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OPRESSÕES

Raça e Classe: uma resposta ao conservadorismo de Mário Maestri

Letícia Lé, Malu Nogueira, Nicole Mendes
Divulgação

No dia 07/07, o historiador Mário Maestri publicou no site “A terra é redonda” um texto intitulado “Pintaram Marighella de preto!(https://aterraeredonda.com.br/pintaram-marighella-de-preto). Gostaríamos de responder às contradições ali presentes e fazer algumas pontuações sobre o que o pensamento do autor representa e por quê devemos repudiar qualquer manifestação do tipo dentro da esquerda marxista.

Amargamente, o autor inicia suas considerações acerca do fenômeno o qual denomina “racialismo”. Para ele, aquilo que antes era timidamente abordado nas esferas sociais, hoje é um discurso dominante aliado ao conservadorismo. Confuso em suas categorias, o autor parece atribuir suas frustrações subjetivas acerca do filme “Marighella” na conta das novas filosofias políticas e teóricas acerca da raça que vêm ganhando espaço na sociedade, as quais, em termos gerais, partem do reconhecimento de hierarquias sociais baseadas na racialização do sujeito.

Para tratar, então, dessas primeiras colocações, é necessário explicitar que a pauta racial, vista aqui como objeto de estudo, de discussão ou de denúncia, não constitui massa amorfa, homogênea, sob a qual é possível realizar deduções ontológicas. Pelo contrário, o reconhecimento da diversidade de interpretações e análises dentro daquilo que costuma-se chamar “movimento negro” ou “pensamento negro” é uma tarefa da esquerda revolucionária, na medida em que esta deve, sob pena de deficiência analítica, afastar-se de leituras superficiais dos fatos sociais, as quais muitas vezes estão aliadas ao conservadorismo. Apesar de tal tarefa, não raro deparamo-nos com análises imprudentes como as de Mário, que sob o manto já superado da “miscigenação” buscam apagar a existência violenta do conflito racial como uma constante do capitalismo, repudiando que o tema tome protagonismo na arena social e política.

Assim, a repulsa à qualquer movimentação de setores sistematicamente oprimidos, no caso em questão a população racializada (da qual a opressão alia-se ao capitalismo), é que constitui, de fato, atitude conservadora. Em especial, quando a repulsa advém de supostos integrantes da esquerda, aliados ao marxismo. É como o historiador Asad Haider denomina a “armadilha da identidade”.

Primeiramente, porque deriva de uma análise superficial, que ignora categorias estruturais do desenvolvimento capitalista, como a opressão racial de sujeitos racializados pelo sistema (situação longe de ser entendida de forma simples). Assim, ao repudiar que grupos inegavelmente racializados e, então, subjugados, se mobilizem e insiram suas denúncias em pauta, sob a justificativa de que não seriam verdadeiramente oprimidos, ou vítimas do racismo, (“é operação oportunista aproximar pardos quase brancos a homens e mulheres com forte ascendência africana, que realmente sofrem as duras sequelas do racismo” (MAESTRI, 2021.B) o autor faz uma abordagem rasa, que não vai além da superfície e é essencialmente insustentável.

Em segundo lugar, porque ignora uma importante elaboração marxiana, aperfeiçoada por Gramsci, na qual o agir político de grupos subalternizados, em meio a contradições e obstáculos, constrói a teoria e por ela é construído: a práxis. Conceito fundamental, a práxis marxiana rejeita, no que diz respeito aos grupos oprimidos pelo capital, qualquer espécie de inércia, visto que essa em nada contribui com a superação da opressão capitalista. De novo, negar o conceito de “raça” como aliado do capital, como adiante falaremos, é erro crasso. Por isso mesmo, não há o que se falar, dentro do marxismo, de qualquer tipo de inércia daqueles que são vítimas de tal racialização, negando-lhes o reconhecimento de sua opressão.

Finalmente, e esse tópico será trabalhado mais tarde, tal repulsa compactua com o conservadorismo e, assim, deve ser rechaçada dentro do marxismo, porque é uma análise “perneta” sobre a teoria marxiana. Como já reconhecido por Lukács, “o fato de que a economia seja o centro da ontologia marxiana não significa, absolutamente, que sua imagem do mundo seja fundada sobre o ‘economicismo’”. Esferas externas à opressão de classe, mas a elas intimamente ligadas, devem ser acopladas na teoria e prática marxistas. Uma análise madura, portanto, será aquela que, através da dialética, reconhece circunstâncias e contradições que se mesclam, de forma indissociável, à classe. É conhecido o ensinamento de Marx no qual “circunstâncias empíricas de diversos tipos, condições naturais, raciais, influências históricas externas etc.” determinam “infinitas variações e matizes” de uma mesma forma econômica. Não param aqui, no entanto, as confusões marcadamente conservadoras do historiador.

Ao apresentar levantamentos demográficos da população brasileira, Maestri também ignora em sua análise uma particularidade do desenvolvimento do racismo no Brasil: com o maior contingente de pessoas escravizadas das Américas no contexto do pós-abolição, além da sistemática violência e eliminação física por parte do Estado, o racismo também se apoia na sofisticada tecnologia hoje conhecida como mito da democracia racial. Aspectos desse dispositivo foram analisados por uma série de intérpretes da sociedade brasileira como Clóvis Moura e Florestan Fernandes, que discutem, entre outros aspectos, o concreto pilar dos ideais racistas na formação da sociedade brasileira, expresso na criação e popularização de falsificações históricas como escravização branda e início da miscigenação por relações amorosas entre senhores de engenho e mulheres escravizadas. Negar o discurso da democracia racial enquanto instrumento de coesão social (isto é, de manutenção das formas sociais-econômicas), que tem como intenção sufocar as denúncias das marcas da racialização, se não é conservadorismo, é uma frágil apreensão da realidade.

O historiador se esquece de outra categoria marxista, aperfeiçoada por Lukács, segundo a qual tem relevância “a função prático-social de determinadas formas de consciência, independentemente do fato de que elas, no plano ontológico geral, sejam falsas ou verdadeiras”. Não podemos ignorar a racialização da classe trabalhadora brasileira, visto que a não-branquitude ainda é associada ao labor das classes oprimidas e ao desprezo e negatividade a elas associados. Ainda, temos que a classe não-branca é quem, efetiva e majoritariamente, tem seu trabalho explorado pelo capital. Visto isso, a diluição da identidade dos não-brancos, em especial aqueles de ascendência africana, sob o manto da universalidade da classe trabalhadora, é uma forma de consciência que somente faz nebular uma compreensão efetivamente marxista de sua situação, que entenda o capitalismo em sua totalidade. É um óbice, como já dissemos, à práxis dos setores racializados, que envolve a luta multidimensional às opressões do capital.

Não por acaso, nas elaborações teóricas e políticas de pensadores negros brasileiros como Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento, teve destaque o enfrentamento ao que hoje nomeamos mito da democracia racial, a partir da afirmação da identidade negra. É nesse complexo contexto, portanto, que se torna parte da disputa organizada pelo movimento negro não somente a autodeclaração mas também a compreensão do pardismo como parte do que forja a categoria do negro brasileiro.

Nesse sentido, o historiador faz uma infeliz tentativa de levantar um dos argumentos centrais do seu texto, de que “há mais brancos explorados que negros”. Tal concepção serve diretamente ao apagamento da exploração de grupos racializados, fortalecendo a lógica do embranquecimento ou da “ideologia do branqueamento”, como conceitua Clóvis Moura, principalmente ao despir de sua identidade os sujeitos não-brancos, os promovendo à um não-lugar que deva ser rejeitado pelo movimento negro, o qual compreende a negritude como forma de resistência. Por isso, a possibilidade de haver uma maioria branca oprimida no Brasil não somente está equivocada, mas ignora os aspectos históricos, sociais e culturais da colonização e do racismo. Como desenvolvemos, no historiador revela-se uma cegueira deliberada perante a categorização política da negritude, tema em pauta há muitos anos no Brasil. A jornalista Rosane Borges fala sobre esta categorização, que une os pretos e pardos: “os não-brancos no Brasil carregam o ônus do patrimônio da cor. Quem tem o patrimônio da cor é a população branca”.

Em seguida, citando seus próprios escritos, o autor passa a afirmar categoricamente que não existe no Brasil a concepção de racismo estrutural formulada por Silvio de Almeida. Diz, ainda, que na lógica de um “racialismo” negro, “o mundo branco teria se servido no passado do racismo para uma super-exploração de negros e de pardos e hoje se serviria dele para impedir a progressão social dessas comunidades, mantendo o monopólio branco do poder e da riqueza” (MAESTRI, 2021.B). Entretanto, uma análise verdadeiramente crítica da História do Brasil prova que não se trata de uma visão racialista.

O Brasil deve ser pensado de forma particularmente sistemática, no contexto de conjunturas críticas ou a partir de dilemas e perspectivas que se criam quando ocorrem rupturas históricas. Ele pode ser visto como uma fábrica de explicações. As teses podem ser vistas em conjunto, como distintas versões sobre a formação e as transformações da mesma sociedade.

Nessas ocasiões, a sociedade nacional como um todo, ou em alguns dos seus setores sociais mais atingidos pela ruptura, ou mais interessados nela, logo se põem a analisar o curso dos acontecimentos, suas raízes próximas e remotas, suas tendências prováveis no futuro. As interpretações tanto podem priorizar um ou outro setor da sociedade como formular visões de conjunto, integrativas, buscando as linhas mestras da história nacional.

Assim, argumentos esparsos acerca da breve exploração da classe trabalhadora lusitana, ou da exploração da mão-de-obra branca em determinadas regiões do país, de forma alguma são relevantes para o quadro social atual do Brasil. Pelo contrário, as bases para a escravidão no Brasil foram fundadas em sujeitos racializados: os povos indígenas e os africanos escravizados. Como explica Silvio de Almeida, “foram, portanto, as circunstâncias históricas de meados do século XVI que forneceram um sentido específico à ideia de raça”. As sequelas dessa racialização no contexto histórico-social brasileiro não foram, no entanto, superadas. Marcaram, pelo contrário, a dinâmica da exploração do labor no país. Marcaram também a cultura e os ambientes sociais. A racialização não se ameniza com a miscigenação do povo brasileiro, mas se especifica, sempre aliada à forma econômica, mesclando-se.

Mário Maestri avança nas declarações discriminatórias ao afirmar que “a tese do confronto racial, entre brancos exploradores e negros explorados, abstrai a questão da propriedade privada dos meios de produção, controlados pelo capital, sem cor (…)”. Afirmar que o capital não tem cor é ignorar o significado histórico da escravização negra para a formação da classe trabalhadora brasileira e das relações capitalistas aqui estabelecidas.

Ao criticar medidas de discriminação positiva sugeridas por Silvio de Almeida, Mário Maestri parece apagar toda a crítica do autor sobre o status quo, em que não é possível a libertação negra diante das amarras do capital. A implementação, por exemplo, das cotas raciais, serve à garantia de direitos fundamentais que foram arrancados da população racializada desde o início da exploração de seu trabalho e de suas vidas. No entanto, em nosso entender, tais medidas não esgotam a luta, nem afastam a necessidade de ruptura com o capital, mas compõem o resultado da mobilização política dos racializados, a qual não é livre de contradições. A população negra ou racializada, nos termos humanistas de Fanon, não possui o privilégio de esquecer que o ódio racial é o “suporte natural” da exploração capitalista, como nos ensina o sociólogo Oliver Cox. Desse modo, sua atuação no anticapitalismo necessariamente carrega a consideração do conflito racial e de suas penetrações nas relações sociais objetivas e subjetivas.

Temos que nos atentar à infiltração do eurocentrismo na análise marxista, fenômeno não muito incomum no campo teórico e prático. A abordagem eurocêntrica contemporânea, muitas vezes sob o manto de universalismo, clamado por Mário, por exemplo, apaga – ou pretende apagar – as marcas do fenômeno da racialização na História Moderna. Para não cairmos no simplismo, e assim deixar de lado aspectos-chaves da história e desenvolvimento do capitalismo no Brasil, o qual carrega suas particularidades, devemos sempre denunciar leituras como as de Mário. Apesar de baseadas em premissas marxistas, suas conclusões carecem de rigor analítico, permeadas, como já se disse, por um disfarçado eurocentrismo, que beira o romanticismo (basta atentar-se para alguns trechos do texto do historiador em que se trata da ascendência italiana de Marighella).

O eurocentrismo não pode ser entendido como uma mera ignorância dos europeus com os demais povos. O eurocentrismo é um fenômeno especificamente moderno cujas raízes estão no Renascimento e se difundem no século XIX. Ele se constitui como uma dimensão da cultura e da ideologia do mundo capitalista moderno, que não obstante penetra as camadas mais progressistas da sociedade, viciando suas produções analíticas e teóricas. Enquanto alinhados ao marxismo, é necessário combater as infiltrações da visão conservadora dentro de nossas práticas e teorias, para que na luta anticapitalista sejam de fato combatidas todas as mazelas do império do capital, e não só aquelas que interessam a este ou aquele indivíduo.

É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer”

Carlos Marighella