Há uma crise nas alturas em progresso, tanto das diferentes frações da burguesia umas com as outras, quanto dos diferentes estratos da burocracia estatal entre eles e das diferentes frações da burguesia com a burocracia estatal. O andar de cima está dividido sobre o futuro do governo Bolsonaro, o caráter do presidencialismo na democracia representativa e a política para as eleições de 2022.
Neste primeiro artigo, discutiremos apenas dois temas relacionados a essa crise nas alturas: o fiasco do desfile de blindados em Brasília e a derrota da PEC do voto impresso na Câmara dos Deputados.
A atual crise política envolve tudo e todos do andar de cima. Ela atinge inclusive setores da burocracia estatal vinculados a um ou outro bloco dessas frações burguesas. Parlamentares, juízes e militares tampouco possuem uma voz uníssona no que diz respeito a manutenção da governabilidade de Bolsonaro. Se, por um lado, o Centrão domina hoje os cargos-chave do governo, a começar pela Casa Civil, que tem a sua frente o senador Ciro Nogueira, bem como as presidências da Câmara, com Arthur Lira e do Senado, com Rodrigo Pacheco.
Por outro lado, os quadros do generalato das forças armadas foram defenestrados dos principais postos do governo, depois de levarem uma rasteira do Centrão. Mas, não podemos esquecer que talvez a mais explicita fratura desta divisão na cúpula da burocracia estatal se dê no Judiciário, com o Supremo Tribunal Federal (STF) se colocando na linha de frente da defesa do chamado Estado Democrático de Direito contra os arroubos neofascistas de Bolsonaro.
Essas contradições demonstraram que nos últimos dias e, sobretudo, na terça-feira, 10 de agosto, setores expressivos, portanto, majoritários da classe dominante e da burocracia estatal, o que inclui o alto comando das forças armadas, estão categoricamente contra a intentona golpista de Bolsonaro e a mudança autoritária do regime político.
Fiasco da “tanqueata”, enterro do voto impresso e investigação de Bolsonaro no inquérito das fake news
O início da ruptura da cúpula das forças armadas e dos militares de alta patente com o presidente genocida começou em 30 de março, quando os comandantes do Exército, Edson Pujol, da Marinha, Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, Antônio Carlos Moretti Bermudez, pediram renúncia. Nunca na história deste país, os três comandadas das forças armadas haviam articulado uma renúncia conjunta.
A expressão mais recente desta crise da cúpula das forças armadas com o presidente genocida foi o fiasco do desfile de blindados desta terça-feira, 10 de agosto, em Brasília, que, ao contrário de confirmar a força dos intentos golpistas de Bolsonaro, demonstrou sua fraqueza e desespero diante da divisão do andar de cima, o que inclui a cúpula das forças armadas. Com pouquíssimos carros blindados, alguns esfumaçando como se estivessem pegando fogo e a duração de ínfimos 10 minutos, o evento, em vez de assustar com o fantasma de um golpe militar, foi um episódio humilhante, desmoralizador e prato cheio para piadas e memes na internet.
o fiasco do desfile de blindados desta terça-feira, 10 de agosto, em Brasília, que, ao contrário de confirmar a força dos intentos golpistas de Bolsonaro, demonstrou sua fraqueza e desespero diante da divisão do andar de cima, o que inclui a cúpula das forças armadas.
O fiasco da “tanqueata” comprova que a ordem para a Marinha desviar seus tanques e lançadores de mísseis para um desfile na Praça dos Três Poderes em Brasília, pouco antes da votação da PEC do voto impresso, partiu do Palácio do Planalto e do Ministério da Defesa. Foi, portanto, uma ordem política, uma iniciativa desesperada diante da iminência da derrota de Bolsonaro no plenário da Câmara.
O presidente genocida contemplou o fiasco do alto da rampa do palácio do Planalto ao lado dos ministros Walter Braga Neto (Defesa), Ciro Nogueira (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Anderson torres (Justiça). No início do desfile, um militar em traje de combate subiu a rampa e entregou a Bolsonaro um convite ao exercício militar na cidade de Formosa (GO), com a presença de membros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Esse exercício trata-se de um evento tradicional e ocorre desde 1988, mas essa foi a primeira vez que os blindados entraram na Praça dos Três Poderes.
Confirmando a análise acima, o atual comandante da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista, convidou o decano do STF, Gilmar Mendes, para um almoço nesta terça-feira, 03 de agosto, segundo a Folha. O encontro ocorreu no Comando da Aeronáutica. O brigadeiro disse ao ministro que não apoia qualquer aventura golpista no país [1]
Para as pessoas de fraca memória, o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Jr. é visto como o mais bolsonarista dos três novos chefes militares que assumiram após a crise militar que derrubou todos os comandantes e o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, em abril. Foi ele quem afirmou em tom de ameaça, numa entrevista no dia 9 de julho, que as Forças Armadas não iriam “enviar 50 notas de repúdio”, depois das críticas feitas pelo presidente da CPI da Covid, Omar Aziz, ao envolvimento de alguns militares com falcatruas bilionárias no Ministério da Saúde.
Para quem ainda não acredita que o almoço do Brigadeiro Baptista Jr. com Gilmar Mendes já indicava que a iniciativa da “tanqueata” não coube ao alto comando, mas se tratou de uma manobra política frustrada de Bolsonaro e de Braga Netto, vale a pena citar a fala defensiva do comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, organizador do desfile, sobre a relação da própria “tanqueata” com o exercício militar da Marinha em Formosa (GO) e a votação da PEC do voto impresso:
“Como eu disse, isso ocorre longe, ocorre num lugar que ninguém vê. A questão das críticas, me parece que houve… O presidente Lira já definiu isso. Foi uma coincidência de datas, que nós não tínhamos como prever. Na verdade, o Congresso marcou na data que a gente já tinha programado uma votação pra hoje. Então talvez isso é que tenha criado todo um pouco de ruído, né? Porque, no final das contas, a gente, as Forças Armadas são extremamente cumpridoras da lei e da ordem” [2].
PEC do voto impresso enterrada na Câmara
Apesar da chantagem da “tanqueata”, digna de um filme ruim de comédia, na mesma terça-feira, 10, foi enterrada a PEC do voto impresso na Câmara dos Deputados. Segundo o presidente da casa, Arthur Lira (PP-PI), o presidente genocida “garantiu que aceitará o resultado”. A montanha da ameaça golpista pariu um rato e terá que engoli-lo junto com o sapo do início das investigações contra Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF), na medida em que o presidente genocida foi incluído, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, no inquérito das Fake News.
A votação da PEC do voto impresso foi outro episódio do circo de horrores da era Bolsonaro. Muitos ativistas honestos ficaram impressionados com o resultado da votação da PEC: 229 pelo voto impresso, 218 contra. Para ser aprovada, a PEC necessitava de 308 votos. O resultado é obviamente uma derrota inquestionável do bolsonarismo: a Câmara dos Deputados decidiu rejeitar e arquivar a proposta que propunha o voto impresso em eleições, plebiscitos e referendos.
Mas insistem ainda os honestos impressionistas: mas eles ganharam e não levaram porque uma PEC exige uma maioria de 2/3. Não, eles nem ganharam nem levaram. No entanto, caberia explicar: por que a PEC do voto impresso obteve ainda 229 votos na Câmara? A resposta é muito simples: o Congresso Nacional que está aí foi eleito em 2018, no auge do bolsonarismo, abraçado a ele. Se Bolsonaro cair, boa parte desses deputados pode cair junto e dificilmente se reelegerá em 2022.
Agora, esses 229 votos em favor do voto impresso tiveram uma colaboração fundamental das bancadas do PSDB, PSB e PDT. Do PSDB, 14 deputados dos 26 presentes votaram a favor da PEC. Do PSB, 11 dos 28. E do PDT, 6 dos 24. Queremos crer que, para além do bolsonarismo, um último fator que explica os 229 votos é o interesse pelo voto impresso de muitos caciques locais com vistas a controlar os territórios de seus currais eleitorais.
É preciso chamar as vitórias pelo seu nome… e comemorá-las
Parafraseando Heinrich Heine, não transformemos pulgas em dragões. O 10 de agosto vai entrar para a história como o dia do fiasco da “tanqueata” e do enterro da PEC do voto impresso, nova versão do voto de cabresto no século XXI. Se isso não for uma derrota do bolsonarismo e uma importante vitória superestrutural dos movimentos sociais e da esquerda partidária, não sei o que poderíamos chamar de vitória… Fica o alerta: quem não valoriza as vitórias e o já conquistado será incapaz de obter novos triunfos.
Precisamos agora fazer uma grande agitação em torno dessas importantes vitórias superestruturais para construir atos massivos no dia 18 de agosto e preparar com toda a nossa força um 7 de setembro que mobilize centenas de milhares, senão milhões, de pessoas em todo o país. O Fora Genocida tem todas as condições materiais e humanas, objetivas e subjetivas, de se massificar nas próximas semanas e meses. Sem sombra de dúvidas, o dia 10 de agosto foi um dia para ser comemorado e entrar na história!
NOTAS
*Militante da Resistência/PSOL
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