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TEORIA

Descolonização mental, decapitações de estátuas, derrubadas e fogo nos racistas

Waltecy Alves dos Santos*, Barueri, SP

Da esquerda para a direita: estátua do Borba Gato em chamas em São Paulo, escultura do escravocrata Edward Colston, que foi derrubada e jogada no rio em Bristol (RU) e estátua de Cecil Rhodes foi removida na Universidade de Oxford (RU)

“Eu seria hipócrita se eu falasse o contrário num mundo

onde os caras colocaram fogo na gente no passado.”

Rapper Djonga

 

” Se você finge não ver o que está acontecendo

É a sua mente que está em cativeiro.”

Parasitas (grupo de Rap).

Antes de mais nada, é importante refletirmos sobre evolução das realidades humanas confluente à dimensão tempo-espaço-territórios e resistências. Ou seja, acerca destas influências nos processos de construção e organização sócio-espacial. Neste sentido, em sua obra Espaço e Sociedade, Milton Santos nos ensina que o espaço, é produto e condição da dinâmica socioespacial. Conforme Santos, há uma organização social, um arranjo do espaço, de acordo com os interesses e necessidades de cada grupo. Os pesquisadores Marcos Aurelio Saquet e Sueli S. da Silva, à luz do conceito deste ilustre geógrafo, propõem que o território pode ser considerado como delimitado, construído e desconstruído por relações de poder que envolvem uma gama muito grande de atores que territorializam suas ações com o passar do tempo.  E também, Milton Santos, em sua obra “Por uma Geografia Nova”, nos ensina que “a utilização do território pelo povo cria o espaço”. Além disso, o espaço, na perspectiva Miltonsantiana, é construído processualmente e contém uma estrutura organizada por formas e funções que podem mudar historicamente em consonância com cada sociedade. 

Milton Santos, em sua obra “Por uma Geografia Nova”, nos ensina que “a utilização do território pelo povo cria o espaço”. Além disso, o espaço, na perspectiva Miltonsantiana, é construído processualmente e contém uma estrutura organizada por formas e funções que podem mudar historicamente em consonância com cada sociedade. 

Provavelmente, as esculturas públicas, como, por exemplo, estátuas que representam corpos de ídolos da humanidade, animais ou divindades, são um dos signos mais visíveis dos valores, crenças e princípios de uma sociedade. Não há dúvidas de que a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes, como nos lembram Marx e Engels. E, seguramente, a luta antirracista e a luta de classes têm um objetivo comum, como nos ensina Frantz Fanon, porta-voz e teórico pertencente à vanguarda dos estudos decoloniais. E este ponto de congruência é: superar a alienação e a desumanização que definem a sociedade moderna, criando novas relações humanas – denominadas pelo intelectual martinicano de “novo humanismo”. Neste sentido, Peter Hudis leitor de Frantz Fanon, em Racism and the Logic of Capital: A Fanonian Reconsideration” nos adverte que o psiquiatra, filósofo político e militante revolucionário da Martinica enfatiza repetidamente que o racismo antinegro não é natural, mas está enraizado nos imperativos econômicos do capitalismo – começando com o comércio transatlântico de escravos e estendendo-se ao neocolonialismo atual. Como ele escreve em Peles Negras, Máscaras Brancas, “Inicialmente, econômico. Em seguida, pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade.      

Vale ressaltarmos que as esculturas são formas de comunicação não verbal, assim como, desenhos, pinturas e outras intervenções artísticas que compõem as paisagens urbanas. À vista disso, é importante lembrar que Bakhtin em Marxismo e filosofia da linguagem nos ensina que a comunicação verbal é inseparável de outras formas de comunicação de acordo com conflitos, relações de dominação e resistência, adaptação ou resistência à hierarquia (…). Na medida em que as diferenças de classe correspondem às diferenças de registo ou mesmo de sistema, esta relação fica ainda mais evidente (…) pois todo signo é ideológico e a ideologia é reflexo das estruturas sociais. Do mesmo modo, cabe-nos notar que ultimamente, o tema ataque a esculturas em espaços públicos ganhou destaque nos principais veículos de comunicação em decorrência do ateamento de fogo à estátua do bandeirante Borba Gato (assassino e estuprador de indígenas e negros), em São Paulo. Fato que, infelizmente, culminou com a decretação por parte da Juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli da prisão dos camaradas Paulo Galo (líder dos entregadores antifascistas) e sua companheira, Géssica Barbosa, militante do grupo Revolução Periférica. 

Nos últimos anos, em escala planetária, temos testemunhado atos de beleza, coragem, revolta e resistência afro-indígena e popular manifestados através de decapitações, derrubadas e incendiamento de estátuas que reproduzem a memória física de um passado marcado por invasões europeias assinaladas por ações bárbaras que ocasionaram danos diversos às terras e aos seus habitantes nativos (povos indígenas, africanos) e, consequentemente, também, aos seus descendentes até os dias atuais. Neste sentido, em Discurso sobre o colonialismo, o pensador antilhano Aimé Césaire nos adverte que “a essência do colonialismo […] se reveste de dois aspectos: o de um regime de exploração desenfreada de imensas massas humanas que tem a sua origem na violência e só se sustém pela violência e uma forma moderna de pilhagem. Sendo o genocídio a lógica normal, o colonialismo é portador do racismo. E é nesta gigantesca catarse [coletiva] que o colonialismo desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado”. Embora tenha nascido há 108 anos (26/06/1913), Césaire ainda tem muito a ensinar ao século XXI. 

Em seu artigo “Le Genocide”, publicado em “Les Temps Moderns”, o filósofo francês Jean Paul Sartre (1967), pronuncia-se: “De [fato] a colonização não é uma mera conquista – como foi em 1850, a anexação da Alsácia Lorena pela Alemanha – é necessariamente um genocídio cultural: não se pode colonizar sem liquidar sistematicamente os traços particulares da sociedade indígena ao mesmo tempo em que se nega aos seus membros que se integrem na Metrópole e beneficiem das suas vantagens.”É impressionante como Césaire, profícuo intelectual de formação marxista e pan-africanista, [poeta, dramaturgo e ensaísta anticolonialista, anticapitalista, anti-imperialista], continua atual [quem sabe mais atual do que nunca]. Conforme suas próprias palavras, “cada dia que passa, cada negação de justiça, cada carga policial, cada reclamação operária afogada em sangue, cada escândalo abafado, cada expedição punitiva, cada viatura de C.R.S, cada polícia e cada miliciano faze-nos sentir o preço das nossas velhas sociedades”. 

O escritor, professor de Literatura Comparada e Estudos de Performance, e dramaturgo queniano Ngugi wa Thiong’o [que produziu obras em língua inglesa e que posteriormente tem escrito em língua gĩkũyũ], em “Descolonizando a Mente: as Políticas da Língua na Literatura Africana”, publicado em 1986, nos traz a expressão “descolonizar”. Muitos intelectuais acolhem e aplicam este termo, e dele derivam ideias. 

Haja vista, o pesquisador peruano Anibal Quijano (1992), em seu artigo de quebra-de-bases “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad afirma: “a crítica ao paradigma europeu de racionalidade / modernidade é indispensável. Além disso, urgente.” 

Embasados nessa lógica, comungamos da “desobediência epistêmica”, e/ou “do neologismo” ao aderirmos ao termo “Descolonial” para situar uma das táticas em evidência no século XXI, adotada por ativistas engajados nas lutas decoloniais e antirracistas para fomentar uma descolonização mental e ao mesmo tempo, clamar por reparações materiais e imaterias (simbólicas), é a deformação ou demolição de monumentos que homenageiam personagens históricos reconhecidos como escravagistas e colonialistas.

ao aderirmos ao termo “Descolonial” para situar uma das táticas em evidência no século XXI, adotada por ativistas engajados nas lutas decoloniais e antirracistas para fomentar uma descolonização mental e ao mesmo tempo, clamar por reparações materiais e imaterias (simbólicas), é a deformação ou demolição de monumentos que homenageiam personagens históricos reconhecidos como escravagistas e colonialistas.

Neste sentido, a pesquisadora Maria Paula Meneses (Universidade de Coimbra), em seu artigo   As estátuas também se abatem, nos traz uma reflexão de Ngugi wa Thiongo – Uma estátua, um monumento, é como um livro – é um momento para abrir a história, que é sempre uma narrativa em construção e, por isso, sujeita a ser revisitada. Ou seja, tais protestos evidenciam o confronto entre a resistência negra, indígena e popular e a formação ideológica dominante no sistema-mundo capitalista, judaico-cristão, heterossexista, patriarcal, racista. Uma vez que, marcam o distanciamento dos sujeitos socais historicamente vulnerabilizados, massacrados financeiramente, psicológica e moralmente, das posições ligadas à formação das elites dominantes. Ou, seja, o afastamento da “identidade eurocentrista e discriminatória do Ocidente”, expressão cunhada pelo pensador palestino Edward Said.

Mundo afora, constituídas majoritariamente por eurodescendentes, desde a parcela que se auto-rotula conservadora, dos porta-vozes das elites do capitalismo global, até setores pequeno-burgueses, que se autoproclamam “progressistas”, fazem alvoroço para preservarem símbolos escravagistas que são apresentados em diferentes tipos de espaço – arquitetônicos, geográficos, como mártires. 

Porém, na contramão do conservadorismo, vozes decoloniais e libertárias encontram-se na trincheira da luta por reparação de danos tanto materiais quanto imateriais às vítimas das invasões, expropriações e subjugações fruto da intercambialidade universal (neo) colonialista-imperialista. E guardadas as devidas proporções e diferenças, apresentam-se com o discurso uníssono: de que é ofensivo, insultante e imoral preservar homenagens aos responsáveis por massacres, escravismo de indígenas, negros, genocídios e etnocídios. 

Neste sentido, segue um breve levantamento, de batalhas de caráter educativo-sócio-transformadoras que foram (e são) encampadas pelos/as trabalhadores/as de grupos étnicos (indígenas e afro-descendentes) em solo latino-americano, a exemplo do levante anti-estátua de Borba Gato ocorrido recentemente em São Paulo (Brasil), que culminou com o execrável encarceramento dos ativistas Paulo Galo, Géssica Barbosa, Danilo Biu e Tiago Zem.

Em 2004, Caracás, capital venezuelana, foi palco da derrubada da estátua Colombo no Golfo Triste — e no seu lugar foram instaladas estátuas de indígenas.  Em 2019, no Chile, os mapuches – o mais numeroso povo indígena daquele país – derrubaram as estátuas de invasores espanhóis como as de Pedro de Valdivia e Diego Portales. Cabe-nos apontar também a grande mobilização indigena-estudantil ocorrida este ano, que culminou com a derrubada da estátua do invasor espanhol Gonzalo Jiménez de Quesad, retratado pelo recorte balizado pela perspectiva histórica das elites colombianas brancas como o fundador de Bogotá.  

Já no contexto estadunidense, frequentemente são desencadeadas ações através das redes sociais de derrubadas de estátuas vinculadas à colonização hispânica e demais invasores e opressores. Nos Estados Unidos, estátuas de Cristovão Colombo – um dos grandes responsáveis pela escravização, colonização, mutilação e massacre de milhares de povos indígenas nas Américas – foram decapitadas e demolidas, respectivamente, em Boston (Massachusetts), Richmond (Virgínia), no Capitólio estadual de Saint Paul (Minnesota). 

Em seu artigo “Herança colonial confrontada: reflexões sobre África do Sul, Brasil e Estados Unidos”, os pesquisadores Paulo Neves, Laura Moutinho e Lilia Katri Moritz Schwarcz, nos lembram que na África do sul, em 09 de março de 2015 centenas de estudantes  iniciaram um movimento na prestigiosa University of Cape Town (UCT) para a retirada da estátua de Cecil Rhodes, representante do colonialismo inglês no século XIX, do campus. O movimento #Rhodes Must Fall (RDF), inicialmente na UCT e, logo em seguida, em praticamente todas as universidades sul-africanas. Nesse mesmo ano, em novembro, estudantes da Princeton University (Nova Jérsei, nos Estados Unidos) ocuparam a reitoria exigindo que fosse removido de um dos prédios do campus o nome de Woodrow Wilson, defensor da segregação dos negros no sul dos Estados Unidos. […]Conforme Zethu Matebeni, o movimento nasce quando o estudante da UCT, Chumani Maxwele, lança um balde contendo fezes humanas na estátua de Cecil Rhodes localizada no campus, como forma de protesto contra a presença de uma estátua de um imperialista do século XIX em uma universidade pública. O uso de fezes era uma forma de protestar contra a falta de banheiros e de condições de higiene nas favelas (townships) da cidade. 

É imprescindível compreendermos que a derrubada de símbolos concebidos pelas elites dominantes a partir de pressupostos etnocêntricos faz parte da re-existência popular pela reapropriação do espaço, físico-simbólico-cultural e contra a indiferença, subalternização e negação de tudo que foge da concepção de mundo cristianizado e que se articula em torno do imaginário branco, heterossexista, monogâmico e capitalista.  

Na California, mais especificamente, em junho de 2020, na apelidada Cidade dos Anjos, Los Angeles, coalizões de movimentos formados por descendentes de africanos, indígenas e latinos derrubaram a estátua do frei Junípero Serra, o fundador das primeiras missões na Califórnia. Na ocasião, Jessa Calderón, artista e ativista indígena, declarou que “isto é apenas o princípio do fechamento das feridas de nosso povo”, por considerar a imposição histórica da religião como um evento relacionado ao “horror, brutalidade e opressão”. Além disso, o mesmo afirmou que “tolerar a presença desse tipo de monumento é, para os indígenas, comparável a obrigar um judeu a “passar por uma estátua de Hitler todos os dias”. Também, é importante lembrarmos que num passado recente, fruto da decisão das autoridades locais e a exemplo de algumas outras cidades do sul dos Estados Unidos, em Charlottesville (Virgínia), foram removidas estátuas de Robert E. Lee e Thomas Jackson – generais do Exército confederado que lutaram pela preservação da escravidão durante a Guerra Civil norte-americana. Na ocasião, foi intensa a ira e a mobilização de supremacistas brancos de ultra-direita para impedir a remoção das mesmas. E, do outro lado, alegando que não se trata de análise crítica e sim de ultraje a preservação de monumentos de indivíduos pró-escravismo, diversos grupos antifascistas se mobilizaram para garantir a retirada destas homenagens. 

Atitudes decoloniais e o protagonismo dos movimentos sociais negro-antirracistas também têm avançado na Europa. Em Bristol (Inglaterra), por exemplo, durante os protestos de 2020, do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) a escultura do escravocrata Edward Colston foi derrubada e jogada no rio. E em seu lugar, hoje em dia, está instalada a estátua da ativista negra Jen Reid levantando o braço em uma saudação do tipo Black Power. Também, no Reino Unido, neste mesmo ano, a estátua do imperialista, sanguinário, estuprador Cecil Rhodes foi derrubada na Universidade de Oxford, após a pressão de manifestantes antirracistas. 

É imprescindível compreendermos que a derrubada de símbolos concebidos pelas elites dominantes a partir de pressupostos etnocêntricos faz parte da re-existência popular pela reapropriação do espaço, físico-simbólico-cultural e contra a indiferença, subalternização e negação de tudo que foge da concepção de mundo cristianizado e que se articula em torno do imaginário branco, heterossexista, monogâmico e capitalista.  

Enfim, após séculos de extermínio físico-mental sistemático e despossessão de territórios de povos indígenas e pretos-africanos, há um movimento global de descolonização das mentes que se corporifica através de manifestações que ocorrem nas ruas e nas redes sociais contra o racismo que estrutura todas as instituições em diferentes contextos sócio-econômico-culturais. Ainda é preciso lutarmos muito, mas de forma perspicaz e constante, mundo afora, um contingente expressivo, de nós, trabalhadores pretos, indígenas, pobres urbanos, temos confrontado o sistema econômico-social-dominante, mudado o panorama de nossas cidades e pedagogicamente seguimos despertando a consciência social sobre a importância de derrubarmos material e simbolicamente as ideias associadas ao escravismo, colonialismo e subjugação.

*Waltecy Alves dos Santos – É professor efetivo da área de Literatura e Português Linguagens da FIEB – (Fundação Instituto de Educação de Barueri- São Paulo/ Brasil). Possui graduação em Letras e Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi Secretário Estadual de Combate ao Racismo do PT-SP e é a pessoa mais jovem da história (aos 16 anos de idade) a fazer parte das direções do Sindicato dos bancários de São Paulo, da Confederação nacional dos bancários e da CUT (Central única dos trabalhadores). Foi Secretário Geral do PSOL-Barueri. É militante da Resistência do PSOL. Além disso, é desde muito jovem, militante do movimento negro, LGBTQIA+, candomblecista e orgulhosamente filho de Ogum!