No dia 27 de julho de 1979 nasceu Marielle Francisco da Silva, no Rio de Janeiro. Aquela que viria a se tornar Marielle Franco, cria da Maré, veio de uma família de mulheres fortes, com uma trajetória de resistência há gerações. Sua vida foi interrompida no dia 14 de março de 2018, quando saía de uma atividade política, entre as muitas que fazia pelo seu primeiro mandato como vereadora. Seu assassinato até hoje não foi solucionado e envolve camadas profundas da atuação das milícias no Rio de Janeiro, que se ligam até mesmo ao campo da família presidencial. O atentado contra sua vida marcou a história do país, com repercussão em todo o mundo. À sua vida e à sua memória, gritamos por seu nome e nos afirmamos como sementes.
Refletir sobre o nascimento de Marielle é pensar também na sua origem, na figura “Marielle Franco”, que afetou tantos corações e mentes diante da injustiça do seu assassinato e pela força de sua trajetória. A sua origem enquanto ser social vem de uma família de mulheres batalhadoras, da luta da migração do Nordeste para as grandes favelas cariocas, de mãe e mulher negra, de bissexual. Essas são todas camadas que formaram a complexidade do ser que viraria símbolo de resistência para milhões de pessoas no mundo. Mas foram também suas escolhas políticas que a fizeram ser a gigante que se tornou: na sua decisão de se afirmar como favelada e feminista, na escolha de construir o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na construção dos espaços de base, na Campanha Contra o Caveirão, na formação da Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), na afirmação de sua negritude. Marielle se construiu a si própria de modo coletivo, trilhando os passos dos caminhos construídos por muitos e muitas que vieram antes, em ricas trajetórias de organização de resistência.
A decisão de construir o PSOL foi sólida em sua militância, e Marielle foi muito além de uma assessora da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ. Tornou-se referência para os movimentos feministas e militante ativa do Setorial de Mulheres do partido. Católica praticante, Marielle subiu no palco do Congresso do PSOL pela legalização do aborto, no enfrentamento aos desmandos de Heloísa Helena, então uma das principais figuras públicas partidárias. De militante que construía o Núcleo da Maré, que vinha do chão dos cursinhos populares na sua comunidade, Marielle foi eleita em 2016 com 46.502 votos, formando com outras companheiras a “Bancada Feminista do PSOL”. Já com o mandato, Marielle construía e afirmava a política da Povo Sem Medo, compreendendo que a luta contra o golpe e o avanço conservador no Brasil impuseram à esquerda o desafio de resistir sem sectarismo, e com afirmação programática. Em 2017, participou de uma linda mesa do Vamos na praça da Cinelândia no Rio de Janeiro, em uma atividade que faria parte do movimento que construiu a plataforma do programa da candidatura de Guilherme Boulos, nas eleições para Presidente do ano seguinte.
Para além da construção partidária, Marielle fez uma opção em sua vida por construir o feminismo como frente formadora do seu cotidiano. Os passos que deu nessa direção podem dialogar com múltiplas faces de sua complexa caminhada, mas o fato é que além de uma figura importante na construção do setorial de mulheres no PSOL, Marielle estava de frente na construção dos 8 de março e demais atos feministas no estado, se tornando uma referência no espaço do movimento de mulheres. Em diálogo com a ascensão do feminismo, que também era negro, a sua vitória eleitoral não veio sozinha, dando um passo fundamental para a luta de classes no país junto com figuras como Talíria Petrone e Áurea Carolina. Quando eleita, optou pelo eixo de mulheres como o maior investimento público do mandato, com a disputa pela presidência da Comissão das Mulheres da Câmara, por meio do qual realizou diversas iniciativas em seu potente e interrompido mandato.
A homenagem a Conceição Evaristo foi um grande símbolo disso. A máxima da consagrada artista, “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”, ganharia uma expressão enorme diante dos passos de Marielle
Na tessitura das lutas coletivas que construíram Marielle, se destacam e se entrelaçam os percursos do feminismo, do movimento negro e da militância de favelas. Assim, na afirmação de sua negritude, na busca por referências do movimento e no fortalecimento de outras mulheres negras, a nossa companheira reconheceu a relevância de suas antigas e as reverenciou. A homenagem a Conceição Evaristo foi um grande símbolo disso. A máxima da consagrada artista, “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”, ganharia uma expressão enorme diante dos passos de Marielle, junto com o movimento de negritude, como parte, como motor, e como representação de força e de luta, em um país de raízes escravocratas tão profundas.
Quando discutíamos a construção da figura pública de Marielle, nos idos de 2016, em uma reunião tarde da noite na Lapa, no Rio, diversas eram as propostas de mote para sua campanha eleitoral.Nenhuma parecia ideal. Foi então que uma camarada trouxe o conhecimento ancestral do Ubuntu e afirmou que Marielle devia usar essa referência como símbolo daquela potente campanha, sem medo da profundidade dessas palavras: “Eu sou, porque nós somos”. Tal afirmação, que navegou pelo mundo na resistência ao genocídio, foi fortalecida e ressignificada por Marielle Franco. O assassinato cruel, de uma elite assassina, racista e patriarcal, tornou gigante a nossa companheira, ecoando em todo o mundo. Graças aos passos dos e das que vieram antes de nós, de comunistas, feministas, do movimento negro, LGBTs orgulhosas, faveladas e funkeiras, nordestinas migrantes, da classe trabalhadora organizada, afirmamos que nossa luta vem de longe e não vamos nos calar.
Resistiremos até o fim diante das injustiças sociais. Somos sementes, e com Marielle renascemos todos os dias!
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