrência entre as nacionais e estrangeiras. Por isso, ainda segundo Bratsis, quando a queda da União Soviética aumenta o poder do capital transnacional, ele acelera o torno para moldar as estruturas institucionais dos Estados em uma forma que atenda melhor os interesses das frações transnacionais, indo contra preferências locais.

os interesses do capital transnacional se uniram aos da média e grande burguesia brasileira contra o privilegiamento das campeãs nacionais pelo BNDES dos governos do PT, os primeiros exigindo livre mercado e os segundos exigindo o mesmo tratamento dado às megas.

Seguindo a explicação teórica de Bratsis, formulamos a hipótese de que os interesses do capital transnacional se uniram aos da média e grande burguesia brasileira contra o privilegiamento das campeãs nacionais pelo BNDES dos governos do PT, os primeiros exigindo livre mercado e os segundos exigindo o mesmo tratamento dado às megas. A pesquisa de Elaine Bortone, que mostrou como a campanha de Bolsonaro, o ápice do rastejamento subalterno aos Estados Unidos, teve sua base na burguesia comercial de médio porte, é um apontamento nessa direção.

A aliança entre o capital-imperialismo estadunidense e setores médios e grandes da burguesia brasileira já era pensada estrategicamente pela Embaixada norte-americana durante os governos Lula. Em um dos telegramas vazados pela WikiLeaks, a Embaixada vislumbrava uma fissura a ser explorada na tensão em relação ao comércio brasileiro com a China entre as mega exportadoras de commodities, como a JBS e a Vale, que se beneficiavam da aproximação, e os médios e grandes fabricantes, que eram prejudicados pela competição com os produtos industrializados chineses.

Para pensar essa aliança da média burguesia brasileira com a giga burguesia estadunidense, vale lembrar a análise de Poulantzas sobre como as frações médias das burguesias constituíram-se historicamente mais conectadas ao capital transnacional que os monopólios nacionais. No entanto, vale também lembrar que Poulantzas fez essa análise para criticar a estratégia reivindicada por parte dos socialistas europeus de construir uma aliança antimonopolista com frações médias da burguesia. Aqui na América Latina, a tese que o marxismo mais precisa enfrentar é o inverso, ou seja, as estratégias de construir uma aliança com os monopólios nacionais contra o imperialismo, a qual criticamos na sequência.

De forma semelhante a Bratsis mas em outros termos, Boito analisa que “o imperialismo e a fração da burguesia brasileira a ele integrada utilizam politicamente a denúncia de corrupção para destruir a hegemonia que a grande burguesia interna brasileira obteve com os governos do PT”. Como argumentamos, todas frações da burguesia brasileira estão associadas ao capital-imperialismo estadunidense, e portanto, a tensão parece entre escalas mega contra escalas médias e grandes e não entre uma “burguesia interna neodesenvolvimentista”, alinhada a um projeto nacional progressista, contra frações rentistas associadas ao imperialismo.

da mesma forma que o Estado burguês estabelece a igualdade jurídica formal entre patrões e empregados, a agenda anticorrupção opera para colocar em igualdade jurídica formal os próprios burgueses e, assim, privilegiar os grandes monopólios.

Para Boito, enquanto o BNDES seria o representante dessa burguesia interna, o Banco Central operaria os interesses do setor financeiro. Além da crítica que já fizemos à oposição entre as supostas lógica produtivista do capital industrial e a lógica parasitária do capital monetário, vale destacar como a pesquisa de João Moreira sobre o BNDES demonstra, pelo contrário, o entrelaçamento das frações oriundas do capital industrial com o capital financeiro. Outra tese de Boito que Moreira critica é a de que a burguesia interna trunca a possibilidade de atuação internacional dos seus capitais, mostrando, em sua pesquisa empírica, a expansão capital-imperialista dessas burguesias no continente. Como pontua Moreira, o próprio conceito de burguesia interna proposto por Poulantzas tinha como uma das características o entrecruzamento entre capitais autóctones e forâneos – o que, portanto, estimulava sua expansão internacional, e não a truncava. Ao destacar esse entrecruzamento, Poulantzas ressaltava como a burguesia interna não tinha nenhum vínculo com um projeto de autonomia nacional.

Feitas essas ressalvas, posso concordar com a análise de que frações da burguesia estadunidense se uniram com frações da burguesia brasileira contra as campeãs nacionais. De fato parecem haver tensões de escalas, com influências de configurações regionais e de funções setoriais, entre giga empresas transnacionais, especialmente estadunidenses, e mega empresas, também de atuação internacional, dos países capital-imperialistas secundários, “os últimos dos primeiros”, que contam com proteções dos seus Estados de origem contra as gigas para garantir o monopólio sobre seus mercados nacionais.

Poderíamos dizer que, da mesma forma que o Estado burguês estabelece a igualdade jurídica formal entre patrões e empregados, a agenda anticorrupção opera para colocar em igualdade jurídica formal os próprios burgueses e, assim, privilegiar os grandes monopólios. O ponto central do argumento de Bratsis de que a agenda da guerra global à corrupção serve à destruição das megas pelas gigas pode ser entendido, dessa forma, como uma nova etapa no processo de expropriações no capital-imperialismo, onde, como já observava Marx, os próprios capitalistas se expropriam entre si, e mega peixes são engolidos por gigantescos tubarões.

 

Tensões entre globalistas e protofascistas

Embora tenham suas raízes no processo produtivo, as tensões internas da burguesia parecem ser, acima de tudo, resultado de divergências estratégicas entre grupos burgueses que foram forjadas no processo da luta de classes.

Essas tensões estão relacionadas a disputas entre frações da burguesia que, após a crise de 2008, se dividiram entre, de um lado, aquelas que defendem uma estratégia fascista para expropriar toda conquista social da classe trabalhadora e exterminar as suas resistências com um regime centrado na coerção, e de outro lado, aquelas que também trabalham para a retirada de direitos, mas ainda apostam na estratégia que centra no convencimento através do apassivamento das lutas

Essas tensões estão relacionadas a disputas entre frações da burguesia que, após a crise de 2008, se dividiram entre, de um lado, aquelas que defendem uma estratégia fascista para expropriar toda conquista social da classe trabalhadora e exterminar as suas resistências com um regime centrado na coerção, e de outro lado, aquelas que também trabalham para a retirada de direitos, mas ainda apostam na estratégia que centra no convencimento através do apassivamento das lutas da classe trabalhadora e acredita que ao menos alguma aparência democrática do “Estado de Direito” deve ser mantida. Por isso, as pautas de empoderamento feminino, empreendedorismo negro, capitalismo verde, etc., centrais para a estratégia dos APHEs de construir consensos através do apassivamento das lutas populares, são rejeitadas pelos fascistas como “globalismo”.

Claudio Katz, analisando as tensões burguesas na sociedade estadunidense, identifica de um lado as frações mobilizadas na construção da estratégia “globalista”, centrada no consenso, e do outro as frações mobilizadas na construção da estratégia “americanista”, centrada na coerção. Citando a análise de Dierckxsens, Formento e Piqueras, descreve que o primeiro grupo reúne gigantes do comércio, das finanças, da tecnologia e da comunicação, enquanto o segundo setor aglutina os provedores do Pentágono, as petrolíferas, sojeiros e empresas voltadas ao mercado interno. E, citando a análise de Merino, aponta que as duas frações compunham o bloco no poder no governo Trump, mas “os globalistas sintonizam habitualmente com a cúpula do Partido Democrata e os americanistas com o establishment republicano”.

Seguindo a linha do argumento de Bratsis – sobre as tensões entre gigantes transnacionais e mega monopólios que, sob a proteção dos seus Estados, competem com as gigantes – podemos refletir sobre possíveis tensões entre, de um lado, os americanistas e suas articulações ao redor do globo com demais ocidentalistas, como o bolsolavismo, e de outro lado, os globalistas, que mais preocupados com o apassivamento das lutas populares, e não com o extermínio delas, são os principais promotores da GWC. No entanto, ao fazer essa associação entre globalistas e a GWC, não podemos perder de vista que os fascistas partilham parte dos princípios da luta anticorrupção, embora defendam outros métodos para sua aplicação, o que destacaremos neste próximo tópico.

 

Conexões entre a onda conservadora e o capital-imperialismo estadunidense

Mesmo com tensões, a agenda da guerra global à corrupção está nos programas dos fascistas, como na carta da Cúpula que destaca como objetivos a “segurança jurídica ao investidor estrangeiro” e o “choque de segurança a partir da contratação de policiais, promotores e juízes”. Isso nos faz pensar como todas frações burguesas, mesmo que atravessadas por tensões, se unificam ao defender o aprofundamento das políticas neoliberais e para ocupar as instituições com seus quadros “técnicos”, aumentando a capacidade das instituições estatais em garantir a propriedade do capital.

A centralidade da agenda anticorrupção no programa protofascista foi demonstrada pela pesquisa de Rejane Hoeveler. Investigando a reorganização da extrema-direita latino-americana, identificou três eixos da sua articulação: a Cúpula Conservadora das Américas, o Foro por la democracia e a Conferência de Ação Política Conservadora (Conservative Political Action Conference – CPAC). Como levantou a pesquisa da autora, essas redes reúnem vários magistrados do continente, como o promotor gaúcho Leonardo Giardin de Souza, organizador do Despertar da direita; a ex-funcionária da Fiscalia General da Colômbia Maria Cabal Molina; o ex-procurador colombiano Alejandro Ordóñez; e o juiz venezuelano Miguel Ángel Martín, ministro do farsesco Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela em exílio, que Bolsonaro recebeu nos seus primeiros dias de governo.

Todos estes estão afinados com o discurso antiglobalista da extrema direita global, embasada, como observou Benjamin Teitelbaum, no pensamento tradicionalista e ocidentalista. Em sua fala na conferência da Cúpula, Cabal Molina reverenciou Olavo de Carvalho como seu dirigente e exaltou a cooperação que coordenou com o Departamento de Justiça dos EUA. De fato, a procuradora colombiana é um dos elos com o capital-impeiralismo estadunidense: fez formação nos Estados Unidos e, em 2005, como mostram os telegramas vazados pela WikiLeaks, fazia parte da equipe do presidente colombiano Álvaro Uribe que costurava a cooperação com a Embaixada norte-americana para “combater o tráfico de drogas e o terrorismo”.

Outro elo da articulação do bolsonarismo com a direita colombiana é, como observou Hoeveler, a relação de Eduardo Bolsonaro com o ex-procurador Alejandro Ordóñez, outro admirador de Olavo, conhecido por esbravejar contra o marxismo cultural e a ideologia de gênero, e por barrar a lei que legalizava o aborto em casos de estupro. Segundo os relatórios da Embaixada norte-americana em 2009, Ordóñez, quando era Procurador Geral do presidente Álvaro Uribe (2009-2016), perseguiu senadores e vereadores comunistas por acusações de envolvimento com as FARC. Ordóñez caçou o mandato de 331 políticos apenas de 2009 a 2013, sendo 9 senadores, 3 deputados, 288 prefeitos e 31 governadores. Em 2010, A Embaixada era pressionada por ONGs de direitos humanos para interromper a cooperação com Ordóñez, acusado por elas de aparelhar o Judiciário, mas mesmo assim manteve seu programa de assistência.

O Foro por la Democracia, proposto como um anti-Foro de São Paulo, é outra organização da extrema direita analisada pela pesquisa de Hoeveler. Ele realizou um congresso em março de 2019 no Chile para pavimentar o lançamento do Prosul, uma iniciativa anti-UNASUL dos governos da onda conservadora. Uma rápida investigação nos arquivos das Embaixadas norte-americanas já entrelaça vários fios que ligam essa rede aos Estados Unidos.

Participaram do evento APHEs como o think tank argentino Fundación Libertad, que formou vários quadros do governo neoliberal de Mauricio Macri (2015-2019). Em uma reunião da Embaixada norte-americana com ONGs argentinas estava, junto com a filial da TI na Argentina Poder Ciudadano, a Fundación Libertad, manifestando sua preocupação com a falta de transparência do governo de Cristina Kirchner. A Fundación Libertad, mais que um contato da Embaixada, era uma articuladora, organizando reuniões do Embaixador com o empresariado argentino e com outras organizações civis e filantrópicas que contribuem para a coesão social das suas comunidades. O trecho em destaque deixa nítida a preocupação em promover a estabilidade, harmonia e coesão social, que, como analisou a pesquisa ainda no prelo de Diego Paulo sobre o Instituto FHC, são balizas da construção da hegemonia burguesa, de forma análoga, poderíamos acrescentar, ao papel cumprido pela agenda da anticorrupção, da transparência e da ética.

Outro APHE estreitamente articulado ao capital-imperialismo estadunidense presente no Foro foi o venezuelano Centro de Divulgación del Conocimiento Económico para la Libertad (CEDICE). A entidade, uma das principais organizadoras da oposição, é financiado pela National Endowment for Democracy (NED) e é contato frequente da Embaixada.

Já a CPAC é uma iniciativa abertamente organizada por entidades norte-americanas, sendo um congresso realizado nos EUA desde 1974 que ultimamente vem buscando se internacionalizar. Seu organizador é Matt Schlapp, presidente da União Conservadora Americana (American Conservative Union – ACU), ligado aos irmãos Koch.

Mesmo com tensões, a agenda da guerra global à corrupção está nos programas dos fascistas, como na carta da Cúpula que destaca como objetivos a “segurança jurídica ao investidor estrangeiro” e o “choque de segurança a partir da contratação de policiais, promotores e juízes”. Isso nos faz pensar como todas frações burguesas, mesmo que atravessadas por tensões, se unificam ao defender o aprofundamento das políticas neoliberais e para ocupar as instituições com seus quadros “técnicos”, aumentando a capacidade das instituições estatais em garantir a propriedade do capital. De fato, vimos que a GWC é usada em determinados momentos como ferramenta de lutas intra-burguesas. Mas, de modo geral, ela unifica os interesses burgueses ao ter como objetivos centrais a garantia da previsibilidade para o capital e o convencimento do senso comum de que o mercado salva o Estado da corrupção. Como observou a pesquisa de David Renton, as direitas tradicionais e as novas extremas-direitas convergem no essencial.

 

Centralização das tendências burguesas na unidade em torno da rule of law

Por isso, análises como a de Boito, ao mesmo tempo em que capta profundamente a corrupção como uma ideologia para encobrir o caráter de classe do Estado, parece por vezes perder de vista que o centro da estratégia da GWC é remodelar os aparatos estatais. Dizemos isso pois ele analisa que as frações burguesas que usam o discurso anticorrupção para derrubar suas concorrentes “se arriscaram expondo as relações corruptas entre Estado e empresas”, mas “o fazem porque o movimento socialista está em refluxo” e não tem capacidade para mobilizar essas denúncias. Dá a ideia, portanto, que a agenda anticorrupção é apenas uma tática de curto prazo para derrubar adversários, e não uma estratégia de longo prazo para garantir a reprodução do capital.

Como discutimos ao longo da série, a malha de agências estatais e APHEs não arrisca apenas algumas investidas anticorrupção para derrubar determinadas frações burguesas inimigas ou determinados governos vistos como hostis. Ela mergulhou a fundo na disputa sobre o significado da corrupção no senso comum para se contrapor às lutas populares contra a corrupção empresarial, esconder a corrupção empresarial através do foco na corrupção pública, e aprofundar o poder dos judiciários em garantir a propriedade do capital em geral.

Nesse processo, setores burgueses se unificam na promoção da GWC para enfrentar as lutas populares contra a corrupção empresarial, mas tensionam internamente essa unidade na disputa pela direção do bloco burguês. Nessa disputa, as escalas, territórios e funções influenciam a formação de frações, como observamos ao analisar como o giga capital transnacional utiliza a GWC para destruir suas mega concorrentes. Mas, mesmo tendo suas raízes nessas suas bases produtivas, as tendências burguesas que disputam a direção hegemônica não se resumem às suas escalas, territórios e funções. Elas forjam-se no processo político da luta de classes, ou seja, no processo de construção de relações sociais com outras classes e frações. Como Virgínia Fontes argumenta, essas relações sociais são tão materiais quanto a escala, território e função da produção, pois todas fazem parte da totalidade da organização da vida social. É isso que Marx entendia por base material, ao contrário das simplificações que apontam a produção como a base e as relações sociais como a superestrutura. Dessa forma, só podem ser identificadas na análise empírica da luta de classes.

Buscamos apreender essa totalidade investigando as tensões intraburguesas de escalas, com influências de configurações regionais e de funções setoriais, junto com as tensões estratégicas entre globalistas e ocidentalistas forjadas no processo da luta de classes, analisando especificamente os atritos entre Moro e Bolsonaro, CICIG e Morales na Guatemala, MACCIH e Hernández em Honduras e CICIES e Bukele em El Salvador. Como síntese da pesquisa, podemos destacar que o programa da GWC é uma estratégia de longo prazo para garantir a transparência tão necessária à circulação do capital transnacional, e não uma tática imediatista movida pelos interesses de um capital financeiro descolado da produção industrial. Também vimos como o argumento de Bratsis sobre a direção da guerra global à corrupção ser dos gigantescos conglomerados transnacionais, que buscam remover as proteções estatais de mega monopólios nacionais, ajuda a pensar o caso brasileiro. Mas que mesmo havendo tensões entre frações burguesas em relação à GWC – além das disputas entre o capital transnacional e interesses burgueses locais, também debatemos os desentendimentos estratégicos entre defensores das instituições tradicionais burguesas e protofascistas – elas se unificam em torno das pautas fundamentais da agenda anticorrupção, que são a garantia da segurança e previsibilidade dos investimentos privados e o convencimento do senso comum de que só o mercado pode salvar o Estado da corrupção.

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