A intolerância religiosa, infelizmente, sempre perseguiu os povos de terreiro neste país. Recentemente, dois casos ocorridos na capital maranhense têm ocupado a pauta política local e provocado sofrimento, acumulando prejuízos materiais e emocionais nas vítimas, os Pais de Santo e suas respectivas casas.
Para avançar nesta discussão, porém, é preciso, de antemão, colocar duas questões que nos ajudarão no debate proposto. Ou seja, entender, em breves palavras, as causas dos ataques e o tratamento dispensado pelo Governo do Estado do Maranhão à situação.
Em primeiro lugar, a intolerância religiosa contra Povos de Terreiro decorre do racismo estrutural. Isto quer dizer que o racismo resulta da estrutura social que forma, do ponto de vista hegemônico, nossas principais instituições: família, igrejas, escolas, etc, e sobremaneira, as relações sociais, econômicas, jurídicas e, assim, sucessivamente.
O poder hegemônico desta estrutura social racista é tão forte, dado o seu contexto histórico-conceptivo, que é naturalizado e acaba por inibir nossa capacidade crítica de percebê-lo e problematizá-lo pelo simples fato de acharmos que determinados comportamentos, atos ou procedimentos são normais. Nós ainda vivemos sob a égide de uma sociedade escravocrata baseada nos valores do colonialismo provinciano.
Neste contexto, o cristianismo, a despeito do Estado laico imposto pela Constituição Federal de 1988, constitui-se num poder hegemônico que, historicamente, quando não está compartilhando da gestão pública, ocupando lugar de comando, como é o caso agora na gestão federal, e em certa medida também gestão estadual, é destinatária de privilégios sociais e beneficies gerados pela agenda institucional.
Em segundo lugar, no âmbito do Estado, esta estrutura branca, burguesa e, por que não dizer, cristã, também se materializa o racismo estrutural. Isto ocorre quando as instituições do Estado passam atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios, com base na raça[2].
Colocadas as questões preliminares e indo direto ao ponto, trago para o debate a Portaria nº 620, de 24 de outubro de 2018, da Secretaria de Estado da Segurança Pública do Maranhão – SSP MA, que impunha regras ao livre direito de culto dos povos de terreiro e reeditava a legislação criminal do Brasil Império e os inúmeros Códigos de Postura que limitavam os cultos de matriz africana. Isto é, reprodução de uma prática racista e colonial.
A referida portaria apresentava sérios problemas e se tornava emblemática do racismo estrutural. Entre os quais, destacamos: segundo a portaria, as práticas religiosas não poderiam “ocasionar dificuldade ou incômodo aos banhistas e poluição do local” e condicionava o controle das manifestações religiosas à Federação de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros do Maranhão.
Além de nos colocar em posição de desordeiros e agentes poluidores do meio ambiente, a referida Portaria significou uma tentativa direta e descarada do Estado de interferência nas formas organizativas e representativas dos povos de terreiro. É preciso dizer, que as religiões de matriz africana possuem formas distintas de organização social, política e formal, cujos critérios organizativos obedecem, quase sempre, a orientações referidas às suas respectivas ancestralidades. Os padrões clássicos da democracia ocidental de representatividade, participação social e organização formal não constituem parâmetro, referência e nem centralidade de condução organizativa destes povos.
A exigência de vinculação a uma associação formal é arbitrária. Além disso, a ausência de entidade formal representativa, não pode se converter em desvantagem aos povos de terreiro. Podemos, inclusive, optar por não estar vinculados a uma entidade formal. Afinal, ainda é livre o direito de associação neste país. Isto, contudo, não autoriza o Estado a nos marginalizar do direito às políticas públicas, tampouco, inibir a adoção pelo Estado de meios de diálogos e participação e consulta prévia (nos termos da Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho) juntos a estes povos.
Ao cabo, a referida Portaria cumpria tarefa de vulnerabilizar os povos de terreiro, nos expondo ainda mais à violência de toda a sorte e agudizando o cenário de racismo religioso a que estamos, historicamente, expostos. Por sorte, e por ampla mobilização dos povos de terreiros a Portaria foi revogada.
Nas últimas semanas, teve bastante repercussão por meio das redes sociais, discursos na Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão e entrevistas concedidas em vários veículos de comunicação. Discursos da Deputada Estadual Mical Damasceno, evangélica, que acusa o reconhecido Pai de Santo Joãozinho da Vila Nova de intolerância religiosa contra um grupo de evangélicos que estava realizando culto na frente do seu Terreiro.
O Terreiro de Pai Joãozinho da Vila Nova é antigo, de notória referência e reconhecimento no bairro da Vila Nova e na capital maranhense. Não há quem não saiba ou quem não tenha ouvido falar de Pai Joãozinho. Na região do referido bairro, não há quem não saiba onde estar localizado o seu Terreiro. Portanto, a desculpa grosseira, propagada nas redes sociais da Deputada, de que a Casa não estava identificada, não se sustenta e não goza de qualquer razoabilidade.
Quando um grupo de evangélicos, sem querer generalizar, conscientemente insiste em fazer cultos na frente de um Terreiro não estar a exercer sua liberdade religiosa, mas sim, afrontando e desrespeitando a liberdade religiosa dos povos de terreiro, uma vez que, neste caso, os tais cultos evangélicos constituem também atos provocativos e dolosos que objetivam atacar e demonizar a nossa religião. Na minha opinião, quando assim o faz, o grupo de evangélicos assume o ônus do crime de intolerância religiosa, e não o contrário, como tenta sustentar, desarrazoadamente, a referida Deputada evangélica.
Neste mesmo período e na mesma região da Vila Nova, ocorreram sucessivos apedrejamentos e tentativa de incêndio na Casa São Miguel, do Pai Lindomar. Este acaso acumula ataques diretos com danos matérias à Casa, que, seguramente, converte-se em prejuízos emocionais imensuráveis aos membros desta comunidade.
Estas duas situações tem em comum a resposta lenta e pouco efetiva do Governo do Estado do Maranhão. Inicialmente, o tratamento dispensando pelas pastas diretamente ligadas à questão (igualdade racial e direitos humanos) foi marcado por um atabalhoamento de atos e procedimentos que, na verdade, resultam do descaso institucional muito grave: não há, no Governo do Estado do Maranhão, nenhum protocolo de atendimento a este tipo de demanda e que estabeleça, na administração pública estadual, procedimentos, prazos, responsabilidades e competências. A proteção dos povos de terreiro não pode ficar refém da discricionariedade do gestor público. Inexiste um plano estratégico que permita operar a proteção dos povos de terreiros. É urgente que se pense em algo do tipo juntamente com estes povos. É preciso desengavetar o Estatuto Estadual da Igualdade Racial e o Plano Estadual de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e implementá-los.
Lembro que comecei a participar de uma reunião híbrida (virtual e presencial) para discutir os recentes ataques sofridos e ficamos refém da péssima estrutura tecnológica fornecida pelo Estado em que precisávamos gerar o link da sala virtual a cada uma hora por que estávamos usando uma plataforma gratuita, já que, ao que parece, o Estado não adquiriu este tipo de serviço para suas atividades mesmo em mais de um ano de pandemia. Ou, se adquiriu, não nos foi disponibilizado. Isto revela a desimportância da questão para o Estado.
Neste mesmo período, o Governador Flávio Dino (PSB), secretários, deputados, vereadores e outras autoridades participaram com honras, glórias e concessão de comenda da Ordem dos Timbiras, da posse do novo arcebispo de São Luís. Recentemente, uma comitiva de evangélicos foi recebida no Palácio do Leões pelo governador, conforme informa suas redes sociais. Desta forma, é emblemático do racismo estrutural e institucional que as duas agendas do governador acima referidas ocorram exatamente no mesmo período dos citados ataques religiosos contra povos de terreiro. Esta situação nos informa que povos de terreiro não constituem foco de proteção desse governo. Basta que olharmos a ausência absoluta de regramentos e políticas públicas estruturantes ou de sua implementação. Não há, no Maranhão, sequer um mapeamento dos povos de terreiro no Estado e na Ilha de São Luís.
Por fim, destaco que tem sido uma prática recorrente da pasta dos direitos humanos do Governo do Estado a realização de encontros interreligiosos. Eu mesmo, quando servidor público, participei de uma das edições. Considero a medida necessária, mas não resolve.
O debate interreligioso e o ecumenismo, a despeito de sua importância e necessidade, por si só não confere qualquer proteção, segurança jurídica e institucional às comunidades de Terreiro. Este tipo de debate precisa ter pontos de partida simétricos, iguais medidas e condições históricas e socais de diálogo precisam estar presentes, mas não estão! Nós, povos de Terreiro, devido ao racismo estrutural ainda estamos em desvantagem social e não desfrutamos de condições ideias para entrar neste tipo de debate, sem que haja, no mesmo passo, o efetivo compromisso institucional, com a política pública de nossa proteção e defesa, uma vez que nosso povo continua sendo massacrado diuturnamente. Em outras palavras, a política de paz e amor, aqui, infelizmente, é reduzida a mera retórica ou termina no seu efeito reverso, pacificando a parte mais vulnerável no debate, ou seja, os povos de terreiro.
Neste ponto, a atuação do Governo do Estado, quer pela ação (Portaria n°. 620/2018 da SSP MA), quer pela omissão (da política pública estruturante), quer pela lentidão na resolução dos nossos problemas e ataques sofridos, só pode ser entendida sob a ótica do racismo institucional. Não há meias palavras: os últimos acontecimentos escancaram o racismo e estampam a nudez do desprezo institucional pela pauta, dada a ausência de protocolos de atendimento, efetivação de políticas estruturantes, sistematização de dados e etc. A pauta das questões raciais e dos direitos humanos não podem correr ao comando de interesses eleitoreiros ou projetos pessoais de poder e transitoriedade de governos. Elas são maiores que tudo isso e merecem ser guiadas com justeza, seriedade institucional e inteligência programática para proteger estes povos.
Se, no plano mundial, especialmente no Brasil, nos últimos dias, a importância do Orixá Exú veio a conhecimento do grande público pelo jogador de futebol Paulinho, nos jogos olímpicos de Tóquio, aqui, no Maranhão, a gestão pública estadual, ao que parece, não estar fazendo jus aos aplausos de Exu na proteção do seu povo.
De minha parte, resta continuar lutando, denunciando e pedindo a Exu, senhor do movimento e da grande inteligência, que ilumine ainda mais nosso povo de terreiro para sobreviver a tudo isso e ter sua humanidade reconhecida pelo Estado, por meio das políticas e direitos que lhe são inerentes e que lhes conferem os documentos nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos.
[1] Cientista político, jurista, quilombola de Alcântara/MA e Ogã do Ilê Axé Alagbedê Oludumáre.
[2] Cf. ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. – São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.
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