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TEORIA

Derrubar monumentos? Cultura e barbárie

José Luciano de Queiroz Aires*, de Campina Grande, PB

“Não posso respirar”!

(George Floyd)

O mundo todo assistiu com muita indignação ao assassinato de um homem negro pela polícia branca estadunidense. Com a truculenta abordagem policial, Georges Floyd dava seus últimos suspiros clamando por um pouco de ar para respirar, diante da cena repugnante de um joelho assassino das forças coercitivas do Estado Burguês e Racista a lhe estrangular e retirar-lhe a vida. O mundo inteiro se levantou contra o racismo e o neofascismo, com manifestações massivas de ruas em todos os continentes, não obstante as recomendações da Organização Mundial de Saúde em relação ao isolamento social por conta da pandemia do Covid-19. 

Em vários países, a multidão revoltada resolveu atacar lugares de memórias monumentalizados: demolindo, inscrevendo sobre eles com tinta vermelha, jogando ao rio, decapitando ou fazendo petição pública em favor da retirada das ruas de monumentos que fazem lembrar a escravidão e o colonialismo. No último Ato pelo Fora Bolsonaro, em 24 de julho de 2021, os manifestantes tocaram fogo no monumento do bandeirante paulista Borba Gato. Novamente, o debate da iconoclastia política volta à tona e desta feita com a prisão do trabalhador e líder do Movimento de Entregadores Antifascistas, Paulo Galo. Como sempre, o tema gera inúmeras controvérsias e acende outra chama no campo das opiniões políticas, dentro e fora do campo historiográfico.

Uma análise dos movimentos à luz do materialismo histórico

Gostaria de apresentar minhas considerações sobre o tema, fundamentado na linha teórico-metodológica do materialismo histórico e dialético, teoria social e projeto político socialista, inseparáveis. Para iniciar, gostaria de citar a concepção de cultura em Walter Benjamin (1994, p. 225):

Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (Grifos meus)

As famosas teses benjaminianas, escritas em tempos de profunda crise social, de ascensão do fascismo, de uma nova guerra mundial e do pacto germânico-soviético, fazem uma crítica devastadora a todas as concepções teóricas e projetos políticos que faziam certa defesa da ideologia do progresso. Embora fossem diferentes, para ele, as teorias historicista, social-democrática e stalinista se afogavam na crença otimista do futuro de forma mecânica e teleológica, de um tempo vazio e homogêneo. 

as teorias historicista, social-democrática e stalinista se afogavam na crença otimista do futuro de forma mecânica e teleológica, de um tempo vazio e homogêneo. 

Contra essas três concepções teóricas e práticas, Walter Benjamin defendia uma concepção de História a contrapelo, “puxando o freio do trem” da continuidade histórica temporal do eterno retorno. Era preciso narrar o presente a partir do engajamento do historiador com os projetos e sujeitos excluídos, marginalizados e derrotados no tempo passado. O historiador fundamentado no materialismo histórico de Karl Marx deve articular o passado a partir das lutas do presente e movimentar o anão teológico escondido no interior do autômato no sentido da rememoração e reparação das derrotas do passado, cuja dívida ética cabe às gerações do presente. Contudo, há que ressaltar a posição revolucionária benjaminiana, a redenção e o juízo final seriam o momento da emancipação da classe trabalhadora e de todos os oprimidos, imprimindo uma ruptura com o capitalismo e suas formas de opressão. Essa observação é importante para que não domestiquemos um autor da teoria marxista comprometido com a revolução socialista até a morte, morte essa que, aliás, veio pelas mãos suicidas do fascismo histórico. 

Voltando ao tema dos monumentos históricos, gostaria de apresentar minha posição teórica e política sobre o tema muito alinhada com as teses benjaminianas sobre a memória. Em primeiro lugar, tendo a concordar com boa parte dos historiadores que se posicionaram recentemente sobre o tema, quanto à importância de se politizar a memória e o patrimônio cultural. Só que isso tem esbarrado em limites que vão desde políticas públicas até condições materiais nas quais atuam os professores da educação básica, por exemplo. No primeiro caso, sabemos que os governos municipais, estaduais e federal não têm apresentado projetos políticos que efetivamente trabalhem numa perspectiva crítica. Os lugares de memória como arquivos, museus, sítios arqueológicos, centros históricos, sequer dispõem de profissionais com formação apropriada para problematizar a memória, os silêncios e esquecimentos em torno desses lugares materiais, simbólicos e funcionais. Quando muito, encontramos neles um guia turístico, muitas vezes sem concurso público e formação profissional compatível a fazer um trabalho na linha da memória-hábito da qual nos fala Paul Ricoeur (2000, p. 73), mera memorização, ou seja, “maneiras de aprender que encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que estes sejam fixados, que permaneçam disponíveis para uma efetuação, marcada do ponto de vista fenomenológico por um sentimento de facilidade, de desembaraço, de espontaneidade”.

Nos museus é o que encontramos, uma mera apresentação descritiva dos objetos de forma quase sacralizada e mística. Pude presenciar isso, por exemplo, no Museu de Petrópolis em torno da figura de D. Pedro II e da Princesa Isabel. Nos centros históricos não existem historiadores em torno do casario colonial, das igrejas e dos monumentos oficiais. Estão largados nas ruas servindo em grande medida como pano de fundo para as fotografias dos turistas. Os arquivos, em sua grande maioria, estão coordenados por pessoas que sequer entendem como tratar da preservação dos documentos históricos, alguns deles contratados por governos como forma de empregar o clientelismo em setores que eles consideram de pouca importância qualitativa. 

Quando alguns professores resolvem fazer aula de campo não encontram nos lugares de memória os referidos profissionais qualificados para problematizá-los de forma crítica. Nesse caso, ou aparece o guia turístico descrevendo de forma apologética ou os próprios professores planejam e executam suas aulas. Entretanto, as condições materiais que determinam a atuação dos professores na educação básica impõem limites nesse sentido. A começar da inexistência de uma carreira do magistério semelhante a dos professores universitários, com dedicação exclusiva, salários maiores e formação continuada. O que vemos na prática são professores que dobram carga horária para melhorarem seus salários a fim de reproduzir com certa qualidade de vida a força de trabalho docente. Sendo assim, seria ilusório cobrarmos ou acreditarmos que um professor que ministra cinquenta horas aulas semanais reúna condições pedagógicas e teórico-metodológicas para ir aos monumentos, problematizá-los e politizá-los como deseja a maioria dos historiadores universitários. Não devemos nos esquecer de que formamos historiadores, em grande maioria, para atuar na educação básica e por mais que tenhamos oferecido ferramentas necessárias para o ofício de historiador durante o curso de licenciatura, nem sempre serão exequíveis quando vão trabalhar nas nossas escolas públicas precarizadas. Também não existem condições materiais para a realização das próprias aulas de campo, a começar pelo transporte para conduzir os estudantes e professores, isso sem falar da inexistência de diárias para cobrir os gastos com alimentação durante as atividades, algo que ainda temos nas nossas universidades graças à luta sindical do movimento docente. 

Sendo assim, cabe a pergunta: quem iria politizar esses monumentos e como? Do meu ponto de vista, os profissionais com formação para problematizá-los como documentos, aliás, “documentos da barbárie”, como afirma Walter Benjamin, são os historiadores, uma vez que fazem um curso de graduação e/ou pós-graduação para investigar, explicar e narrar sobre o tempo histórico. Contudo, interessaria aos governantes burgueses manter historiadores aos pés das estátuas dessacralizando-as, fazendo um trabalho a contrapelo? 

Contudo, interessaria aos governantes burgueses manter historiadores aos pés das estátuas dessacralizando-as, fazendo um trabalho a contrapelo? 

O que de fato interessa ao poder político do Estado Burguês quando o assunto é patrimônio cultural é sua demolição para fins mercadológicos. É o que vemos constantemente quando da derrubada de patrimônio arquitetônico geralmente para ceder lugar à especulação imobiliária do grande capital. Nesse caso, os governantes pouco se importam com a prática preservacionista, pois em nome dos interesses da modernidade burguesa, órgãos como o IPHAN e suas congêneres nos estados muito pouco podem fazer para impedir que as marcas do passado venham abaixo para dar lugar a condomínios de luxo, redes de farmácias e apartamentos. Nesse sentido, por mais paradoxal que possa parecer, os mesmos governantes que fecham os olhos quando o assunto é demolir para atender aos empresários, são os mesmos que acionam o aparelho coercitivo do Estado para reprimir movimentos sociais que ousam derrubar estátuas de homens brancos escravocratas. Dois pesos e duas medidas, essa é a política que temos concretamente, se situarmos o debate em torno da luta de classes. Vejamos o caso do genocida bandeirante Borba Gato, queimado com muita justiça pelo movimento antifascista levando o Estado a criminalizar e reprimir um líder da classe trabalhadora mais precarizada do país. Enquanto que o Museu Nacional foi às chamas e ninguém foi responsabilizado; Brumadinho rebentou muitas vidas e os capitalistas e burocratas de Estado não foram criminalizados; o fogo queimou a Amazônia e o Pantanal sob as bênçãos de Ricardo Sales, garimpeiros, grileiros e madeireiros, mas isso parece menos criminoso do que aquele que foi ateado sob o mármore do Borba Gato. Dois fogos e duas medidas. 

Embora eu concorde em grande medida com o que defende boa parte dos historiadores brasileiros, sobretudo, no tocante ao fato de que a derrubada de estátuas em si não é a melhor saída, não penso também que esse tipo de ação não deva se realizar por hipótese alguma ou que seja adjetivada por termos como “atos de vandalismos”. A questão é mais complexa do que supomos. Em primeiro lugar, não vejo com grande relevância um processo de retirada dos monumentos para os museus ou a mudança generalizada de nomes de ruas, praças e logradouros públicos desacompanhados de um amplo movimento popular multitudinário e revolucionário. Não basta trocar os lugares de memórias dos opressores pelo dos oprimidos se isso não for acompanhado de um novo modo de vida que distribua a riqueza e acabe com o patriarcado, o racismo e a lgbtfobia, formas de opressões alimentadas pelo capitalismo. Não estou aqui fazendo uma leitura de que vivemos as condições subjetivas para uma revolução socialista, mas as condições objetivas da crise total do planeta impõe que as lutas diversas sejam unificadas a fim de lutarmos por um mundo novo. Nesse sentido, como foi comum nas revoluções burguesas a derrubadas de símbolos do poder do Antigo Regime, creio que um levante mundial com propostas anti-sistêmicas poderá não poupar alguns monumentos cujo passado se liga ao presente da exclusão, e não seremos nós, os historiadores, que devemos gritar por um pacifismo conformista e preservacionista a qualquer preço. 

Em segundo lugar, não sou tão otimista quanto a possíveis ações por parte de governos alinhados com o capital no tocante a investimentos públicos na política da memória e da educação patrimonial. Aliás, é bom que se diga que todas as reformas urbanas dos grandes centros históricos do país foram acompanhadas de repressão e expulsão dos grupos e classes subalternos que ali moravam. Basta ver o Pelourinho em Salvador, parece mais uma cidade cenográfica visitada por turistas sem a pulsação da vida dos populares soteropolitanos que ali viviam. Na capital paraibana, há décadas, ocorre uma luta entre a população ribeirinha do Porto do Capim, às margens do Rio Sanhauá, contra um projeto mercadológico dos empresários alinhados com os vários prefeitos que têm passado pela edilidade municipal que visa a remoção da comunidade para instalar um projeto para o turismo de eventos. Como apostar nesses governantes de plantão que tratam a questão patrimonial sem inclusão social dos moradores historicamente ali vivendo? Não quero com isso afastar a luta que os movimentos sociais e populares fazem e devem fazer mesmo no interior de uma ordem burguesa autocrática. Mas temos que potencializar o salto qualitativo político que devemos empreender, pois no modo capitalista de produção apenas podemos conquistar com muito sangue pequenas reformas para perdermos no dia de amanhã. 

Se, a rigor, não sou inteiramente contrário à derrubada dos monumentos históricos, desde que acompanhado de um processo concretamente emancipatório, também não acho que uma sociedade socialista deva necessariamente implodir toda arte e cultura que vem do passado. Nesse sentido, estou de acordo com o que apresenta a historiadora Fernanda Castro quando analisa o processo histórico no inicio da Revolução Russa. Vale ressaltar que preservar aqui é diferente da concepção da maioria dos historiadores, pois se trata de manter o patrimônio cultural da humanidade em uma sociedade socialista, permanentemente crítica e que conviva com os seus museus, arquivos, bibliotecas, centros históricos, dialeticamente, aprendendo com os restos do passado a construção histórica da síntese de um novo tempo. 

O próprio Walter Benjamin, ao tratar a memória no interior do materialismo histórico, não chegava a rejeitar as obras da chamada “alta cultura”. Para ele, muitas delas portavam um potencial hostil à sociedade capitalista e, portanto, “trata-se, então de redescobrir os momentos utópicos ou subversivos escondidos na ´herança`cultural, quer seja contos fantásticos de Hoffman, poemas de Baudelaire, ou narrações de Leskow”. (LÖWY, 2005, p. 79). Nessa direção, acredito que uma futura sociedade socialista não necessariamente jogaria ao chão um Coliseu romano ou as Pirâmides do Egito, nem fecharia um Museu do Louvre ou o arquivo de Londres onde tanto Karl Marx pesquisou. Certamente, não deveria haver jamais censura à leitura de clássicos da literatura burguesa, mas de modo a aprender com esse passado e revolucionar constantemente o presente na perspectiva da construção de um mundo onde a cultura possa chegar ao conjunto da população. Mas também se o preço de revolucionar o mundo e de fazer o enfrentamento internacional anticapitalista perpasse também pela iconoclastia política, não deveríamos lamentar se arcos do triunfo ou estátuas da liberdade viessem ao chão juntamente com o imperialismo escondido na aparente beleza estética. O proletariado mundial deverá ter o apoio dos historiadores realmente engajados com as causas dos subalternos. 

No fundo o que divide a historiografia brasileira é uma questão teórica e política. Geralmente os historiadores culturalistas e/ou revisionistas defendem o preservacionismo monumental, a diversidade cultural e o paradigma da cidadania, eixo central da defesa da democracia liberal como modelo político quase que incondicional. Já os historiadores marxistas, afeitos que são às lições do velho barbudo alemão, embora não desconsiderem a importância das liberdades democráticas, defendem a ruptura revolucionária com o capitalismo e a defesa do socialismo, nem que algumas estátuas também tenham que tombar junto às cinzas da velha ordem burguesa. 

 

*Historiador/UFCG Resistência (PSOL)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005. 
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000.