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A ossatura estatal da assim chamada guerra global à corrupção

Parte 2 da série A Lava Jato e o capital-imperialismo

Montagem: Pedro Ravasio/EOL

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Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Parte 2 de A Lava Jato e o capital-imperialismo: Confira a primeira parte desta série

Desde a queda da União Soviética, o Estado norte-americano construiu uma estrutura gigantesca para o “combate à corrupção, ao terrorismo e às drogas”, em parceria com juízes, procuradores e policiais do mundo todo que buscavam promover o modelo do capitalismo estadunidense.

Formação de quadros latino-americanos sobre “corrupção pública” promovida pela Escola para juízes, procuradores e policiais latino-americanos (International Law Enforcement Academy – ILEA) do Departamento de Estado dos EUA em 2018. Imagem: ILEA.

 

O aparato legal da guerra global à corrupção (Global War on Corruption – GWC) tem suas bases na lei norte-americana de 1977 sobre práticas corruptas no exterior (FCPA), que fundamentou a formação de batalhões anticorrupção privados através do conceito de compliance em 1988, e internacionalizou seu modelo por meio da OCDE em 1998 +

 

A agenda da GWC foi implementada por toda rede de agências estatais norte-americanas sob a coordenação do Departamento de Estado, através da organziação da ILEA +

 

A Divisão de Operações Internacionais do FBI, que incorporou a GWC no centro do seu programa, agiu clandestinamente em conluio com os agentes da Lava Jato +

 

Forjada sob o capital-imperialismo, a rede de juízes, procuradores e policiais brasileiros começou a impulsionar a GWC a partir do seu próprio território, coordenada pela Secretaria de Cooperação Institucional do MP +

 

“O Estado norte-americano, no processo de apoiar a exportação de capitais e a expansão das corporações multinacionais, assumiu cada vez mais a responsabilidade pela criação das condições políticas e jurídicas para a extensão e reprodução geral do capitalismo internacionalmente”

Leo Panitch e Sam Gindin, The Making of Global Capitalism

Como argumentamos na parte 1 desta série, a expansão da GWC vem abrindo as fronteiras para a livre circulação do capital transnacional pelo mundo, além de servir para justificar as desigualdades globais e legitimar golpismos de toga. Nessa parte 2, investigaremos o papel do Estado norte-americano nesse processo. Como analisaram Leo Panitch e Sam Gindin, a estrutura estatal norte-americana conduziu a forja do capitalismo global. No entanto, os autores não investigaram especificamente o papel da agenda anticorrupção nesse processo de internacionalização, tema sobre o qual refletiremos a partir das bases fincadas pelos autores.

a GWC denuncia o Estado corrupto para promover privatizações e ocupar suas agências com quadros “técnicos”, isso não significa que o avanço da GWC leva a uma diminuição dos poderes dos Estados nacionais. O que ocorre é a moldagem do formato estatal de acordo com o modelo do Estado norte-americano, de forma a torná-lo mais eficiente no atendimento aos interesses do capital.

Se, como discutimos na parte anterior, a GWC denuncia o Estado corrupto para promover privatizações e ocupar suas agências com quadros “técnicos”, isso não significa que o avanço da GWC leva a uma diminuição dos poderes dos Estados nacionais. O que ocorre é a moldagem do formato estatal de acordo com o modelo do Estado norte-americano, de forma a torná-lo mais eficiente no atendimento aos interesses do capital. Assim, na verdade, as reformas promovidas pela agenda anticorrupção aumentam a capacidade tecnocrática do Estado. Transnacionalização não é a diminuição do poder dos Estados, substituídos por estruturas institucionais internacionais, e sim a moldagem deles à imagem da rule of law, de forma a homogeneizar todos aparatos legais estatais que garantem a reprodução do capital. Como Virgínia Fontes destaca, a expansão capital-imperialista se trata da internacionalização de um modo de produção.

Para garantir a tão desejada previsibilidade para os investimentos, as reformas anticorrupção inclusive transferem mais poder às agências estatais não eleitas, como o Judiciário. Como observou Enrique Romero e como veremos mais especificamente ao analisar o caso argentino na parte 5, tais reformas espelham o sistema jurídico da common law (direito comum) estadunidense, onde, ao contrário dos sistemas latino-americanos de direito civil, o poder judiciário tem mais independência em relação a poder executivo e legislativo na aplicação da lei, o que dá muito mais poder a juízes descolados de qualquer controle popular.

A GWC quase sempre é combinada pelo capital-imperialismo com a guerra global às drogas (Global War on Drugs – GWD) e com a guerra global ao terrorismo (Global War on Terrorism – GWT). Esses três discursos têm sua ossatura vertebral no Estado norte-americano. A guerra global às drogas foi institucionalizada com a criação da Drug Enforcement Agency (DEA) em 1973 pelo presidente estadunidense Richard Nixon (1969-1974), um aparelho fundamental para a conexão das forças policiais latino-americanas às norte-americanas. Após o 11 de setembro, ela foi incorporada à guerra global ao terrorismo (fusão que criou a categoria de narcoterrorismo), institucionalizada com a criação do Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security – DHS) em 2002 pelo presidente estadunidense George Bush (2001-2009). O DHS opera sob a nova legislação do US Patriot Act, que aumentou os poderes das agências estadunidenses para investigar lavagem de dinheiro, com a justificativa de que ela financiaria o terrorismo. E a guerra global à corrupção tem sua base na Lei de Práticas Corruptas no Exterior (Foreign Corrupt Practices Act – FCPA), uma lei norte-americana criada em 1977 por Jimmy Carter que estabeleceu as bases para o Ministério da Justiça dos EUA poder investigar e punir empresas estrangeiras. Ela é promovida por diversas unidades de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (Anti-Money Laundering / Combating the Financing of Terrorism – AML/CFT) que integram diversos aparelhos estatais, do Departamento de Estado ao FBI, bem como por aparelhos privados do capital-imperialismo, como a Transparência Internacional.

A FCPA e a lawfare

Como analisou o jurista Walfrido Warde, a FCPA foi aperfeiçoada pela Lei Geral do Comércio e da Concorrência (Omnibus Trade and Competitiveness Act) de 1988, que introduziu o conceito de negligência consciente (conscious disregard) e o de cegueira deliberada (willful blindness). Foi evocando o conceito de cegueira deliberada das cortes estadunidenses que o MP-SP denunciou Lula por lavagem de dinheiro no caso do Triplex e pediu sua prisão. Essa lei de 1988 transferiu às empresas o papel de investigar práticas corruptas, sendo o primeiro grande movimento do processo de privatização de parte do combate à corrupção. Dela surgiu o conceito de compliance, termo utilizado pelo empresariado para se referir à submissão das empresas às normas internacionais de colaboração no combate à corrupção.

Em 2002, o Congresso norte-americano consumou o compliance ao sancionar a lei Sarbanes-Oxley (SOx). Ela condicionou a concessão de Recibos de Depósitos Estadunidenses (American Depositary Receipts – ADR) às empresas estrangeiras que aderissem ao compliance. E foi ela que baseou as ações de acionistas estadunidenses contra a Petrobras. Depois de destruir a maior estatal do país, o formulador da SOx, Norman Marks, afirmou que o legado da lei foi positivo para a economia brasileira.

Com o Estado norte-americano fincando as bases para a privatização de parte dos batalhões da GWC, ela assumiu uma nova função, além das que destacamos na parte 1 de tirar o foco da corrupção empresarial, justificar as desigualdades globais, garantir a circulação do capital transnacionalmente com o estabelecimento da rule of law e embasar estratégias golpistas. O exército de advogados e firmas de compliance forjadas sob a GWC passou a servir também para defender as empresas acusadas de corrupção. E quanto maior a empresa, maior o exército de advogados e, portanto, mais difícil a punição.

Como discutimos no texto anterior, é inegável a seletividade política do “combate à corrupção”, resultado do alinhamento geral dos juízes e procuradores com a direita. Vale ver a investigação do documentário Lava Jato entre quatro paredes sobre a atuação dos advogados Catta Preta, que, articulados às mobilizações pelo impeachment de Dilma e ligados a escritórios de advocacia de Miami, foram os responsáveis pela defesa da maioria dos delatores da Lava Jato. Como ficou transparente depois da Vaza Jato, os lavajatistas perseguiram obsessivamente a prisão de Lula enquanto decidiram não melindrar FHC – embora seja sempre preciso destacar que a desestabilização gerada pelos métodos do bonapartismo de toga atingiu todos partidos do sistema político envolvidos nos esquemas empresariais de compra de políticos.

com a formação de batalhões do compliance, o “combate à corrupção” passa a ser seletivo não só no momento da perseguição mas também no momento da condenação das empresas, ao passo que o exército de advogados das mega multinacionais corruptas as mantém impunes

Mas com a formação de batalhões do compliance, o “combate à corrupção” passa a ser seletivo não só no momento da perseguição mas também no momento da condenação das empresas, ao passo que o exército de advogados das mega multinacionais corruptas as mantém impunes. Exemplo simbólico dessa seletividade é a impunidade de bancos estrangeiros, como o estadunidense Citibank, que, como está investigando a Operação Delaware, recebeu milhões dos fundos de pensão desviados da classe trabalhadora carioca. O Citibank nem será investigado, pois, segundo a justificativa do Ministério Público e do Tribunal de Contas, eles “só tem jurisdição para atuar regional ou no máximo nacionalmente” – enquanto a FCPA permite o Department of Justice operar no mundo todo. Outro banco estrangeiro envolvido nesse esquema, o europeu BNP Paribas, tem em sua defesa um exército de advogados formados pela rede de treinamentos de combate à corrupção que destrincharemos, como Yuri Sahione, especialista em (defender) crimes de colarinho branco, em compliance e em cooperação jurídica internacional. Em sua carreira, Sahione sempre defendeu “gente de bem”, como policiais julgados por assassinatos de moradores das periferias cariocas, um exemplo simbólico da articulação entre o bonapartismo de toga e o protofascismo – tema ao qual voltaremos na parte 4 desta série.

Dez anos depois da lei do compliance da FCPA, a International Anti-Bribery Act (Lei Anticorrupção Internacional) estabeleceu as bases para a internacionalização da FCPA ao criar a Convenção Anticorrupção na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 1998. Assim, os EUA colocaram não só as empresas dos países da OCDE, mas também as que tivessem relações econômicas com eles, sob o jugo da FCPA. O objetivo dessa ação foi impedir que tais empresas usassem a “vantagem competitiva” de subornar os agentes públicos dos seus países e fossem obrigadas a enfrentar os monopólios transnacionais no “livre mercado”. A própria formação da Lava Jato foi embasada pela estrutura criada pela FCPA na OCDE. Na narrativa de Robert Appleton, ex-procurador do Departamento de Justiça dos EUA (Department of Justice – DoJ), em entrevista para o Conjur, foi de uma conversa de corredor no encontro da OCDE em 2014, puxada pelos procuradores brasileiros, que começou o intercâmbio informal entre os Estados Unidos e a Lava Jato sobre os casos de corrupção envolvendo a Petrobras e a Odebrecht. Evidentemente que essa aproximação é muito anterior, mas a fala de Appleton demonstra como o aparato legal da OCDE é usado para legitimar a Lava Jato.

a legislação anticorrupção se mundializou a partir da matriz norte-americana”, consolidando “um instrumento de guerra comercial” e institucionalizando “as desigualdades empresariais entre países centrais e periféricos”

De acordo com o que argumentamos aqui, Warde concluiu que “a legislação anticorrupção se mundializou a partir da matriz norte-americana”, consolidando “um instrumento de guerra comercial” e institucionalizando “as desigualdades empresariais entre países centrais e periféricos”. O próprio ex-procurador do DoJ e diretor de compliance de um escritório de advocacia, William Burcke, concorda que “não existe a menor dúvida de que a FCPA é um instrumento de política externa do governo dos EUA”, argumentando que seu país utiliza a lei “para o bem”. A visão de Burcke representa como o conceito de lawfare, pensado pelo general norte-americano Charles Dunlap, em artigo de 2001, como um termo negativo para designar as ações dos inimigos, passou a ter uma acepção positiva – virada que o próprio Dunlap realizou.

É ilustrativa desse uso da GWC na guerra econômica uma das conversas do Embaixador dos EUA na Argentina, Earl Wayne, com a diretora da Transparência Internacional (TI) no país, Laura Alonso. Na conversa, Embaixada e TI discutiam as investigações sobre um possível caso de corrupção nos contratos para a construção de um trem bala na Argentina pelo consórcio argentino-franco-espanhol, Alstom. Wayne comentou que “os Estados Unidos pressionam a Inglaterra, a Alemanha e a França a investigarem casos de corrupção usando a adesão deles à convenção anticorrupção da OCDE”. Mas, reclamou Wayne, “as empresas estadunidenses [continuam] em desvantagem competitiva em relação às suas contrapartes europeias por não poderem utilizar subornos para ganhar contratos”. Em 2014, a Alston foi condenada pelo DoJ a pagar uma multa bilionária por subornar autoridades ao redor do globo, embora nenhuma condenação tenha sido concretizada na Argentina.

Tal uso econômico se combina, muitas vezes, com objetivos geopolíticos, como é o caso da lawfare norte-americana em meados dos anos 2000 contra o conglomerado alemão Siemens, perseguido e condenado a multas milionárias após ter se recusado a participar do embargo aos iranianos. O mesmo argumento da não realização de embargo ao Irã foi usado pelo Departamento de Justiça dos EUA para prender uma diretora da Huawei em 2018, principal competidora do Vale do Silício.

Em 2010, o Dodd-Frank Act se somou à lei SOx, à FCPA e suas duas emendas (o estímulo ao compliance e a institucionalização da sua internacionalização). A nova lei estabeleceu um prêmio para empresários que decidissem denunciar esquemas de corrupção em suas empresas. Os denunciantes recebem de 10 a 30% do valor da multa paga pelas empresas condenadas – mas só se a multa for superior a US$ 1 milhão. Em 2011, primeiro ano de vigência da lei, foram apresentadas 300 denúncias, número que decuplicou para 3000 denúncias no ano seguinte. Empresários de mais de 55 países denunciaram suas empresas e até 2014 embolsaram US$ 14 milhões. Amparados por essa lógica de faroeste promovida pelo Estado norte-americano, os escritórios de advocacia se expandiram vertiginosamente. Exemplo dessa simbiose são os cartazes colados na internet por firmas de advocacia estadunidenses oferecendo recompensas a quem entregasse denúncias de corrupção na Petrobras. Outro exemplo simbólico são os cartazes no estilo “procura-se vivo ou morto” da Procuradoria-Geral dos EUA, que ofereciam uma recompensa de 15 milhões de dólares a quem apresentasse informações que levassem à prisão de Nicolás Maduro, acusado de corrupção, terrorismo e tráfico de drogas.

A ILEA

Seguindo nossa investigação sobre a Conferência do Projeto Pontes (aquela organizada pelo Consulado dos EUA no Rio de Janeiro em 2009), observamos como ela não construiu uma ponte apenas entre brasileiros e norte-americanos, mas sim uma estrutura de pontes que conectam juízes, promotores e policiais estadunidenses com brasileiros, argentinos, uruguaios, paraguaios, panamenhos, costa-riquenhos e mexicanos. De acordo com a lei estadunidense Leahy, as Embaixadas precisam analisar e aprovar todos os agentes estrangeiros que serão formados por treinamentos norte-americanos, o que registram nos telegramas para o Departamento de Estado. Por isso, temos o registro de algumas listas dos participantes da Conferência, como o telegrama enviado da Embaixada no Uruguai autorizando a ida de Jose Enrique Chavat Azeni, o Diretor Nacional de Informações e Inteligência daquele país.

Azeni, segundo outro telegrama da Embaixada no Uruguai, enviado em 2008, já havia viajado para El Salvador com outros dez colegas da polícia uruguaia para participar da Escola de Formação Internacional em Aplicação da Lei (International Law Enforcement Academy – ILEA), uma das articulações estruturantes dessa teia de agentes de “aplicação da lei” (“law enforcement agents”, como os norte-americanos se referem a juízes, promotores e policiais) do combate à corrupção na América Latina. Assim, seguindo os rastros deixados por Azeni, chegamos a um dos programas centrais do capital-imperialismo para conectar a magistratura do continente.

A ILEA é um programa de treinamento para policiais e outros oficiais da justiça criminal organizado pelo Departamento de Estado dos EUA em conjunto com diversos outros Ministérios. Analisando os temas dos encontros da ILEA, observamos como ela incorporou o combate à corrupção como um dos eixos centrais dos treinamentos. A descrição do ILEA de Botsuana, por exemplo, é “oferecer cursos para aprimorar a capacidade de cooperação com oficiais estadunidenses no combate ao terrorismo, corrupção, crimes financeiros, segurança de fronteiras e às drogas”.

A equipe brasileira de juízes, procuradores e policiais era uma das mais presentes nos cursos da ILEA. Em 2006, um telegrama da Embaixada em Brasília autorizou a viagem de 16 brasileiros para o Curso de Técnicas de Investigações Financeiras (Financial Investigations Techniques – FIT) organizado pela ILEA, em Lima. Um dos participantes foi Gilson Libório de Oliveira Mendes, descrito pela Embaixada em 2006 como conselheiro do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional do Ministério da Justiça (DRCI/MJ). Esse é o mesmo Libório que Bolsonaro colocou, em maio de 2020, na direção da sua “ABIN paralela”, a Secretaria de Operações Integradas (SEOPI) do MJ. A promoção foi logo após André Mendonça assumir o MJ. Foi Libório que organizou o dossiê de monitoramento dos 579 funcionários públicos tachados de antifascistas pela SEOPI, o que acabou levando à sua queda depois que o documento foi vazado.

A trajetória de Libório vale a pena ser fichada. Cinco anos depois do seu treinamento em técnicas de investigações financeiras na ILEA, ele já havia saído do DRCI para ser diretor da Secretaria de Prevenção da Corrupção e Informações Estratégicas da Controladoria-Geral da União (CGU). De lá, ele comandou o GT-Corrupção do MP, organizando eventos em todas as Procuradorias Regionais da República. Em 2010, palestrou sobre combate à corrupção no Encontro Estadual dos Grupos de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (GAECO) do MPF do Paraná. Em 2012, organizou uma parceria da CGU com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para criar o Observatório de Despesas Públicas na Bahia (à época, governada por Jacques Wagner – PT) para apurar casos de corrução. O BID doou equipamentos e softwares, e a CGU deu treinamentos e transferiu tecnologias. Ele ficou na CGU até novembro de 2017, quando o Ministro da Justiça de Temer, Torquato Jardim, o convocou para ser o secretário-executivo do MJ (segundo no comando). Jardim provavelmente conheceu Libório na CGU, órgão do qual foi Ministro no início do governo Temer, e decidiu levá-lo junto quando foi remanejado para o MJ. Libório voltou para a CGU com a eleição de Bolsonaro e a nomeação de Mendonça para a Advocacia Geral da União, de quem virou Assessor Especial. E de Assessor Especial de Mendonça na CGU, Libório foi alçado a diretor da SEOPI quando Mendonça assumiu o Ministério da Justiça após a demissão de Sergio Moro.

Libório é um dos exemplos de como os quadros formados por esse programa de treinamentos ocuparam postos centrais na teia de agências estatais. Como veremos no próximo texto, esses quadros também alcançaram altos cargos nos batalhões privados da GWC, como é o caso que investigaremos de Vinícius Santana, que participou com Libório do mesmo treinamento da ILEA.

Mas não são só quadros brasileiros que se destacaram nos treinamentos da ILEA. Figuras importantes da Lava Jato em outros países latino-americanos passaram por lá. Na capa da página da ILEA, está em destaque a manchete da “história de sucesso” do Dr. René Fernández Bobadilla, procurador paraguaio que hoje é Ministro da Secretaria Nacional Anticorrupção do governo conservador de Mario Benítez. Segundo a entidade, ele “frequentou vários cursos ministrados pela família ILEA”, e teve desempenho excelente quando “atuou em um caso de lavagem de dinheiro no Paraguai, um desdobramento da Operação Lava Jato no Brasil”.

O caso de Bobadilla aponta não só para o foco crescente das agências do capital-imperialismo no tema da corrupção no continente, como também para as conexões que juízes e promotores latino-americanos forjaram em torno da Lava Jato, sob a coordenação do Departamento de Estado e do Departamento de Justiça dos EUA.

O caso de Bobadilla aponta não só para o foco crescente das agências do capital-imperialismo no tema da corrupção no continente, como também para as conexões que juízes e promotores latino-americanos forjaram em torno da Lava Jato, sob a coordenação do Departamento de Estado e do Departamento de Justiça dos EUA. O curso Investigações de Corrupção Pública e Ética Policial da ILEA, que Bobadilla participou em setembro de 2018, contou com mais 35 agentes de aplicação da lei da Bolívia, da República Dominicana, do Equador, da Guatemala, do Haiti, do Paraguai, do Peru e de El Salvador e teve como um dos temas a cooperação internacional.

Mais uma linha que evidencia essa teia transnacional é uma carta que Bobadilla escreveu em 2013 apoiando os poderes de investigação do Ministério Público (MP) do Brasil contra a tentativa do governo Dilma de aprovar a PEC 37. A emenda constitucional propunha diluir os poderes de investigação do MP. A campanha nacional e internacional contra a PEC foi tão grande que ela ficou conhecida como a “PEC da impunidade” e o Congresso a rechaçou por 430 votos a 9 (até o PT desistiu de apoiar a lei). Impedindo os acusadores de investigar, a PEC 37 poderia ter diminuído o ímpeto do bonapartismo de toga que surgiu com a Lava Jato.

Em sua carta, Bobadilla se colocou “às ordens de tais entidades para seguir coordenando ações para evitar a aprovação da PEC 37”, uma “emenda que tem como finalidade evitar que os procuradores investiguem quem detém o poder”. Ele era então Promotor da Unidade Especializada em Delitos Econômicos e Anticorrupção do MP do Paraguai e endereçou sua carta à Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), à Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), à Associação Internacional de Promotores (International Association of Prosecutors – IAP) e outras entidades com as quais tinha contato.

Pela busca no arquivo de notícias da ILEA San Salvador, que vai de 2020 até 2018, podemos constatar a permanência e expansão dos mesmos treinamentos envolvendo o combate à corrupção que os relatados pelos telegramas das Embaixadas norte-americanas. Em junho de 2018 e em maio de 2019, a ILEA promoveu novamente o curso de Técnicas de Investigação Financeira (FIT), o mesmo que Libório e outros 15 agentes brasileiros compareceram em 2006. Ele foi ministrado por instrutores da Receita Federal do Tesouro dos EUA (Internal Revenue Service – IRS) para 37 policiais de uma dezena de países latino-americanos. No mesmo mês de 2019, a ILEA também organizou um curso para 31 líderes de aplicação da lei ministrado por especialistas do Centro Federal de Treinamento de Aplicação da Lei (Federal Law Enforcement Training Center – FLETC). E sob a supervisão da DEA e da IRS, também promoveu o curso “Cooperação Inter-Institucional em Investigações Financeiras” em agosto de 2019. Muito parecido ao FIT, o curso muniu os aplicadores da lei de mais de dez países latino-americanos com “ferramentas e técnicas modernas necessárias para processar os crimes financeiros na região”.

Em setembro de 2018 e de 2019, a ILEA também deu o curso “Corrupção Pública e Ética na Aplicação da Lei”, o mesmo curso que Bobadilla participou. Esse treinamento já não foi comandado diretamente por agentes estadunidenses, e sim por chilenos (da Agência de Cooperação Internacional do Chile), o que demonstra a crescente associação dos agentes latino-americanos às agências do capital-imperialismo. O mesmo treinamento sobre corrupção pública e ética na aplicação da lei foi promovido por agentes do FBI na ILEA em outubro de 2019, onde destacaram como o tema da corrupção pública é prioridade da organização. Merece destaque a abordagem da ILEA sobre a corrupção ser “pública”, ou seja, a tentativa de omitir o caráter intrinsecamente empresarial da corrupção através da associação da corrupção apenas aos políticos, corroborando o que discutimos na parte 1 sobre como a GWC esconde a corrupção empresarial e foca apenas no Estado corrupto.

Outra tese que apresentamos na parte 1 que é corroborada pela análise da atuação da ILEA é a do papel que a agenda anticorrupção assumiu na garantia da rule of law. A preocupação dos treinamentos anticorrupção da ILEA com um ambiente seguro ao fluxo de capital demonstra isso. Um dos focos dos debates dos treinamentos de 2018 e 2019 foi o relatório de 2017 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre corrupção pública. De acordo com o documento, “a corrupção não apenas desvia recursos do desenvolvimento, mas também corrói a confiança dos cidadãos nas instituições governamentais, mina a rule of law e o Estado de direito”, o que levaria ao “aumento dos níveis de violência e insegurança”. Como levantou a análise de Hoeveler sobre outro importante aparato do capital-imperialismo que alçou a garantia da rule of law como um dos seus objetivos centrais, o Conselho das Américas, a grande preocupação deles com o tema era “garantir o devido processo e a previsibilidade, proteger o empreendedorismo, transmitir estabilidade, certeza e limites legais claros para direitos de propriedade”.

Nessa nova agenda do capital-imperialismo, corrupção passou a significar essencialmente “ausência de transparência”. Como apontou Peter Bratsis, o capital transnacional precisa de previsibilidade “para reduzir os custos de transação e calcular de forma mais precisa suas expectativas de custos e benefícios ao tomar decisões de investimento”

Nessa nova agenda do capital-imperialismo, corrupção passou a significar essencialmente “ausência de transparência”. Como apontou Peter Bratsis, o capital transnacional precisa de previsibilidade “para reduzir os custos de transação e calcular de forma mais precisa suas expectativas de custos e benefícios ao tomar decisões de investimento”. Para o programa de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo do FMI, o problema da corrupção são seus “impactos negativos no setor financeiro e na estabilidade externa dos Estados membros”. Como discutiremos na parte 4 a partir da análise de Bratsis, a implementação da “transparência” é parte da estratégia de aumentar a autonomia das burocracias estatais em relação às burguesias locais, tornando as políticas estatais mais receptivas ao capital transnacional.

A Divisão de Operações Internacionais do FBI e a Lava Jato

Uma das agências que estruturam a teia internacional de combate à corrupção é, ironicamente, o Burô “Federal” de Investigações dos EUA (FBI) e seus attachés. Attachés são adidos, oficiais que trabalham em uma equipe diplomática desempenhando uma função especializada. Os Legal Attachés, abreviados LEGAT, são os representantes do FBI nas Embaixadas. Os escritórios LEGAT são coordenados pela Divisão de Operações Internacionais (DOI) do FBI, criada durante a Segunda Guerra para “combater a inteligência nazista no continente”, mas que logo depois se globalizou. Hoje tem 68 escritórios e mais de duas dúzias de sub-escritórios espalhados pelo mundo, cobrindo 180 países. Em 2007, eram 60 escritórios e 15 sub-escritórios, com 268 agentes ao todo. Segundo o relatório de 2007 do diretor do DOI Thomas Fuentes (2004-2008), do 11 de setembro até 2007, o staff do DOI cresceu 60%, e os escritórios dos LEGAT cresceram 54%. O crescimento foi justificado pelo combate ao terrorismo, ao crime organizado transnacional e ao financiamento ilícito dessas atividades, mais um exemplo do esforço para articular combate ao terrorismo com o combate à corrupção.

Segundo o relatório de 2007 do diretor do DOI Thomas Fuentes (2004-2008), do 11 de setembro até 2007, o staff do DOI cresceu 60%, e os escritórios dos LEGAT cresceram 54%. O crescimento foi justificado pelo combate ao terrorismo, ao crime organizado transnacional e ao financiamento ilícito dessas atividades, mais um exemplo do esforço para articular combate ao terrorismo com o combate à corrupção.

Segundo o mesmo relatório, uma declaração de Fuentes para o DHS – o ministério da Global War on Terrorism, criado em 2002 –, um dos “elementos chaves” do DOI é o treinamento internacional das forças de aplicação da lei para “aprofundar a cooperação internacional entre os agentes”. O foco do programa era no combate ao terrorismo, diz Fuentes, mas o tema se fundiu com o combate à corrupção e acabou gestando o extenso programa AML/CFT do FBI.

Estruturada pelo menos desde a década de 1950, a penetração yanqui nas estruturas militares da América Latina se consumou com o pretexto de enfrentar o narcotráfico, como aponta o estudo de Claudio Katz. Também de acordo com a pesquisa de Moniz Bandeira, desde 1990 agências norte-americanas repassaram anualmente US$ 1 milhão para o combate ao narcotráfico no Brasil, depositando o dinheiro diretamente em contas de policiais. Essa foi uma forma evidente de cooptação da PF para que esta agisse em prol dos interesses norte-americanos. Poucos meses depois do lançamento do livro de Bandeira em 2004, o depoimento do ex-chefe do FBI no Brasil Carlos Alberto Costa confirmou que a agência direcionava e financiava operações da PF, o que estabelecia uma relação de “subordinação às autoridades norte-americanas”.

Como uma farta bibliografia demonstra, FBI, CIA, DEA e demais agências de inteligência norte-americanas possuem um histórico de financiamento e direcionamento de suas congêneres brasileiras. Vale destacar a recente pesquisa de Vicente Silva, que analisou como o processo histórico de formação das polícias brasileiras foi em estreita proximidade com a CIA. Uma iniciativa simbólica desse processo investigada por Silva é o programa 1290-d, de 1954, que teve como objetivo promover o “desenvolvimento das forças policiais” nos países latino-americanos para “manter a segurança interna e destruir a eficácia do aparelho comunista nos países vulneráveis à subversão”. O objetivo estratégico de longo prazo era “evitar que os Estados Unidos se vissem obrigados a apoiar ações militares ou, no limite, desembarcar suas próprias tropas” para derrubar governos vistos como hostis.

Como estamos vendo nesta série, hoje a influência do capital-imperialismo estadunidense sobre as agências de aplicação da lei está ainda mais enraizada, incluindo não só os policiais como também os juízes e procuradores. Como as pesquisas da Agência Pública apontaram em julho deste ano, o próprio chefe de operações internacionais do FBI David Brassanini (2015-2017) disse que sua agência atua no mundo todo através de suas “parcerias locais”. Um anúncio de outubro de 2019 de vaga para trabalhar na equipe do adido policial do FBI na Embaixada em Brasília, evidencia essa interferência da agência ao informar como a pessoa contratada iria trabalhar na “assistência investigativa” do alto escalão das polícias Federal, Civil e Militar, do Ministério da Justiça e da Procuradoria Geral da República (PGR).

Desde março deste ano, as reportagens da Agência Pública sobre as mensagens da Vaza Jato denunciaram a cooperação clandestina entre o FBI e a Lava Jato. Uma das principais revelações foi que o diretor da operação, Deltan Dallagnol, escondeu do governo brasileiro reuniões secretas da equipe da Lava Jato com integrantes do DoJ e do FBI, pois afinal, “os americanos pediram para manter confidencial”. Quando o Ministro da Justiça de Dilma, José Eduardo Cardozo, ficou sabendo que uma delegação estadunidense estava na PF de Curitiba, ligou para o Procurador-Geral Rodrigo Janot, que garantiu que era apenas um encontro acadêmico. Nada poderia ser mais falso, visto que no encontro, os lavajatistas colocaram a delegação de procuradores norte-americanos em contato direto com os advogados da Petrobras, Odebrecht e demais empresas acusadas de corrupção, agindo em conjunto com os norte-americanos para “pressionar” esses advogados a deporem no território estadunidense. Como disse o Vice Procurador Geral Adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, Kenneth Blanco, Janot era um dos principais elos do MP brasileiro com o DoJ. E não foi só do DRCI que Dallagnol escondeu a reunião clandestina. Em conjunto com a PF, ele também omitiu do Departamento de Estrangeiros do Ministério das Relações Exteriores (MRE), que sob o governo Dilma, não era considerado confiável, o planejamento da extradição de um brasileiro encomendada pelo FBI. A Lava Jato entregou, nas palavras de Dallagnol, “a faca e o queijo na mão” dos norte-americanos.

Tais movimentações tentaram ser escondidas por Dallagnol pois eram ações clandestinas, visto que contrariavam o Acordo de Assistência Jurídica em Matéria Penal assinado pelo Brasil e pelos Estados Unidos em 1997, que estipula que quem deve mediar a cooperação jurídica é o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) do Ministério da Justiça – descrito por Dallagnol em suas mensagens como aparelhado por Dilma. Como admitiu o ex-procurador do DoJ Robert Appleton, a cooperação era informal, e segundo o também ex-procurador do DoJ Kenneth Blanco, ia muito além dos procedimentos oficias.

Vale destacar que Blanco fez sua carreira na década de 1990 em firmas de advocacia especializadas no combate à corrupção e às drogas, áreas em que continuou atuando nos anos 2000 nos escritórios da Procuradoria-Geral da República dos EUA e no Departamento do Tesouro dos EUA, onde hoje dirige as investigações sobre lavagem de dinheiro e terrorismo.

Outra personagem que representa esse giro do FBI em direção ao foco no combate à corrupção é a agente Leslie Rodrigues Backschies, hoje chefe da Unidade de Corrupção Internacional do FBI. Como levantou reportagem da Agência Pública, sua trajetória é emblemática da centralidade e complementaridade dos discursos de combate ao terrorismo e à corrupção que a política externa norte-americana mobilizou: uma especialista em combate ao terrorismo, ela foi designada pelo FBI em 2014 para ajudar nas investigações da Lava Jato.

Backschies fez parte da comitiva clandestina de 18 agentes do DoJ e do FBI que foram a Curitiba em outubro de 2015. Como mostram as mensagens da Vaza Jato, ela era vista como uma referência pelos juízes e procuradores brasileiros e usava essa referência para apoiar a política lavajatista. Em maio de 2016, por exemplo, ela tirou uma foto com um cartaz em apoio às “10 medidas contra a corrupção”, projeto formulado pela Lava Jato e capitaneado por Dallagnol. O caráter autoritário das 10 medidas foi destacado pelo procurador El Tasse em seu livro Contra Lava Jato, que comparou elas ao AI-5.

agentes formados pela GWC ocuparam importantes cargos na PGR e na CGU. A teia costurada por Backschies envolve articulações com o alto escalão desses ministérios. Em setembro de 2020, por exemplo, Backschies palestrou com Augusto Aras (PGR), Wagner Rosário (CGU) e outros figurões da política brasileira na 10º Cúpula Anticorrupção no Brasil, organizada pelo think tank American Conference Institute.

Como observamos no tópico anterior, agentes formados pela GWC ocuparam importantes cargos na PGR e na CGU. A teia costurada por Backschies envolve articulações com o alto escalão desses ministérios. Em setembro de 2020, por exemplo, Backschies palestrou com Augusto Aras (PGR), Wagner Rosário (CGU) e outros figurões da política brasileira na 10º Cúpula Anticorrupção no Brasil, organizada pelo think tank American Conference Institute. Com módicos 1.295 dólares, você poderia acompanhar o evento.

Atuando em conjunto com os esquadrões do FBI, se expandiram exponencialmente as firmas de advocacia. Um exemplo é a CKR Law, que realizou eventos em parceria com Backschies e teve sua entrada no Brasil intermediada por Robert Appleton, ex-procurador do DoJ que virou especialista em compliance. Da mesma forma que o FBI teceu conexões com MJ, PGR, CGU e diversas outras agências brasileiras, as firmas de advocacia norte-americanas também construíram um diálogo com as brasileiras. As entidades empresariais que patrocinam a 10º Cúpula Anticorrupção dão uma mostra da assimilação entre firmas de advocacia estadunidenses e brasileiras na construção da GWC: unem esforços advocacias norte-americanas como a Arnall Golden Gregory, Dechert LLP e K&L Gates com advocacias brasileiras como a Adriana Dantas Advogados e Saud Advogados. E, da mesma forma que um Aparelho Privado de Hegemonia Empresarial (APHE) estadunidense, o American Conference Institute, cumpre o papel de articulação entre agentes do FBI, PGR e CGU, a intermediação entre essas firmas de advocacia é conduzida pela Brazilian American Chamber of Commerce, dois exemplos de APHEs estadunidenses operando a função de córtex político desses empresários, quer dizer, a função de conectar e organizar diferentes frações do empresariado em um bloco unitário. Outro exemplo de como a teia de agências estatais e privadas da GWC se enredam é o fato de Brassanini, o ex-chefe da DOI do FBI, ter sido o palestrante principal do 7º Congresso Internacional de Compliance do APH Legal, Ethics & Compliance.

Por fim, outro dado que aponta para a centralidade que a agenda anticorrupção assumiu na estratégia do capital-imperialismo estadunidense é que em 2015 o FBI abriu três esquadrões de combate à corrupção internacional em Nova York, Los Angeles e Washington. Com isso, triplicou o número de agentes atuando nas investigações da FCPA e aumentou em 300% os recursos do FBI destinados às investigações sobre corrupção transnacional. Uma última informação emblemática de como essa agenda é parte de uma estratégia de longo prazo é que um dos organizadores do Projeto Pontes foi David Brassanini, o chefe do FBI no Brasil e coordenador de um programa de combate à corrupção em formato idêntico ao que organizou há uma década.

A SCI

O capital-imperialismo brasileiro, sempre sob a supervisão estadunidense, expandiu sua teia pelo continente através das parcerias internacionais da Secretaria de Cooperação Internacional do Ministério Público (SCI).

A ILEA, comentando seus treinamentos, sempre aponta que “espera que os participantes se tornem multiplicadores desse conhecimento assim que retornem aos seus países de origem”. A partir da rede da Lava Jato, os agentes de aplicação da lei brasileiros foram os principais propulsores dessa multiplicação. O capital-imperialismo brasileiro, sempre sob a supervisão estadunidense, expandiu sua teia pelo continente através das parcerias internacionais da Secretaria de Cooperação Internacional do Ministério Público (SCI). Destas, vale destacar a Rede Ibero-americana de Procuradores Contra a Corrupção, criada em 2017 sob a Coordenação do MPF brasileiro para “fortalecer os trabalhos que vinham sendo desenvolvidos nos marcos do Grupo de Trabalho de Combate à Corrupção que a precedeu, sob a coordenação do MP” (AIAMP).

Outra cooperação da SCI que merece destaque é a Rede de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 2018, em encontro dos Procuradores-Gerais da CPLP com o objetivo de “favorecer o intercâmbio entre os Ministérios Públicos, a estruturação de um quadro normativo e institucional para o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro”. A coordenação da rede é feita por Cristina Schwansee Romanó, atual Procuradora Regional da República e também integrante do GAFI, um APHE que, como veremos na parte 3, é um dos principais articuladores da GWC. Romanó é um exemplo do entrelaçamento entre o combate ao comunismo e à corrupção, tendo em vista que ela fez sua carreira como procuradora no Tribunal de Haia, que julgou os crimes da República Socialista da Iugoslávia em 1999, sendo a acusadora do presidente socialista Slobodan Milosevic, em 2000. Vale lembrar como a derrubada do governo de Milosevic ficou conhecida como a primeira “revolução colorida” após ser revelado que a OTPOR, principal organização das manifestações anti-governistas, era financiada por agências estadunidenses como a USAID, a NED e o IRI.

Com esses apontamentos, traçamos um possível caminho de pesquisa a ser explorado sobre como, após essa gigantesca mobilização das agências do Estado norte-americano de programas de combate à corrupção no continente, as redes de juízes, procuradores e policiais latino-americanos assimilaram a agenda da GWC e passaram a reproduzir sua ideologia. Como estamos vendo, o esforço dessas agências estatais, sejam estadunidenses ou latino-americanas, foi sempre através de parcerias muito próximas com think tanks, ONGs e outros APHEs. Por motivos metodológicos, focamos neste texto na atuação das agências estatais. Na próxima parte, analisaremos especificamente a atuação da malha de APHEs da GWC.